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Entre lutas e dores
Os serões de Abel
Paulo Valença

Resumo:
Abel ex-funcionário da fábrica de papel está na cadeira de rodas, vítima de um derrame e a sua esposa Ivone e a filha Lurdes se lembram do quanto ele trabalhava, chegando em casa pela madrugada, após os serões na indústria...

1
Abel salta do ônibus e apressado caminha em sentido da rua defronte. Assim de madrugada, com essas ruas desertas... O receio de um assalto alerta-o para que logo cruze a rua e mais adiante entre na travessa, com a escadaria estreita e longa que o conduzirá a casa no alto do morro, onde a mulher Ivone e a filha Lurdes estão adormecidas. Sua família, a razão de ter de fazer os serões na fábrica, como impressor da máquina onduladeira.
- A gente hoje vai até que hora Seu Abel?
Indagara-lhe o seu ajudante, o Julinho, sempre perguntador, puxador de conversa, recurso que usa para fazer o tempo passar mais rápido e, ele respondeu lacônico, evitando o diálogo cabuloso:
- Até às doze horas.
- Tamos lascados! Agora é que são oito horas...
Então, desviou o rosto de lado, fugindo do outro perplexo, ainda de menino.
- Tamos lascados!
Repetiu o auxiliar.
Manteve-se calado. E, sentado no banco alto fixou a atenção às caixas que desciam abertas na esteira, tendo Julinho lá na frente, conferindo-lhe o encaixe das cores e pondo-as no estrado ao lado.
Depois findo o expediente, marcou o cartão no relógio-de-ponto e saindo da empresa, tomou o ônibus, retornando a casa. Tudo numa seqüência de noites passadas. Até quando assim nesse trabalho exaustivo e pouco recompensador?
- Até quando?
Libertou o pensamento em voz baixinha, contudo, audível para a mocinha ao lado da cadeira, que sorriu complacente, como se lhe lesse a alma. A condução adiantava-se, aproveitando a avenida pouco movimentada, devido à hora iniciada da madrugada.
Ele fechou os olhos, cochilando, relaxando. A mocinha outra vez sorriu. Tudo entendendo. O pai também cochilava no ônibus quando vinha do serão...

2
A travessa. Sobe os degraus. Quantos? Um dia ainda os contará. Pelos seus cálculos, deve haver quase duzentos. Sobe. Alerta. Receando o imprevisível.
Nas residências às laterais da escadaria, quebrando o silêncio da madrugada, se ouve os latidos de cães. O canto fora de hora de um galo. O choro de uma criança. Abel avista a casa. O muro à frente. O terraço gradeado, a janela ao lado. Seu
lar... Com a esposa e a filha adolescente dormindo. Ah, se o que vê e entende nunca passasse lhe acompanhasse através dos anos, na marcha ininterrupta do tempo, que em seu egoísmo tem os desvios, as surpresas!

3
Lurdes para a mãe, D. Ivone:
- Sabe mãe, quando vejo o pai naquela cadeira de rodas, aí no terraço, mal se mexendo, como um morto - vivo... Maldito derrame!
Sente de repente o desejo, que vai vencendo-a... Passa o dorso da mão direita sobre os olhos, na tentativa inútil de colher as lágrimas que lhe descem pelas faces.
A mãe foge o rosto de lado, não querendo presenciar a cena repetida e que a faz sofrer mais e, fala:
- É mesmo, filha. Seu pai sempre foi um homem direito, trabalhador, responsável... Quantas não foram as vezes que ele chegava de madrugada dos serões da fábrica, com a gente dormindo?
Não, ela, Lurdes, não dormia, esperando ouvir os passos, a tosse seca, a voz:
- Ivone tás acordada?
- Ahn? Que é, chegasse agora?
- É, estava no serão.
- Vou esquentar o seu “de comer”.
O pai não concordava, respeitando-lhe o repouso:
- Não, Ivone, pode deixar que eu esquento.
Tantos anos... Agora a realidade que os envolve é outra, bem diferente.
- Vai ficar pra o jantar, Lurdes?
Aí, despertando do passado, a filha repete o gesto de passar o dorso da mão sobre os olhos e as faces mais morenas e, sorrindo com tristeza, responde:
- Fico pra outra vez, mãe. Tenho de fazer ainda umas compras...
Ergue-se então do sofá, e resoluta, determinada como sempre:
- Vou me despedir do pai.
Cruza a salinha e entra na varanda, onde na cadeira de rodas, o idoso cochila indiferente ao que o cerca, ao mundo que não mais lhe pertence.
Devagarzinho, procurando não o despertar, a filha chega e se envergando beija-lhe a face fria, amarela, cortada por rugas, como cicratizes da existência entre lutas e dores.
Presenciando tudo daqui do sofá, D. Ivone sente uma “coisa” que vai crescendo, crescendo... E sem poder se conter, entrega-se ao que sente, no desabafo íntimo da condição de ser apenas humana.
Chora, com humildade, libertando-se.

Lu Dias BH disse:
Paulo Valença O escritor dos contos curtos.
Você é o escritor de seu tempo.




Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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