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A MARIA E O BAIO
ivete tôrres


Meados de junho. João Galdino abre a janela. O inverno ainda não se apresentou, mas o frio veio na frente: tá de renguear cusco. São seis horas da manhã. Dá por terminado o mate, e larga a cuia em cima da mesa. Encilha o baio. A sentinela da casa, Mixuruca, acompanha o dono, mas de má vontade. Hoje não vai ser preciso te atar, não é? O frio já tratou disso. Assim dito, afaga a cabeça do animal e entra na casa.

Maria, sua companheira, ainda está na cama.

- Mal o dia está nascendo...

- Quero chegar cedo para pegar o seu Antonio em casa. Pelas minhas contas a lenha deve estar no fim. Do jeito que a mulher dele se aquenta na lareira... Te lembra um janeiro, que fez um friozinho a toa, e ela queria até toco?

- Essa gente é assim, se deixar entram pra dentro da lareira. Tu vai no gateado? O baio ainda está meio xucro para ir à cidade.

- Não te preocupes. Eu sei lidar com ele. E um dia vai precisar sair da volta das casas, não achas?

A mulher não concorda, e sacode a cabeça contrariada.

- Não te amofina, criatura. Levanta que eu deixei o mate quase novo pra ti.

Dá um beijo na companheira e vai ao quarto das crianças. Dionatan e Dienifer estão dormindo como os anjos que são. Beija a testa de cada um, e sai para enfrentar o frio da manhã. Vai João Galdino, quem quer morrer não adoece, velho ditado de sua saudosa mãe, mulher forte e decidida. Ao chegar à porta vê que o cachorro levanta e olha para ele, mas logo se deita novamente. Decide ficar na beira do fogão. Eu não disse? Fica aí te aquentando, amigo velho.

Monta no cavalo e direciona para a porteira. Sorri pra si mesmo, ao lembrar-se da mulher. Como sempre ela tem razão. Gente de cidade não passa sem lareira. Eu me esquento com o braseiro do fogão, com um verde bem esperto e com um traguinho da boa. Mas um traguinho, coisa pouca, só pra esquentar mesmo. Ah! E a Maria. Ela é a última a deitar. Não sei me aquecer sozinho. Fico gelado, esperando ela chegar. Aí, me encosto bem na aba da costela, fico sentindo o perfume no seu cangote, e pronto. Sou um homem quente outra vez.

E assim, tranqüilo, na companhia do baio e de seus pensamentos, João Galdino chega à cidade. Embora viva longe e não troque sua vida por nada, ele sabe admirar o que a cidade tem de bom. É um vai e vem só. Aposto que a semana por aqui vale por uns três dias.

Logo vai tratar da lenha. Confirma quatro cargas, o que é mais do que esperava. E o seu Antonio, hein? O homem queimou ontem o último toco. Faz quase uma semana que me deu um cutuco aqui na cabeça, e não errei. É um bom freguês, e de muito tempo, que não posso perder.

Satisfeito pelos negócios alinhavados, chega à prefeitura para pedir uma licença de limpeza de campo. Leva algum tempo para ser atendido, mas consegue seu intento.

Depois se dirige a uma casa veterinária para comprar vacina. Na verdade, encontra não só o que procura, mas também velhos conhecidos, chimarrão e muita conversa boa.

Assim, o dia passa. João Galdino leva a mão no bolso e lembra que precisa ir ao mercado. Sempre saio de casa com os beijos da Maria, das crianças, uma lambida do Mixuruca e uma listinha de compras na mão. Se venho com tanta coisa, tenho que levar também. Erva, arroz, farinha, sal, o tal do iogurte e o sabonete cheiroso da Maria. Coloca as encomendas na mala de garupa, e sem mais o que fazer, parte em direção a querência.

- Ué, o que houve com esse cavalo? Até aqui se comportou melhor do que eu esperava.

O animal mancava a olhos vistos.

- Dá a pata aqui, companheiro. Mas que baita prego tu me enfiou nesta pobre pata. Calma, que eu já tiro e tu volta a andar ligerito no más. Pronto. Vou descansar um pouquinho nessa pedra e depois terminamos o trecho. Ri sozinho. Eu não perco este costume de falar com os bichos como se fala com gente. Mas bem que ele me entende, parece que está até me agradecendo com os olhos. Percebe que parou em frente a um bar, e resolve comprar um pedaço de salame. Eu só fiz meio-dia, e já estou ficando com fome, vou dar serviço pros dentes. Já se dirige ao bar quando repara no horizonte.

- Mas olha, que pôr-do-sol bem lindo. Mais lindo que isso só a Maria me olhando com aqueles olhos de guri pedinchão. Trabalho tanto que há muito tempo não parava para apreciar estas coisas. É pra gente encher os olhos, mas a correria atrás da plata não deixa. Pois eu vou acender um cigarro e ficar olhando esta maravilha, até a hora da lua chegar para fazer a ronda.

É o que faz. Ao ver a lua que se aprochega, levanta e entra no bar. Num canto vê uns quatro ou cinco homens que tomam cachaça. Pelo alarido já dá para ver que passaram do ponto. Um deles passa por ele e sai na porta. Não sem antes tropeçar e quase cair.

- O que vai querer patrão?

- Um pedaço bom de salame.

- E pra beber?

- Nada, amigo, só o salame.

Um homem, aparentemente sóbrio, entra esbaforido:

- Tchê, era teu aquele cavalo que estava aqui na frente?

- Companheiro, meu ele é, e desde que nasceu.

- Pois o Zé do Trago montou nele e saiu pra aquelas bandas. Quero ver agora pegar. Ele está mais bêbado que um gambá, vai ver que achou que era o dele.

João Galdino abre um meio sorriso. Paga o salame, e se dirige para a porta. Devagar, bem devagar. Pra que lado?

E sai na direção que lhe indicam. É seguido por um cortejo de bêbados, uns mais, outros menos, e por uma gurizada, que por ali joga bola. Ninguém entende a calma do gaúcho.

Eis que logo ao dobrar a esquina todos vêem uma cena, no mínimo, pitoresca. O cavalo está parado, tranqüilo. E o famigerado cavaleiro meio sentado, meio deitado no chão, se delicia com os iogurtes das crianças de João Galdino.

O lenheiro é um riso só:
- A Maria disse que tu ainda não tava bem domado. E eu nunca duvido dela.


Biografia:
-
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