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Em busca de um pesadelo
José Pedreira da Cruz

Todo indivíduo que nasce nas regiões mais carentes do Brasil carrega consigo o sonho de um dia pisar em terras cariocas ou paulistanas e lá adquirir uma vida melhor e, quem sabe, até tornar-se rico. Este é o anseio de milhares de pessoas que aos poucos vão se deslocando de suas origens e esperançosos desembarcam no destino de suas aspirações e tão logo se mortificam na desilusão que os espera e passam a vagar pelas ruas como verdadeiros nômades suburbanos: sem eira e sem beira, e foi neste contexto que conheci João da lata.
                 O frio era um dos mais impiedosos das últimas décadas e naquela inesquecível meia-noite de julho, lá estava eu com dois amigos, como voluntários, na Praça da Sé, marco zero da metrópole, tentando minimizar o sofrimento alheio com sopa quente, pão-de-forma e peças de vestuário adquiridas de terceiros.
                 Logo após anunciarmos que iríamos distribuir roupas e alimentos, verifiquei que muitas pessoas acorriam em minha direção, ai aflorou-me um sentimento de tristeza, mui tormentoso, ao me ver frente àquele quadro de inumanidade bem na sala de visita de uma das cidades mais prósperas das Américas.
                 A exuberância das ricas edificações, protegidas com suntuosa iluminação pública, nada tinha a ver de formosura frente à realidade da miserabilidade que me deparei e que me fez lembrar das personagens do romance O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain que, de tão dramáticas e sofridas, me fez relê-lo por várias vezes.
                 Vi crianças e mães famintas, quase desnudas, esticadas no relento do calçamento úmido, tendo papel de jornal como cobertor e sem ânimo de se mexer do lugar. Vi homens embravecidos ao tentar tirar um pão de minhas mãos, e crianças chorando para se vestir com meu próprio agasalho; vi também, o lodo em suas mãozinhas sem banho. Vi pessoas se abraçarem para se esquentar como se amantes fossem e vi elementos drogados zanzando como se, se esquentassem com a névoa fria do inverso rigoroso e vi um homem, apenas um entre muitos, que se destacava solitário e se protegia no interior de um carrinho de rolimãs próprio de coletar lixo, e que parecia não querer compartilhar com o desespero dos demais que se aglomeravam em meu entorno.
               - Quem é aquele homem? – perguntei a alguém.
               - É o João da lata.
               - Chame-o aqui – disse-lhe eu – ele ainda não comeu!
               O homem saiu do carrinho e veio lentamente como a contar seus pesados passos, e parou.
               - Pois não doutor! – disse-me ele.
               Olheio-o fixamente e não me lisonjeei com sua fala, apenas senti o valor da diferença que ele se impunha frente à sua mísera condição de indignidade.
               - Não vai querer um pouco da comida, senhor? – perguntei-lhe.
               - Não doutor, ela não vai descer. Minha tristeza me impede.
               Fiz de conta que não entendi e estiquei-lhe as mãos com pães e sopa, e perguntei-lhe o por quê da tristeza. Estás doente?
               - Sim doutor, doente de angustia! Eu tinha tudo que um lavrador pode ter na vida. Tinha uma família, uma casa, minhas roças, meu gado e meu cavalo. Eu tinha paz. A ilusão me fez desfazer de tudo e estar aqui, nesta penúria. Hoje nada tenho além daquele carrinho de catar lata pelas ruas. São Paulo me iludiu e me decepcionou. Não tenho onde ficar e nem como voltar de onde vim. Virei um verme, um indesejado que no futuro só terei uma cova anônima em qualquer cemitério. Até perdi meu nome. Antes era João, agora é João da lata.
               Naquele momento uma mulher se aproximou e me cochichou disfarçadamente:
               - Tu corres perigo! Foi João da lata quem me disse.
               Ela me disse, muito cautelosa, que aquela comida não me excluía da condição de ser vítima da violência, e bondosamente acrescentou:
               - Estão tramando contra ti, saia já daqui!
               Senti calafrio e medo, e com eles o desespero.
               No caminho da volta fiquei a me questionar com os meus porquês e conclui:
               - Por pouco não virei mais um João da lata na mão dos “caras.”

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                                                                       José Pedreira da cruz
                                                                              SP/SP -21/03/10




Biografia:
Nasceu no dia 5 de janeiro de 1948 na cidade de Sátiro Dias-BA, onde estudou o curso primário. Prosseguir com os estudos em Alagoinhas-BA, onde foi comerciário e petroleiro. Depois migrou para Duque de Caxias -RJ e lá concluiu o Curso Técnico de Contabilidade no Colégio Técnico Comercial "Ana Maria Gomes". Em 1975, com esposa e filho, modou-se para São Paulo onde ingressou na indústria metalúrgica e nela adquiriu razoável conhecimento administrativo. Depois, concursado, empossou-se na Secretaria de Estado da Educação onde atua no serviço administrativo. Faz da boa música e da boa leitura o seu melhor passatempo e tem o hábito salutar de tocar violão, compor canções, ler e escrever Poesias, Contos e Crônicas. Possui dezenas de textos publicados em Jornais e revistas literárias (on-line)e tem participação especial no livro “Junco – crônica de sua existência” de Ronaldo Torres, além de inúmeras colaborações no jornal “Gazeta Voz Ativa” da cidade de Sátiro Dias-Ba. Vem neste espaço dedicar letra por letra de seus escritos a sua esposa Marly, a seus filhos e netos, amigos e admiradores.
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