JANELA DE MARINETTE E WALY SALOMÃO
Alexandre José dos Santos*
Val Rodrigues**
Jequié, cidade situada no sertão baiano entre a faixa litorânea úmida (mata) e o sertão semi-árido (caatinga), sudoeste do estado da Bahia, lugar onde o sol predomina na maior parte do ano. Esta é a cidade onde nasceu o poeta Waly Salomão. Terra onde viveu sua infância, as beiras do rio de Contas.
Waly, filho de pai Sírio e mãe baiana, nasceu no dia 03/09/1944. Nos anos 60 aproximou-se de artistas que se identificaram com o movimento tropicalista, como Torquato neto, Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jardes Macalé chegando a morar com Gal Costa, quando esta residia em São Paulo, sendo responsável pela sua rápida progressão no mundo da música popular brasileira, a partir do momento que produziu o show que levou o nome de Gal Fatal A Todo Vapor. É neste show que ela lança a música composta por Waly e Jardes Macalé – Vapor Barato interpretada por vários outros cantores da nossa música. Organizou a coletânea de Torquato Neto Os Últimos Dias de Paupéria. Também exerceu grande influência na vida de Caetano Veloso lançando o livro Alegria, Alegria – Uma Caetanave organizada por Waly Salomão, pela sua editora “Pedra Q Ronca”. Apesar de uma relação com esses autores, Waly nunca quis ser identificado com o movimento tropicalista, dizia que gostava de ficar nos bastidores.
O poeta dá início à sua carreira quando lança o seu primeiro livro de poemas intitulado Me Segura que Eu Vou Dar um Troço. Este livro contem textos escritos durante a sua passagem pela prisão (no Carandiru, Pavilhão dois), que tiveram a participação de seu amigo Hélio Oiticica, no que se refere à seleção e diagramação dos poemas. Waly sempre teve um grande envolvimento com Hélio Oiticica, tanto que chegou a escrever a biografia deste, denominada Qual é o Parangolé.
Ao lado de Torquato Neto produziu a revista Navilouca (1972), que teve apenas uma edição, mas foi o bastante para ficar na história do nosso país. Neste período da sua vida optou pelo nome de “Waly Sailormoon”, pseudônimo utilizado por pouco tempo.
Durante a sua vida foi de tudo um pouco: poeta, compositor, diretor musical, editor, artista plástico, videomaker, ensaísta, ator, agitador cultural e escritor.
Waly era muito ligado à música, uma boa parte de seus poemas são musicalizados, dentre outras composições escreveu: “Talismã”, “Mel”, “Mal Secreto”, “Anjo exterminado”, “Olho d’água”, “Memória da pele”, “Assaltaram a Gramática, “Rua Real Grandeza”, “Tarasca Guidon”, “O Revolver do Meu Sonho”, “Zé Pelintra”, “Balada de um Vagabundo”, “A voz de uma pessoas Vitoriosa”, “Da Gema” “A Fábrica do Poema”, “Polivox” e “Cobra Coral”, além de produzir um show de Cássia Eller Veneno Antimonotonia e muitas outras contribuições que fizeram dele parte da nossa história cultural. Também trabalhou com a jovem guarda. Uma das suas composições neste período “Pista de Dança” obteve, atualmente, uma nova interpretação na voz de Adriana Calcanhoto no seu disco ”Maresia”. Quatro de seus poemas foram traduzidos e publicados na Academia de Artes de Colônia, na Alemanha.
Como ator, interpretou Gregório de Matos no filme de Ana Carolina sobre o poeta satírico. Waly Salomão também chegou a ser nomeado secretário nacional do livro e leitura, pelo seu amigo e conterrâneo Gilberto Gil. Em uma de suas falas Waly diz: “Quero ajudar neste momento generoso, com tesão e com vontade. Estou vendo as mazelas e buscando formas de superá-las, para não ficarmos no lamento”.
Teve algumas experiências na Fundação Gregório de Matos além de coordenar o Carnaval de Salvador.
É possível perceber, em sua poesia, a presença da Bahia e especialmente da sua cidade, Jequié. Em suas entrevistas sempre fazia questão de dizer que era cidadão jequieense, transmitindo esse sentimento de forma poética, ao produzir o poema Janela de Marinette, dedicado ao seu irmão Jorge Salomão.
Neste poema Waly retrata visões de sua infância e adolescência e imagens de sua terra natal. O poeta usa de sua versatilidade para descrever as raízes e costumes da região onde nasceu.
JANELA DE MARINETTE**
Para Jorge Salomão
1
cidade dura e arreganhada para o sol
como uma posta de carne curtida no sal –
onde na rua do Maracujá adolesci
e, louco, sorvia a vida a talagadas de cachaça
de alambique.
Graveto-do-cão pitu luar do sertão.
uma ponte corta um rio de fazer contas.
arco e flecha de sultão das matas
mira certeiro as ventas do dragão lá na lua.
uma seta e um nome tupi de cidade em uma placa
- é, é, jequi, cesto oblongo de cipó pra pegar peixe n`água, é,é –
e a rua de paralelepípedo e a rua de chão batido
e outra rua metade paralelepípedo metade chão batido
lembra jurema pé de joá cacto mandacaru.
fruta de palma perde os espinhos
mergulha dentro da bacia cheia de areia.
bolo de puba umburana flor de sisal.
cidade dura e arreganhada para o sol
como uma posta de carne curtida no sal,
meu museu do inconsciente
é um prédio mais duro de roer
mais arreganhado para o sol
mais curtido nas salinas do canal lacrimal.
Waly Salomão descreve nesta primeira parte de seu poema trechos de sua vida em Jequié, comenta sobre a “rua do Maracujá”, lugar onde funcionava um prostíbulo, que foi extinto no final da década de 60. Relata sobre as cachaças da época “graveto-do-cão, pitu, luar do sertão”. Usa do sincretismo religioso ao fazer uma fusão do Sultão da mata com o Dragão da Lua, retomando a façanha de São Jorge. Cita o regionalismo quando se refere ao “cesto oblongo” utilizado para pegar peixe. Faz crítica a política da cidade de Jequié ao pronunciar a “rua de paralelepípedo e a rua de chão batido”. Relembra as suas raízes quando revela a técnica para soltar os espinhos do cacto “fruta de palma perde os espinhos mergulha dentro da bacia cheia de areia”, técnica usada pelo seu pai. Lembra os bons tempos quando Jequié era conhecida como a terra da carne do sol, fama conquistada por produzir aqui um produto de ótima qualidade. Nos deixa claro que o que ele relata são imagens que fazem parte do seu inconsciente “meu museu do inconsciente”.
2
o anúncio ditava:
...”a farmácia estreita da rua larga”...
abro
minha caixa de amor e ódio
abuso
da enumeração evocativa,
desando a disparar:
rua Alves pereira...
rua Apolinário peleteiro...
rua do cochicho...
distingo bem o caroço duro de umbu chupado
da bostica, da bustiquinha redondinha
que nem biscoitinho de goma
que a cabra da caatinga fabrica.
de pouco vale agora essa sabença.
o chão e tudo é só paisagem calcinada
e tela deserta e miragem e cena envidraçada.
janela de marinette
sem vista panorâmica
me lixo pro louvre da vitória de samotrácia
apois aposto na corrida futurista da preá
pego carona na rasante do urubu
diviso lajedo molhado espelhando umbuzeiro gravatá.
um aleijado esmola e merca rolete de cana
três araras dois micos uma jibóia enrodilhada.
uma velha choraminga e mói dez tostões de erva
mais cinco mil-réis de semente de urucum.
jegues carregados de panacuns.
pau-ferro rolimã curral dos bois.
Nesta segunda parte do poema, Waly retoma imagens da cidade “a farmácia estreita da rua larga... rua Alves pereira..., rua Apolinário peleteiro..., rua do cochicho...” Mostra dois lados de sua personalidade, os quais sabia trabalhar muito bem “minha caixa de amor e ódio”. Continua mostrando o regionalismo lembrando do umbu fruta comum na região e da “corrida futurista da preá, urucum, panacuns, pau-ferro, curral do bois”. Cita um apelido que era dado aos ônibus da época “Marinete”. Neste momento Waly sai do mundo de Jequié, cita o futurismo – movimento que teve como precursor o poeta Filippo Tommaso Marinette. No rasante do urubu ave muito comum em Jequié, termina a sua viagem e volta para sua cidade natal.
3
uma ponte corta um rio de fazer contas.
pego as contas dos olhos e as enfio
nas platibandas das casas coloridas.
rua das pedrinhas... borda da mata...
guito, guigó... bolha de mijo de potó...
a profa. teresinha fialho
e a família inteira de doutor fialho
no poleiro das galinhas verdes de plínio salgado.
verdes. verdes. e o amarelo aceso do enxofre
no fundo da talha d`água-de-beber.
que não escutei “queto!”, ouvir não ouço “coitado!”.
ubuservar a vida besta do alto do urubuservatório.
por amor de quando fera e peixe e planta e pedra e ave
e besouro e estrela e estrume e grão de areia,
cada qual de per si,
e os jeitos e as qualidades
das palavras
das quimeras
dos seres,
separados ou em uníssomos,
silibavam oráculos...
a ti confesso, janela de marinetti:
comparecem até o mirante
mínimas brasas inquietas
catapultas pelas criciúmas
dos rios pretos enchidos dos cafundós-dos-judas
(minúcias de azinhavres,
línguas de trapos e de caroços,
catadupas de troncos e tocos,
hemorragias de baronesas e molambos);
Aqui o poeta jequieense retoma a história: “borda da mata”, nome da fazenda que deu origem à cidade. Lembra “guitó” personagem que viveu em Jequié. Comenta os integralistas “galinhas verdes” pseudônimo dado às pessoas que defendiam a política de Plínio Salgado. Traz o imaginário com as “quimeras” monstros com corpo de cabra e calda de dragão. Novamente cita o regionalismo com as “criciúmas, o rio preto, e as azinhavres”.
4
na porta da casa fascista
o audaz tenor bambino torregrossa assassina lua e luar.
a acha de lenha do passado figura fósforo queimado
carvão apagado
tição perdido e achado aceso
(no meio-dia calcinado carvão forja diamante)
que crepita confundido com as paredes
internas
externas
do porão da bexiga
que crepita fundido no fole refemfem
fem fem
femfem
no resfôlego da tripa que toca gaita,
a tripa gaiteira da folia dos magos reis do boi janeiro.
quem foi que disse que janeiro não saía
boi janeiro ta na rua com prazer e alegria.
essa alegria, motor que me move.
nascido com o auxílio das mãos da parteira mãe jove,
para todo o sempre confino
o registro da palavra rotina
com o vento e a chuva
com o plúvio e o pneuma
marchetados no registro
da palavra enigma.
Quarta parte, Waly retoma o mundo jequieense com “a casa fascista”, um bar. Hoje em dia este lugar abriga uma loja de materiais eletrônicos. Cita os italianos que viviam em Jequié na época “o audaz tenor bambino torregrossa”. Mais uma vez o poeta mostra o seu lado regionalista com “a tripa gaiteira da folia dos magos reis do boi janeiro” referência à folia de reis e ao boi, animal que faz parte do cenário desta comemoração. Lembra sua parteira “mãe Jove” e neste momento retoma sua vinda para este mundo.
5
Cidade-sol.
Heliópolis,
Baalbeck
da minha infância desterrada.
(Tarifa de embarque)
Na última parte de seu poema, Waly Salomão retoma mais do que nunca suas raízes, ao citar “Heliópolis - Baalbeck” o primeiro nome significa cidade sol em grego, cidade da Síria, lugar que perdeu seu nome depois de ser invadida, passando a chamar-se “Baalbeck”
Waly era um poeta multimídia, fez da sua vida e obra marcos importantes para a nossa literatura, sua imagem de perseverança está gravada na história do Brasil como um exemplo para as demais gerações.
Morreu aos 59 anos no dia 05 de maio de 2003, na clínica São Vicente, Rio de Janeiro, em decorrência de um tumor no intestino, que provocou falência múltipla de órgãos. Seu corpo foi velado na Biblioteca Nacional do Livro, no centro do Rio de Janeiro, e cremado às 9:00hs, no cemitério do Caju.
Referência Bibliográfica
REVISTA, Cidades em Foco. Ed. 20, agosto 2003.
JORNAL, Jequié. Ed.1.227, 22/08/2003.
JORNAL, O Ecológico. Ed. 17, agosto de 2003.
JMM, Waly Salomão é entrevistado do programa Por Acaso TVE... disponível em: www.tvebrasil.com.br. Acesso em: 18/07/2003.
Waly Salomão Biografia. Disponível em: www.cliquemusic.com/. 19/07/2003. Acesso em: 18/07/2003.
MAZZINI, Rúbia Terça, Poeta dos Livros e das Canções. Disponível em: www.odia.ig.com.br. Acesso em: 19/07/2003.
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* Alexandre José dos Santos: autor do artigo sobre Waly Salomão - Janela de Marinette.
* *Val Rodrigues: poeta e amigo de Waly Salomão. Peça importante para a construção deste trabalho.
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