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Os encantos de uma pequena vila em Minas
Flavio F. A. Andrade

No início de 2008, eu e meu amigo, Reinaldo Reigrimar, fizemos uma viagem, a trabalho, a uma pequena vila de 200 habitantes próxima à cidade de Belmiro Braga, que fica a 36 quilômetros de Juiz de Fora, na divisa com o Rio de Janeiro. Pode parecer mais um vilarejo perdido no meio do mato, e que parou no tempo, mas esse lugar tem lá suas belezas arquitetônicas e naturais. Não fosse pelas antenas parabólicas, que insistem em modificar a paisagem, e pelas roupas coloridas de seus habitantes, poderíamos mesmo dizer que São José das Três Ilhas parou no tempo. A cidade, se é que podemos chamar de cidade, possui uma atmosfera do século XIX, ainda preservada em sua rua principal. Casarões erguidos com pedras, igrejas construídas por escravos, ruas de pedras, a nos indicar que ali, um dia, viveram alguns dos homens mais poderosos deste Brasil — naquela época, o café era o ouro verde e dava prosperidade ao lugar —, mas que agora não passa de um projeto turístico em desenvolvimento. Para quem visita São José das Três Ilhas, uma pergunta teima em perdurar na cabeça: como é possível deixar que tudo isso se acabe?
Nessa viagem, fizemos apenas algumas visitas esporádicas ao local para coletar depoimentos e imagens para a produção de um livro sobre cinema. Devido à beleza, o lugar fora escolhido, principalmente na década de 90, por muitos diretores para servir de cenário para filmes nacionais. Paralelamente a esta pesquisa, pude perceber outros aspectos além daqueles que pesquisei para reunir em livro. São essas sensações que narro neste relato de viagem. Coloco aqui apenas as informações que ficaram gravadas na lembrança. Deixo de lado os rascunhos e informações registradas na época e redijo apenas as recordações que minha mente fez questão de guardar. Nada de muitos números e fatos históricos. Narro o que vi, ouvi e vivenciei. Vamos fazer uma viagem que, embora no presente, nos permite vivenciar o passado.
A data da viagem poderia ter sido outra. Mas chegamos ao nosso destino no dia 20 de março de 2008, véspera de Páscoa. As comemorações com nossas famílias foram deixadas de lado. Afinal, estávamos atrasados com o projeto. Marcado o dia, lá fomos ver o que de tão belo realmente aquela pequena ilha tinha para atrair tanta atenção de renomados diretores de cinema. Ao grande público, o lugar não era assim tão capaz de cativar. Na internet, pouca informação sobre o lugarejo. Algumas matérias publicadas na grande mídia e em blogs, e nada mais. O que há de errado? Pensei. E quanto mais pesquisava — e menos encontrava —, mais crescia minha curiosidade. A preocupação em não encontrar um lugar que correspondesse às expectativas também aumentava. Não foi o que aconteceu. Foi muito surpreendente tudo o que vimos.
Para chegar lá, foram mais de 55 quilômetros de estrada de chão. Mas a sensação era a de que tínhamos andado 100 quilômetros. Condução para o local? Esquece. São José das Três Ilhas não estava nos guias turísticos comerciais. Seria uma cidade fantasma? Por que estaríamos indo para este lugar? Enquanto as pessoas estavam acolhidas em suas casas, devido à forte chuva que caía, nós teimávamos em viajar para o passado. A primeira coisa em que pensamos foi conseguir um táxi. Depois da quinta tentativa, desistimos de convencer algum taxista a fazer a travessia do tempo. Ninguém queria “atolar” o carro naquela lama toda. Foi o que aconteceu conosco. Depois de muita conversa com o cunhado de Reinaldo, que, por sorte, morava em Juiz de Fora, nós o convencemos a nos levar ao nosso destino, porém, com a imposição de que seria apenas uma viagem de ida. A volta seria por nossa conta — e risco. O que podíamos fazer? Era isso ou voltar de mãos vazias. E o que diríamos à nossa editora? Naquele momento não importava mais nada. Já começava a pensar loucuras, estas coisas insanas que nos ocorrem quando estamos sob muita pressão. Se fosse preciso, iria andando. Não saberia dizer qual seria a reação do meu amigo, acostumado a andar nos eficientes metrôs de Londres, a ter, agora, que caminhar 55 quilômetros numa estrada suja. Seria difícil convencê-lo disso. Dos problemas, este era o menor. Era preferível tentar convencer um amigo “urbano” do que enfrentar uma “editora furiosa”.
E a previsão dos taxistas se concretizou. Por três vezes, ficamos presos em buracos enormes. A vista era magnífica. Montanhas e mais montanhas do mais puro verde. Uma fina neblina cortando a estrada. Poderia ficar parado lá, contemplando toda aquela beleza natural. Mas nosso destino era outro.
Na metade do caminho, cerca de 30 quilômetros, a luz do painel do carro, que indica a falta de combustível, acendeu; e com ela, o nosso medo. A esta altura, voltar não seria uma atitude sensata. Decidimos ir em frente. “Lá, ou em alguma casa aqui por perto, conseguiremos um pouco de gasolina”. Nem uma coisa nem outra. O que tinha ouvido falar da cidade era suficiente para deixar o carro e voltar dali mesmo. Mas não poderia deixar escapar essa informação ao nosso prestativo motorista. Só nos restava incentivá-lo com palavras otimistas. Passamos por algumas casas, e nunca que chegávamos. Parar e perguntar? Mas para quem? Por muito tempo não avistamos nenhuma pessoa na estrada, até que um menino, aparentando uns cinco anos, indicou que estávamos no caminho certo. “É logo ali”, disse ele. Não era. Nossa única referência era a enorme igreja. E depois de muito tempo, avistamos uma inusitada construção que se destacava no meio de muito verde. A sensação era a de estar chegando a alguma cidadezinha de Toscana. A vila fica no alto de um morro. De longe, não se vê a rua principal. Apenas a igreja e algumas casinhas ao redor, que não fazem parte do conjunto arquitetônico do século XIX. O mais curioso dessa paisagem é o fato de que estávamos a apenas 55 quilômetros da cidade grande, arranha-céus, carros, concretos. Em São José das Três Ilhas reina um silêncio quase absoluto. Uma igreja como aquela, construída no meio do mato? Algo assim só é visto em cidades muito importantes e ricas deste nosso Brasil. Não no meio do nada. É isto que torna São José das Três Ilhas única e especial. O contraste entre um imenso verde e uma construção que foi pensada para ser um grande monumento.
De longe, também é possível ver o telhado da igreja, reconstruído no ano 2000 com os parcos recursos obtidos pelos próprios moradores. A quantia de 100 mil reais fora arrecadada com festas. Uma atitude louvável, porque este intruso teto hoje serve para proteger o interior da igreja, mas não serve para manter as características originais da construção. Não é preciso muito conhecimento para saber que ele não deveria estar lá. O governo havia disponibilizado uma verba para toda a restauração da igreja, mas apenas 45 mil foram liberados. A população não podia esperar, nem a igreja. O telhado, do jeito que está agora, tira um pouco do brilho das pedras, mas não tira a beleza de seu interior.
Aproximando um pouco mais, é possível perceber a informação que para mim é a mais curiosa e que representa muito bem o momento histórico do rompimento da escravidão no Brasil. A igreja é herança dos barões do café. Os operários da época eram os escravos. Com a abolição da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, a igreja não pôde ser terminada. Não havia como exigir que os ex-escravos fizessem o trabalho. Algum tempo depois, a igreja foi inaugurada. Mas para marcar este histórico momento, o restante que faltava para seu término, cerca de 30 centímetros, foi feito com tijolos e não com pedras, como no projeto original. Por um lado, a mudança tem valor histórico e emocional, por outro lado, descaracteriza a arquitetura original. Ver aquela parte diferente era, para mim, como estar vendo o ponto em que entrávamos realmente na era da civilização. Aquela divisória, para mim, representa a liberdade. Pedras representando a escravidão. Tijolos representando a liberdade. A abolição mudou tudo. Não apenas na liberdade física pessoal, mas material. Estávamos enfim deixando a idade da pedra para entrar na idade do tijolo.
Moldar a pedra não era tarefa fácil. Mas ela sempre serviu como suporte para nossas casas e monumentos. Antigamente, em estado bruto. As construções de pedras ainda sobrevivem para nos deixar um recado do passado que não podemos esquecer. As cercas, os alicerces e a igreja de pedra de São José das Três Ilhas estão lá para nos dar um recado. Ou num passado mais distante ainda: Stonehenge, na Inglaterra, e tantos outros monumentos. O homem, com dificuldade, transportava e moldava estas pedras para transformá-las em símbolos. Mas a que custo? Moldar o barro e transformá-lo em tijolos é mais fácil. Pagar pelo trabalho braçal também é mais simples do que escravizar um homem. Pedras e tijolos. Dois momentos históricos.
Antes de adentrar à igreja e todos os outros lugares de São José das Três Ilhas, era preciso arrumar um canto para ficar e um guia para nos levar a lugares que não conhecíamos. Para nossa satisfação, na primeira casa em que paramos encontramos o nosso guia e a nossa condução, um táxi local — o único, aliás — que nos cobrou a insignificante quantia de 5 reais para nos levar a todos os lugares, não apenas da vila, mas também nas fazendas ao redor; lugares que serviram de cenários para os filmes nacionais, nosso objeto de estudo nesta viagem. Se estivéssemos em qualquer outra cidade, pagaríamos pela mesma viagem cerca de 200 reais. Nosso guia, Ronaldo Benevelo, um senhor de cabelos brancos, e muito simpático, nos levava aos lugares solicitados e nos esperava o tempo que fosse necessário.
Logo que chegamos, não demorou muito para que o almoço começasse a ser servido. Ao pisar na pensão, devo confessar, não tive a menor vontade de comer naquele simples ambiente. O lugar cheirava a casa velha. Móveis velhos e surrados pelo excesso de uso. Por todos os cantos, pessoas velhas sentadas com seus cigarros de palha e olhares distantes. A cozinheira aparentava uns 90 anos ou mais. Não havia alternativa. Reinaldo, meu amigo, nem se importava com as minhas reclamações e ainda tirava uma onda: “você não pode estar falando sério”. Estava. Pode parecer frescura e nojo, mas, num lugar como este é fácil ingerir comida contaminada por bactérias. Em qualquer lugar podemos comer alimentos contaminados. Numa praia, numa barraquinha de beira de estrada, até mesmo no restaurante chique do cruzeiro internacional. Melhor não arriscar. Fui, a contra gosto, mas fui. Não tinha escolha. Não havia outro restaurante. Na mochila, duas barrinhas de cereais. Muito a contra gosto, caminhei até o banheiro para lavar as mãos. O lugar parecia asseado, mas não me abria o apetite. Pelo contrário. Quanto mais me aproximava da mesa, menor era minha fome. Foi então que tive uma surpresa. Uma destas surpresas que os olhos deixam enganar, por julgar alguma coisa antes que ela aconteça. Tudo por puro preconceito. Sentamos numa mesa que tinha lugar para 20 pessoas. Apenas um de seus lados foi arrumado e coberto com toalha vermelha quadriculada. Em seguida começaram a nos servir. Tudo na mais perfeita conformidade, que muitos restaurantes em resorts não são capazes de cumprir. O serviço era primoroso, mesmo parecendo que era a primeira vez que eles faziam aquilo, por falta de hóspedes, é claro! Afinal, só nos dois estávamos à mesa. Eu sabia que não era bem assim, mas era como se fosse. Tudo ao meu redor indicava isso. Primeiramente fomos servidos com uma salada de alface e rúcula, acompanhada dos mais belos tomates, ervilhas e queijo. Confesso que é difícil encontrar tomates orgânicos como aqueles. Até aquele momento, tinha pensado em comer apenas a salada. Afinal, que mal poderia haver naquelas folhas? Mas ao ver Reinaldo saborear toda aquela comida, voltei atrás. O arroz branco estava espantosamente bom. O prato principal, como não poderia deixar de ser, era bacalhoada. Não ligo para essa questão de tradição. Peru no natal, arroz com lentilhas no réveillon, bacalhau na sexta-feira santa. São costumes católicos que praticamos mais por imposição das famílias, mas que acabamos incorporando como costume culinário e não religioso. Quando nos falta, o dia, o banquete, tudo perde o sentido. E naquele dia, degustamos um saboroso banquete, num lugar onde, a princípio, eu me recusava a comer. Simplesmente perfeito. Minha sogra que me perdoe, mas aquela foi uma das melhores bacalhoadas que já comi. A batata estava no ponto. A quantidade e qualidade do azeite, as cebolas, as torradas. Difícil acreditar no que estava presenciando. Perfeito. E tudo isso por apenas 7 reais por pessoa. Inacreditável. Não era o legítimo bacalhau português, o Cod Gadus Morhua. Tratava-se de um mero “pescado salgado seco". Mas estava ótimo. Cod Gadus Morhua é o único que pode ser considerado bacalhau, de acordo com a legislação portuguesa. Ele é pescado no Atlântico Norte. Quando salgado e seco, tem coloração palha e uniforme. Já cozido, desfaz-se em lascas claras e moles. Seu sabor é inconfundível. É como o Champanhe. Só pode ser considerado Champanhe aquele produzido na região de Champagne, na França. Bacalhau não é o processo de salgar o peixe. É uma espécie.
Depois do almoço, mais trabalho. Era hora de conhecer a famosa igreja. No jardim, muito bem cuidado, uma mulher. Turista. Logo se aproximou, e trocamos informações. De máquina em punho, registrava tudo que sua objetiva podia alcançar. Uma imensidão de pedra, construída pelo homem com a finalidade de causar admiração. Aqueles senhorios do café sabiam exatamente o que queriam: serem lembrados. E conseguiram. De suas casas, tinham um sonho. Criar uma cidade. Mais do que isso, e diferente do que ocorreu na maioria das vilas que se desenvolveram ao redor de suas igrejas e viraram grandes cidades, São José das três ilhas parou no tempo. Para nosso deleite.
A igreja matriz de São José das Três Ilhas é um patrimônio histórico de causar inveja a muitas cidades. Esta pequena vila parece fazer o caminho inverso. Não cresceu. Pelo contrário. A cada ano diminui o número de seus habitantes. No seu auge, época áurea, contam alguns de seus moradores com ar de tristeza, havia neste lugar cerca de duas mil pessoas. Hoje não passam de 200. Atualmente o lugar conta com os serviços oferecidos por farmácia, mercearia e comércio apenas nas cidades vizinhas. Dentista? Médico? Na placa de papelão amarelada pelo tempo e colada na porta de uma pequena casa pintada de azul, que aparentava ter sido reformada recentemente, observei a informação de que dentista, só uma vez por mês. Perguntei para nosso guia o que eles fazem durante os outros 29 dias, sem o atendimento, caso ocorra uma emergência. Ele fingiu não ouvir minha pergunta. Melhor não insistir. Algumas poucas crianças que vi correndo pelas ruas são filhos de veraneios que por lá passam as férias ou os fins de semana, vindos do Rio de Janeiro. Os moradores, segundo Ronaldo, ficam na parte de baixo. É a parte pobre do lugar.
Ao ultrapassar a porta da igreja, a surpresa. Maior do que esperava. As colunas de sustentação fazem parte do espetáculo. Belos arcos que suportam toneladas de pedras, madeira e telhas. Lá dentro, um homem que mais tarde fiquei sabendo ser o pároco, que no dia cuidava dos preparativos iniciais para a missa noturna. Dia especial. Páscoa. Para a comunidade, é dia de sair em procissão, à noite, percorrendo as ruas e as estradas. Não sei por que, mas uma insana imagem logo preencheu minha mente, justificável por estar num lugar tão bucólico como aquele. Pensei nas pessoas caminhando pelas ruas escuras de São José das Três Ilhas com suas tochas e vela acesas, subindo e descendo becos de paredes feitas de pedra. Não era bem assim que acontecia, embora a iluminação pública não passe de um poste insuficiente para iluminar os rostos das pessoas. E por falar em sinalização pública, no alto deste poste, uma inútil placa indica a velocidade máxima permitida: 30 quilômetros por hora. Impossível atingir 15!
Recebemos o convite para participar da procissão. Meu companheiro de viagem, sempre disposto a tudo, a vivenciar novas experiências e desafios, prontamente aceitou o apelo. Participar desta festividade implicaria em dormir na pensão onde estávamos hospedados. Passar a noite ali não estava nos planos. Não estava preparado para tal situação. O lugar nos pareceu um pouco assustador e simples demais. Mas não era este o motivo. Estávamos realmente despreparados para ficar.
Dentro da igreja, admirados, andamos por todos os cantos, fotografando, perguntando, tossindo e espirrando. A poeira era visível. No altar, madeira corroída por cupins, e no canto esquerdo da parede em tons de azul e amarelo, um recorde de jornal, emoldurado em vidro, com a notícia da restauração da igreja, feita pelos próprios moradores. Um troféu pregado na parede. Sem nenhum valor para quem por lá passa, mas de grande importância para seus moradores. Sinal de que alguém, em algum outro lugar deste país, se importa com eles. No segundo andar, observo o piso de madeira, recém trocado, extremamente empoeirado, aparentando não ter sido visitado desde a sua restauração. De um lado, um imenso corredor nos leva à Sacristia, trancada por um cadeado muito antigo, totalmente enferrujado. Lá dentro, quadros, imagens quebradas, algumas pinturas dignas de admiração, poderiam estar em qualquer museu importante. Outras, nem tão belas assim. Sai de lá triste, ao ver toda aquela negligência. Subi até o terceiro andar, onde está o sino. Do alto, vi, pela janela empoeirada, um lugar que não é possível chamar de vila, nem de distrito, nem de cidade. É apenas São José das Três Ilhas. Um espaço esquecido por algumas pessoas e supervalorizado por outras. Infelizmente penso no que o homem é capaz de fazer sem dinheiro: nada. Absolutamente nada. Para construir tudo aquilo foi preciso o sangue dos escravos, que constantemente eram chicoteados, suor, e muito, muito dinheiro. Para conservá-lo, será preciso dinheiro novamente. Mas seus moradores e simpatizantes sozinhos não são capazes de muitos feitos. Vão fazendo o que podem. E perdendo o que não deviam. A história do Brasil se desfaz em meio à burocracia, poeira e cupim.
No caminho até o sino, foi preciso subir numa estreita escada de madeira, muito bem conservada. Provavelmente construída com madeiras nobres. E ninguém para me dar esta informação. Ronaldo não conseguia subir para tirar minhas dúvidas. Teria ele tido a coragem de estar lá alguma vez na vida? Fiquei muito próximo das paredes de pedras. O local abafa qualquer ruído que eventualmente venha de fora. Não ouço nada, a não ser o ranger da madeira, produzido por minhas pisadas inseguras. Não sabia onde estava Reinaldo, nem a turista ou o guia. Estava só naquele pequeno lugar, no topo de uma igreja construída há mais de 100 anos. Uma imensa vontade de ficar ali, sozinho, por algum tempo, tomava conta de mim. Melhor sentar, para observar com calma. Construir tudo aquilo, pedra por pedra não devia ter sido fácil. A técnica, observava, consiste em encaixá-las umas às outras. Medem uns 40 centímetros cada. Os espaços vazios são preenchidos com minúsculas pedrinhas. Quase tudo ao meu redor se decompõe. Mas o encaixe das pedras e a madeira da escada permanecem novos. Um trabalho feito para durar centenas de anos. O esquecimento parece fazer mais estragos que o tempo.
A visita à igreja foi apenas uma pausa antes de iniciarmos nosso trabalho. De lá, partimos com nosso guia, Ronaldo, para os casarões que haviam servido de locações para alguns filmes brasileiros. Enquanto fazíamos a lição de casa, presenciávamos o estilo de vida daquele povo. Na casa de Cristina dos Santos, cozinheira exclusiva de Selton Mello — ator que viveu o protagonista no filme Lavoura arcaica —, conhecemos uma pessoa simples, mas com muito conhecimento da vida. Lá fomos nós, falar com Cristina e saber dela suas experiências com o mundo da sétima arte. Durante a entrevista, que aconteceu na sala de sua casa, um enorme lagarto apareceu para nos fazer uma visita. “Deixa ele comigo”. Ignoramos o bicho, que mais parecia um jacaré, mas ele insistia em participar da entrevista. Aos poucos o animal foi se afastando. “Bicho que come ovo de galinha, temos que tomar cuidado”.
De lá, partimos para a casa onde foi rodado Lavoura arcaica. A princípio, Ronaldo não quis nos levar. Não se tratava de distância, nem de suas outras tarefas. Mas da fama do dono da fazenda. Até oferecemos mais dinheiro, mas ele não queria nos levar. Até que, pelo cansaço, os forasteiros da cidade grande venceram o homem. Chegamos à fazenda, e a primeira coisa que falei ao “senhorio” não foi um bom dia, ou me apresentar, como faria qualquer pessoa nestas circunstâncias. Sem deixar escapar a oportunidade, soltei: “É o senhor que tem fama de bravo aqui na região?” Pronto. Bastou esta simples frase para desmontar a guarda de todos e fazer com que a conversa e as brincadeiras se desenrolassem naturalmente na sequência. Ronaldo não estava de brincadeira conosco quando mencionava a braveza do dono da fazenda, sua fisionomia era de preocupação. Como tinha combinado em nos levar onde quiséssemos, hesitou em dizer não, mas era visível seu medo. Essa fama de mau não passava de mais um mito criado depois de algumas longas filmagens em sua propriedade. Melhor do que nosso guia taxista era o dono da fazenda, que carregava consigo alguns ressentimentos por causa do furacão cinematográfico que havia passado em sua propriedade. Apesar disso, ele foi de extrema importância para contar o que queríamos ouvir. Sua fazenda hoje está eternizada no filme Lavoura arcaica. Assim como sua fama de homem mau. A cada canto da fazenda nos mostrava aspectos de sua original construção e das transformações causadas pela produção do filme. A casa é enorme e possui uma imponente fachada, com uma escada que se estende até a varanda em estilo colonial. A fazenda não vive do turismo, mas poderia. Ele nos contou tudo o que foi feito. Sua sinceridade era excessiva. Se não nos relatasse que o muro de pedra havia sido feito pela produção do filme, nem notaríamos. Alguns matos cobrem o muro, mas está lá sua beleza em estilo europeu. Quem saberia dizer que constituía parte de um cenário? Para os desavisados, seria mais uma construção feita pelas mãos hábeis dos escravos.
O dia já estava quase acabando quando retornamos para a pequena vila. Pouco antes de voltar para Juiz de Fora, ficamos esperando o horário do ônibus que tomaríamos em Belmiro Braga, que só passava uma vez por dia, às 5 horas da tarde. Sentados em frente ao casarão, percebemos algumas pessoas se aproximando. Eram todos aqueles com quem tivemos contato durante a viagem. Queriam se despedir. A viagem havia sido emocionante o suficiente, mas ver todas aquelas pessoas juntas a nos esperar foi algo que me emocionou. Esta hospitalidade tão verdadeira é difícil de ver nos dias de hoje. Talvez seja porque a cidade não tem o costume de receber tantos visitantes. Talvez tenha sido o motivo de nossa visita o que causou neles essa estranha admiração. Os filmes produzidos na década de 90 nessas pequenas “ilhas” deixaram saudades a este povo que, por um momento, experimentou o gostinho da badalação, do estrelismo, da arte. Talvez tenhamos reavivado essa lembrança de uma época em que São José das Três Ilhas parecia se reerguer novamente. Ao longe, uma mulher se aproximava com algum animal estirado numa forma de bolo. Era o lagarto que ela acabara de abater. Pobre animal. Seria servido no jantar para duas pessoas. Literalmente, um belo lagarto assado. Nós fomos convidados a apreciar a iguaria. Ficamos satisfeitos com o convite, que foi feito com sinceridade e insistência, mas não pudemos aceitá-lo. Tratamos de acertar nossa estadia. Nos despedimos, entre fotos e abraços, carregando informações em nossos cadernos e câmeras fotográficas e lembranças em nossas mentes. E o que será que deixamos a eles? Foi a partir desta viagem que comecei a pensar nessas questões. Nessas mudanças e lembranças que nós, turistas, também deixamos nos lugares visitados. Naquele momento, percebi que seríamos, para todas aquelas pessoas, motivo de conversa por muitos e muitos dias.
É claro que, depois de toda aquela viagem, não poderíamos pagar apenas os cinco reais cobrados pelo nosso guia e taxista. Deixamos com ele uma boa gorjeta e partimos de volta, satisfeitos por tudo o que havíamos presenciado e vivido. São José das Três Ilhas está na memória como a viagem mais inusitada e surpreendente feita ao interior do Brasil. Afinal, quando vamos ao Rio de Janeiro, ou Florianópolis, sabemos o que vamos encontrar. Mas quando viajamos, melhor, nos transportamos ao passado presente de São José das Três Ilhas, é preciso se preparar para entrar num mundo de sensações e emoções.
Encontrar apenas pedras e uma grande igreja construída no século XIX por alguns escravos. Era esse o meu medo. Mas não foi só isso o que encontramos. Descobrimos pessoas que não se enquadram na terminologia de moradores rurais, nem urbanos. Quem são esses remanescentes habitantes de São José das Três Ilhas? Eles estão entre a cidade e a roça. Perdidos, estão tentando criar identidades. Mas nesse caminho, alguma coisa se perde. São pessoas que parecem viver do passado. A lembrança de um tempo obscuro, numa época de muita riqueza material, mas pobre em espiritualidade. Lembranças de um tempo de arte, vivido pela produção de filmes caros. E agora? Qual será o futuro da arquitetura e dos habitantes de São José das Três Ilhas? Qual o propósito deste povoado? Está reservado aos turistas, que aos poucos vão descobrindo suas peculiaridades e suas belezas naturais? Ou deveria ficar reservado ao passado? Ao esquecimento? São José das Três Ilhas repousa por um tempo sob pedras e esperanças, mas estará, para sempre, guardada em minhas lembranças.

***
Texto publicado no livro “Lugares, viagens e aventuras” www.revistagriffe.blogspot.com


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