O CONFIDENTE SOLIDÃO.
Condorcet Aranha
A Belmira, aposentada,
Foi morar em Esperança,
Na casa velha, comprada,
Com o dinheiro da herança,
Deixada por seu marido,
Conquistada num seguro,
Que recebe o falecido,
Pra garantir seu futuro.
A casa velha e pequena,
Tal qual aquela cidade,
Fazia parte da cena,
Da rua Felicidade,
Que além do número quinze,
Tem um portão de madeira,
Onde por certo, ela finge,
Ser feliz de tal maneira,
Que a vista da vizinhança,
Fica claro na verdade
Que ela guarda é esperança,
Além de muita saudade.
Pessoa muito simpática,
E bem comunicativa,
No seu portão era prática,
Reunião coletiva,
Das vizinhas curiosas,
Com as histórias de Belmira,
Sobre seus filhos e filhas,
Da cidade de Palmira,
Metrópole invejada,
De região progressista,
Pela mídia propalada,
Gigante a perder de vista.
Sempre no final da tarde,
Em seu portão de madeira,
Depois de bastante alarde,
De assunto sério e besteira,
As vizinhas iam embora,
Deixando o velho portão,
Pra quem do lado de fora,
Sem mágoas no coração,
Tornava-se o confidente,
Dos sentimentos reais,
De Belmira, como gente,
Cujos filhos nunca mais,
Vieram lhe visitar,
Alegando que o trabalho,
Levava, além de cansar,
Da vida, o farto tassalho.
Mas no curso da existência,
Belmira é apenas uma
Das muitas que a tal ciência,
Não acha razão nenhuma,
Pra poder justificar,
A quem doou só o amor,
Porque no fim amargar,
Tamanha saudade e dor.
Parece ser na verdade,
Do velho a maior herança,
Engolir dor e saudade,
Para expelir esperança.
Sempre muito faladeira,
Carismática e bondosa,
Belmira, alegre e faceira,
Prendia a todas com a prosa,
Repetindo sem cansar,
Dos filhos tantas façanhas,
Fazendo desconfiar,
Ter os contos, muitas “banhas”.
A Clotilde que morava,
Em frente, no vinte e dois,
Todo o dia lá estava,
Só, que chegava depois.
Pois, ao voltar da escola,
Ia, em casa, se trocar,
Guardar a sua sacola,
Para às outras se juntar.
Assuntos dos mais diversos,
Desde o lar, moda e novela,
Acabavam até dispersos,
No refogar da panela,
Onde o guisado escolhido,
De frango ou de camarão,
Era sempre o preferido
E a grande sensação.
Outra vizinha engraçada,
Que residia na rua,
E tinha a boca esgarçada,
Falando qual cacatua,
Era a Maria Cenira,
Que em cada história contada,
Uma sempre era mentira,
Portanto, verdade? Nada!
Mulata faceira e linda,
Sempre muito cobiçada,
Contava casos, ainda,
De uma nova “cantada”.
A Josefina Ventura,
Senhora bem reservada,
Mercê de sua cultura,
Ficava sempre calada,
Escutando muito atenta,
Aqueles casos incríveis,
Desde de o oito até oitenta,
Mas todos eles passíveis,
De uma análise melhor,
Pra conseguir separar,
Qual mentira era menor,
Pra poder acreditar.
Importante é que Belmira,
Com maestria e destreza,
Entre a verdade e mentira,
Mantinha com singeleza,
O grupo bastante unido,
Toda tarde em seu portão,
Que apesar do rangido,
Separava um coração,
Sofredor e constrangido,
Doando compreensão,
Aos problemas das vizinhas,
Encontrando a solução,
Para todas ladainhas,
Recebendo aclamação.
Ao findar o bate papo,
Com seu portão já vazio,
Belmira, num gesto guapo,
Trazia pro cão vadio,
Encima do guardanapo,
O devido passadio,
Que deixava no portão,
Confessando para o amigo,
Sua enorme solidão,
Que parecia um castigo,
Cravado em seu coração,
Por um tremendo inimigo.
O cão vadio a olhava
E parecia entender,
O que ela lhe contava,
Pois não se punha a comer,
Enquanto ela não entrava.
Depois da porta bater,
O cachorro “Solidão”,
Logo se punha a comer,
Evitando que outro cão,
Como ele, alma perdida,
Viesse lhe importunar,
Compartilhando a comida
Ou sua água tomar.
Numa tarde de verão,
Quando cigarras cantavam,
Numa grande agitação,
As vizinhas se encontraram
Em frente ao velho portão
Onde a Belmira aguardaram.
Naquela tarde, porém,
A anfitriã não chegou.
Ou foi visitar alguém,
Ou cedo se aconchegou.
Assim pensando, as amigas,
Papearam e foram embora,
Mas carregando as intrigas,
Dispersaram, sem demora.
Logo depois, quem chegou,
Foi o fiel confidente,
Que no portão se postou,
Teimoso e persistente,
Por horas, ele esperou,
Mas Belmira, ainda ausente,
Fez cansar seu Solidão,
Que dormiu no seu portão,
Com sede e fome, é verdade,
Porém com maior saudade.
Na manhã do outro dia,
A casa quinze, fechada,
Onde nem barulho ouvia,
Clotilde desconfiada,
Chamou vizinhas na rua
Para a Belmira acordar.
Mas, para surpresa sua,
Depois de tanto chamar
Sem ninguém lhe responder,
Algo diferente é certo,
Estaria a acontecer,
Teriam que ver de perto.
Foram na delegacia,
Contaram o estranho fato,
E ainda no mesmo dia,
Foi montado o aparato.
A polícia lá chegou,
Bateu na porta e janela,
Belmira, Belmira! Chamou,
Não teve resposta dela.
Então, a porta arrombaram,
Caminharam pela casa
E quando no quarto entraram,
Belmira apenas dormia,
Sem alma, pálida, morta.
Por isso, naquele dia,
Nem sequer abriu a porta.
Todos os procedimentos,
Foram feitos com destreza,
Apesar dos sentimentos,
E da enorme tristeza,
Que tomou a vizinhança,
Pois ali na casa quinze,
Em frente ao velho portão,
Quem por lá passa até ginge,
Também morreu Solidão.
Dois dias após Belmira,
Sem nenhuma explicação.
Pois ao encontrarem a carta,
Deixada na despedida,
Belmira até descarta,
Grande paixão pela vida.
Mas fala com emoção
E toda a carta dirige
Ao vadio, Solidão,
Explicando ao confidente,
Que a solidão é cruel.
Foi assim e num repente,
Que escreveu no papel,
O sentimento da hora,
O amor que tinha por ele,
Ao sentir que ia embora,
Não poderia esconder,
A dor cruel da saudade,
E a cruz do seu padecer.
O que seus filhos negaram,
Deixando-lhe a solidão,
Todos os dias chegaram,
Na alma do velho cão.
A quem muito agradecia,
E até pedia perdão,
Porque, só, naquele dia,
O batizou Solidão.
Foi sentimento verdade,
E até lhe convidava,
Para fugir da saudade,
Indo lá, onde ela estava.
Porque morreu Solidão?
De doença ou de velhice?
De saudade ou solidão?
Ou foi porque ela disse,
Ter cansado de viver?
É difícil de entender!
Cachorro não sabe ler!
Ou Solidão esqueceu,
De sua carta escrever,
No dia em que faleceu?
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