Haverá dias em que você sairá da cama pisando em lodo. Caminhará pelo quarto em direção ao banheiro como se estivesse em uma selva. Purgará o rosto como se fosse lascas de pedra com barro. Beberá o café achando que são folhas e galhos secos. Acostará a roupa para o trabalho como se vestisse ferrões. Olvidará do perfume, do celular, e do relógio. Tropeçará no degrau da saída. Fará um pequeno hematoma roxo-esverdeado no cotovelo, depois de lançar uma pancada inocente na porta do carro. Olhará para os outros humanos aspirando sepultar-se no Deserto de Danakil . No trabalho, haverá fardos permanentes e fúria de tensão. O cinto da calça tentará te cortar ao meio. Seus ossos se talharão em pó na corrente sanguínea. Tomar água, fenderá a garganta. Tentará se burlar, dissimulando a carência com uma música “dance”. O sol ficará acanhado entre as nuvens, e um frio escarpado dimanará em seu estômago. Um argueiro, cairá sobre seu olho (terá a sensação de que é um calhau). Você se penetrará em uma câmara sinuosa de pechas, e responderá com olhos derribados qualquer pergunta que te façam. Sua melancolia eclodirá como uma tatuagem na pele. Não haverá concomitância com nada. Todos os fragores terão semelhança com um relógio registrando as horas para você cessar a vida numa overdose de fármacos.
Quando este momento chegar, uma estalada do tempo lhe concederá um vaticínio:
“Estoure sutilmente esta bolha com seu alfinete paládio”.
Nossa consciência é categórica. Motivação é uma janela que se abre por dentro.
Você acordará. Então, pardais, rolinhas e pombas farão sarau no telhado. Joaninhas apostarão corrida na beira da janela. Alguém passará sorrindo ao seu lado. Irão te presentear com bolo de fubá e balas de caramelo. Dobrarão para você (em segredo), um aviãozinho de papel. Compreenderá afinal, que se perder tempo com a escuridão, não avistará nenhuma luz.
Agora o lodo não existe mais. Extraviou-se!
O telefone toca. É um convite para um jantar no sábado à noite...
(Rafael B. Sanches)
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