As paredes pareciam se fechar em torno de mim enquanto a pouca luz se esvaia por algumas frestas que eu não conseguia localizar. Em pouco tempo estava rodeado por escuridão para depois mergulhar no desespero da incerteza. Pulei do local estava e tentei tatear o breu. Em nada encostava e nada também via. Sabia que estava preso e sentia o espaço a minha volta diminuir. Virei e vi uma pequena luz vermelha , parecendo flutuar no infinito. Atirei-me nela, chocando a ponta dos dedos com algo como uma parede em torno dela. Agarrei-me na pequena fonte de luz que me dava um pequeno fio de esperança Uma pequena luz vermelha a qual eu tateava e imaginava ser uma pequena faísca de alguma fogueira distante. De algum modo eu me imaginava entrando dentro dela e fugindo deste lugar insano. Então tudo se acalmou e acabou-se. Foi uma noite tranqüila.
Todas as luzes acima de mim se ligaram e encontrava-me dentro de uma sala circundada por vidros. Atrás dos vidros, pessoas dentro de jalecos brancos me observavam inundadas por luzes brancas. De uma caixa metálica no alto saiu uma voz igualmente metálica chamando por meu nome.
- Sr. Sitrucian, por favor deite-se. Está tudo sob controle.
Centromorf, centro de pesquisa de distúrbios do sono, este é o nome do local dono das paredes que há pouco queriam me esmagar. Na verdade, eu apenas imaginei que elas queriam, mas tudo parecia muito real. Aqui estou em tratamento, há algum tempo, mas nada parece ter mudado. Deitei-me novamente e esperei eles entrarem. A faísca na qual minha vida se apoiava era a luzinha da câmera da sala. Aumentaram meu sedativo e entrei no mundo dos sonhos. No outro dia – ou mais dias depois, perdi a noção do tempo dentro deste lugar onde não vejo as nuvens passar – levaram-me à sala da Dra. Blackmore, assim como fizeram todas as outras vezes que acordei. Sentei-me na fria poltrona de couro que encara sua mesa e aguardei ela terminar de escrever algo em um papel. Logo depois ela me abordou.
- Sr. Sitrucian, não sei o que lhe dizer.
- Não diga, eu já sei o que acontece. Já se passou um bom tempo que estou aqui. Não saberia lhe precisar quanto, mas sei que faz muito, pois alguns rostos que me eram familiares parecem se apagar de minha memória. Seis meses, um ano, cinco anos, não saberia lhe precisar o tamanho da eternidade. Mas sei que parece que entrei aqui ontem, antes de minha primeira noite aqui, pois não me sinto melhor. Calma, não fale, eu falo por você. Minha claustrofobia aguçada somada ao meu distúrbio de terror noturno, ou “Pavor Nocturnus”, como vocês preferem falar, está além de qualquer estudo médico já feito. Também esqueci de mencionar a paralisia noturna, a qual você começará a explicar quando o corpo atinge um estado de sono profundo, ocorre uma mudança química nas regiões do cérebro responsáveis pela atividade muscular. O objetivo é paralisar os músculos para evitar que os movimentos dos sonhos sejam reproduzidos na vida real. Algumas pessoas acabam despertando durante esse período, com os músculos ainda paralisados. O meu caso é mais incomum por isso, junto dos outros problemas já mencionados, acontecer todos os dias. Apesar de vocês não terem uma solução para mim, não podem me liberar, pois ainda sou considerado uma ameaça para a minha pessoa, pois durante o sono, ainda posso agir de forma perigosa do mesmo modo que aconteceu quando matei minha esposa durante um ataque de terror...
Não consegui terminar a frase, desmanchei-me em lágrimas e soluços. A cena fatídica do dia 17 de janeiro de 1984, quando acordei e deparei-me com o corpo dilacerado de minha amada esposa, que fora brutalmente assassinada, deitada em uma poça de sangue em nossa cama, retornou à minha mente.
- Sr. Sitrucian, por favor, controle-se. Creio que sua estadia conosco não lhe trará nenhum avanço. Ao longo destes quase três anos que esteve nesta clínica, seu quadro...
- Quase três anos... estive casado com ela por apenas um ano. Tivemos um ano de namoro. Estive mais tempo aqui do que com ela. Conheço você há mais tempo que conheci ela. Eu... apesar do que disseram os tribunais, apesar do que vocês dizem, eu me sinto culpado. Eu sabia do problema, mesmo que fosse menos grave na época. Eu me privei de tanta coisa, tanta coisa que ela queria fazer...
- Não pretendo me repetir, mas o acontecido ocorreu em um estado que você não respondia por si. Seu quadro, mesmo que tenha piorado depois do acontecido, mesmo que tenha se tornado diário, era patológico. Enfim, apesar de tudo isso, o que quero dizer, é que nós lhe daremos alta, desde que o senhor siga uma série de recomendações que deverão ser obedecidas todas as noites antes de dormir.
Não sabia se a agradecia ou a almadiçoava. O caso foi que no mesmo dia eu já estava fora da clínica. Fui para um hotel, ignorando completamente todas as recomendações que me foram feitas. Arrependi-me do dia em que dei entrada naquela maldita clínica. Talvez todas essa periculosidade onírica devesse ser levada até o fim para eu pagar pelos meus atos. E foi isso que decidi fazer. Sou culpado e um preço deverá ser pago. Dentro da clínica eu não conseguia raciocinar, mas agora está tudo tão claro. Se eu morrer durante estes ataques, o preço pelo meu pecado terá sido pago da forma mais rápida e simples. O que pode significar que a culpa foi sobreposta ao dolo no meu crime. Caso contrário, caso eu permaneça o resto da eternidade sofrendo estes esmagamentos da escuridão e sofrendo com as paralisias noturnas, quer dizer que..., prefiro nem pensar. Depois da primeira noite, tive medo. Acordei no meio da noite, mas o sobressalto foi menor; eu havia deixado o abajur ligado. Uma grande fonte de luz em desperta rapidamente. Fico pensando o que me aconteceria em total escuridão, sem nenhuma luzinha de câmera ou de interruptor. Somente as palavras morte certa vêm a minha cabeça. Morte rápida, esta idéia me traz alívio.
Para comemorar esta nova fase de minha vida, programei uma viagem, algo que sempre quis fazer, mas estava preocupado comigo mesmo. Comprei uma moto nova e decidi ir para o Chile, como havia feito na lua de mel. Ela teria gostado. Foi uma viagem longa, mas sem muitos percalços. Dormia pouco, às vezes em hotéis de beira de estrada com todas as luzes do quarto ligadas, ou quando estava uma noite clara, ao relento. Durante o trajeto passei na mesma cidade na qual eu havia estado com minha esposa. Um povoado que fica na divisa de três países: Chile, Bolívia e Peru, o qual nos assombrou muito. Sua localização era de difícil acesso, paramos ali por estarmos perdidos e fora do mapa rodoviário. Devido a sua situação geográfica, houve uma discórdia entre os dois países para saber a nacionalidade do pequeno povoado. O caso era centenário, e parece ter sido abandonado pelos governantes. O povoado pertencia a ninguém e isso não tinha a menor importância para seus moradores todos seguidores de uma religião única, onde cultuavam seus deuses próprios, diferente de qualquer um que já havíamos visto. Não eram índios, mas também não eram de todo civilizados. Moravam em casas de madeira, andavam pobremente vestidos e a igreja da tal religião parecia controlar as leis e todos os costumes. Durante nossa estada aqui há uns quatro anos, tivemos a oportunidade de acompanhar um caso bizarro. Havia um julgamento na praça do povoado, onde um jovem rapaz e uma garota estavam sendo julgado por crimes por nós não compreendidos. O rapaz possuía diversos desenhos em seus braços, como tatuagens. O desenho de uma grande lançava figurava em seu braço direito. Já a garota carregava diversas pulseiras de um metal prateado nos seus braços. Os que deveriam ser os juízes falavam uma língua estranha, um dialeto do espanhol chileno. Ninguém se importou com nossa presença ali, aliás, nem parecíamos notados. Devido a nossos compromissos com horários de hotéis, não pudemos acompanhar o final do caso, mas o que tudo indicava, não parecia ter sido muito favorável para o casal, mas eles pareciam resignados a aceitarem seus destinos. Ainda teríamos que nos encontrar, e ninguém no povoado conseguiu nos ajudar. Demorou, mas conseguimos retornar à estrada. Acabamos perdendo uma diária do hotel.
Quando passei aqui pela segunda vez, me pareceu ainda mais difícil localizar o povoado, mas o relevo e a natureza do local eram inconfundíveis. Porém algo estava diferente. Onde seria a entrada do povoado, existiam duas estátuas que há quatro anos ali não estavam. Ela tinham quase três metros de altura, bases largas de dois metros quadrados que iam se afinando ingrememente até culminar cada uma em um ornamento diferente. À direita, havia uma estátua de cabeça de um touro com olhos redondos, boca arregaçada mostrando dente pontiagudos e chifres longos no topo; uma aparência demoníaca, enfim. À esquerda, uma estátua de uma cabeça de um pássaro, algo parecido com uma águia, mas que guardava a mesma semelhança demoníaca que tinha a cabeça de touro. Uma sensação ruim me impedia de passar por entre elas para entrar no povoado. Em cada estátua, havia uma abertura de uns vinte centímetros quadrados, uma voltada para a outra e em frente a cada abertura havia uma tigela. Aproximei-me e vi restos de comida dentro de cada pote. Notei uma figura vindo ao longe, vestido com uma túnica cinzenta. Afastei-me um pouco das estátuas, mas não teria sido necessário. Eu estava visível e ele não notou minha presença. Apenas se preocupou em recolher os dois potes e ir embora com eles. Fiquei ali por algum tempo admirando as estátuas e tentando decifrar o tal ritual qual o significado das estátuas, quando algo assustador aconteceu. Um braço humano saiu da abertura da estátua do touro, tentando esticar-se ao máximo. Ouvi alguns sussurros e vi outro braço saindo da abertura da estátua do pássaro. Reconheci os braços: um tinha o desenho de uma grande lança.
Subi em minha moto pensando que há coisas piores que a morte. Esta noite dormirei de luzes apagadas.
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