Praça da alfândega
- Vem cá vocês duas. Tão sabendo que agora sou eu que mando no pedaço. Vão me respeitando. Tá ouvindo negrinha? Senão estouro teu olho. Me respeita, tá sabendo?
- A Joana já pagou a pensão?
- Não sei, e nem quero saber. Esse negócio da pensão não é comigo agora. Fica lá com tuas negas que eu tô mandando nesse pedaço de buzina. Pensão e o diabo a quatro não é comigo. Se o Cabelo era do mal, você não querem nem me conhecer, tá sabendo? Faz teu serviço direitinho que ninguém se machuca.
Quando a alma se perde? Com certeza não foi neste momento enquanto o cafetão cospe ordens na cara de Emília Ela já foi bonita, já foi requisitada, já foi disputada. Hoje, aos 43 anos faz programas por um saquinho de vale-transportes.
Aos 13 anos fugiu de casa com um namorado que dizia lhe amar como nunca. Em alguma coisa ele não mentiu. Amou-lhe como nunca, enquanto durou. Pena que foram rápidos seis meses. Guria boba que ela era, acreditava em tudo que ele dizia. Primeiro amor, primeira desilusão. Filho da puta fugiu com a primeira ruiva siliconada que apareceu na frente dele. Emília ficou só, em uma terra de estranhos, onde de vez em quando arrumava um beque para se desligar dessa vida de amarguras. Um dia, rondando uma carrocinha de cachorro quente na rodoviária para ver se ganhava uma migalha, um cara a achou. Disse que ela perdia tempo na rua. Levou-a para uma casa onde havia outras mulheres. Deram-lhe banho, cortaram-lhe os cabelos, pintaram-lhe as unhas e jogaram-lhe em um quarto com um velho que tinha idade para ser seu avô. Não pode deixar de pensar que seu pai fizera a sua mãe, a mesma coisa horrível que lhe faziam agora. Assim como Emma Zunz rasgou o dinheiro que o velho deixara em cima da cabeceira, e assim como Emma Zunz arrependeu-se tão logo o fez. Pelo menos, o dom de sua vida era se conformar com as dificuldades.
Aos 17 anos era deusa na Tia Mônica. A mulher mais cara de lá. Ganhava presentes e jóias de velhos ricos e debilitados. Levou homens à miséria em troca de um simples noite de falso amor. Fez se apaixonarem e os maltratou. Ganhou muito dinheiro, gastou muito também. O céu era o limite; descolou cocaína e ecstasy. Tinha mais do que migalhas. O tempo passou e as drogas deixaram suas marcadas, depreciando o material. Foi transferida para uma outra casa, lá na avenida Farrapos. Não era das piores, mas o tempo de vacas gordas tinha passado e a colheita não tinha sido poupada. Ainda arrebatava muitos olhares dançando e se enroscando no poste. O dinheiro continuava entrando e saindo com a mesma rapidez. O crack lhe proporcionava o mesmo prazer que ela dava aos homens que a procuravam. Certo dia, estava tão chapada que não viu que o cliente não havia usado camisinha. Dois dias depois o corrimento já indicava sinal de problemas. Foi expulsa da casa e foi parar na rua.
Nas ruas, esbarrou no mesmo cara que a colocou nessa vida, já contava 15 anos desde a primeira vez que se encontraram. Como ainda guardava alguma beleza de sua juventude, ele lhe arranjou um lugar para morar e a colocou no ponto na esquina da Santo Antônio com a Farrapos, ao lado de um posto de gasolina, junto de uma outra loira e uma mulata. Era o primeiro ponto da Avenida Farrapos. Muita gente em carro bacana parava, muitos levavam, outro ficavam de voltar depois. Muito piá sem grana só querendo zoar com elas, tentando ganhar sexo de graça. Um dia, ela e a mulata foram para o drive-in com mais três marmanjos. Foi estranho, elas não gozaram, como sempre; eles não gozaram, como nunca aconteceu antes com elas. Eles mesmo desistiram, não brocharam, apenas desistiram. Ela pensou em devolver-lhes o dinheiro, “mas que se foda”, pensou ela “preciso disso mais do que eles” e foi procurar seu traficante. Não voltou para seu ponto aquela noite, tomou uma overdose e ficou no seu quartinho, lembrando de tudo que já passara na sua vida, ainda rondando a carrocinha de cachorro quente, esperando por uma migalha. Havia gastado todo seu dinheiro e também a parte de seu dono, o qual não tolerou tal abuso e aplicou-lhe um castigo machadiano. Cozeu um ovo e enfiou-lhe na boca e mandou morder. Não teve coragem e levou um soco na boca, fazendo com que o ovo se partisse e lhe queimasse por dentro. Ficou com aftas do tamanho de grandes moedas e durante muito tempo não pode chupar um pau. Ganhou pouco dinheiro, descuidou do corpo e teve que sair do ponto onde trabalhava. Cada ano que passava, quanto mais de depreciava, ia mais para o final da Farrapos.
Quando estava na quadra mais próxima dos travestis, foi mandada para a rua Garibaldi, onde trabalhou durante dia e noite. Dormia apenas 4 horas por noite. Às oito da manhã já tinha que catar gente na rua, puxando pelos braços, querendo forçar um prazer. Voltou às escassas migalhas. Dormia em um quarto junto de outras três mulheres, tão descuidadas e maltratadas como reféns em cativeiro. Mas não era isso que ela era? Uma refém da vida? Vez que outra lhe sobrava dinheiro para um beque. Crack não mais conseguiu comprar, nunca tinha dinheiro suficiente. Todos seus pertences, ela conseguia juntar em três cabides que pendurava em um armário coletivo. Ali na Garibaldi sofreu tudo que poderia agüentar. As poucas migalhas que lhe restavam no prato foram jogadas na sarjeta, junto do pouco que restava de sua dignidade e esperança. À noite, sonhava com a cidade que deixou, com os prazeres da vida, que muito desfrutou quando jovem. Seria um novo Sidarta, já que renegou tudo, trocando por uma vida de miséria.
Voltava para aquilo que ainda chamava de casa quando um tiro rasgou a noite. Ela correu para ver a batida policial terminada em tragédia. Um freguês que por ali passava reagiu mal à blitz e levou um balaço nas costas. Terrível engano. O tal cliente era um deputado. Resolveram armar para que o autor do disparo fosse qualquer um, menos um policial. Sobrou para ela. Um julgamento rápido, um crack antes do interrogatório e quando ela caiu na real, estava na penitenciária Madre Pelletier. Se a vida já lhe foi má, ali ela atingiu o auge da perversidade. Ganhou marcas no corpo e na alma, mostrando os caminhos que Emília teve que trilhar. Durante 10 anos sofreu como uma cadela amarrada em um pára-choque de carro. Ficou todo esse tempo sem dormir, sem almoçar, sem sonhar, apenas com medo.
Quando saiu, voltou ao seu antigo ofício, mas nem para a Garibaldi ela era boa suficiente. Conseguiu arrumar um bico na Praça da Alfândega, onde espera terminar sua carreira e pensa em um dia se aposentar.
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