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VIII - Aquarius
Europa Sanzio

Resumo:
[ESSE TEXTO FAZ PARTE DE UMA NOVELA, COM ESSA SENDO A OITAVA PARTE]

Domingo, 3 de Setembro

É uma tarde de completa calmaria nesse instante. O sino da igreja começou, chamando o povo à missa. Consigo sentir daqui o perfume recém colocado por Teresa. Escuto a risada nervosa dos dois infelizes que tenho que chamar de filhos! Cada minuto na companhia deles vem se tornando uma rotura desde que me vi confrontado cara a cara com a doçura da menina da ruazinha sem graça. Queria ter ela como a minha terceira filha, nesses mesmos corredores que agora mesmo ecoam essas risadas bestas desses moleques. Ela seria uma luz tênue e fraquinha no meio desse horror, poucos a apreciariam em sua totalidade, mas não importa, eu estaria entre essas poucas almas e seria eu o que mais aproveitaria.

Cada dia se intensifica o favoritismo da minha mente em se ocupar nas recém coisas descobertas sobre a criatura dócil. Antes de tudo, agora tenho o seu nome. Me-lin-da. Nesses últimos dias, tive que observa-la ainda mais às escondidas. Agora ela tem o meu rosto. Talvez até já o tivesse antes mesmo da minha ida até sua casa, mas agora eu sou o homem que a tomei como protegida, tenho de ter certa discrição em meus atos. Assim, vejo-a entre as folhas das árvores que me servem de camuflagem. Aprecio-a escorado em um carro, do lado oposto à rua que ela se encontra. Contento-me em vê-la meio embasada e um tanto escondia. Sem problemas! Eu consigo tirar as mais completas conclusões só tendo esse pouco.

O segundo de tudo é que agora eu conhecia a melhor versão dela. Sempre se vestia com variações desta, mas o seu grosso nunca mudava. Eram as suas meias três quartos, que paravam bem acima do joelho, com suas listras pretas circundando suas pernas. Havia a sua saia azul anil presa na cintura, sua camisa de botões meio amarelada, de cor parecida com as próprias páginas desse caderno. Seu penteado favorito. Os rabos de cavalo com fitas! Mas o melhor da melhor versão, senhores, eram os atrevimentos de tons que ela ousava colocar. Seus sapatinhos eram todos em vermelhos vivos, nunca em outra cor. Não um tom mais vinho ou um tanto mais alaranjado. Todos em vermelho berrante. Ninguém usava cores nos pés como aquela! E lá estava a menininha de Bouguereau com seus sapatinhos gritantes pisando por aí. Cor tão inusitada quanto esta era a que ela de vez em quando usava para pintar os lábios. Quando ousava fazer, era sempre assim: saia da casa com o batom nas mãos e enquanto descia a rua, pintava os lábios, sem espelho, sem conferir se estava impecável, como se tivesse total domínio sobre o seu próprio corpo e nunca errasse. E então sua boca também ficava em vermelho, em um tom considerado até obsceno pela maioria das damas. Ficava ela com esses dois pontos berrantes em si, nos pés e nos lábios. Mesmo assim, não tinha quem ousasse chamar aquela inocente criatura de vulgar só porque usava um batom daquele. Ela, diferentemente das outras moças da sua idade, não enrolava a saia na cintura para dar mais lugar às coxas. Tampouco abria botões da blusa para se mostrar. Ela, ao contrário, exalava uma ternura quase infantil, com seus rabos de cavalo colocados em cada lado da face, suas pisadas meio sem jeito, como uma criança que ainda não tem domínio sobre seu passo. E os saltos que dava aqui e acolá enquanto caminhava? Não era raro. Como qualquer criança que se ver empolgada com alguma coisa!

No comecinho da tarde fiz questão de me escorar em algum canto para vê-la através das frestas das folhas e dos galhos das árvores da praça. Espiei-a saindo sozinha da casa, com certo atrevimento e o batom na mão. Enquanto ela saltitava descendo a rua, eu narrava em cochicho suas próximas ações para mim mesmo.

Abre a tampa do objeto, gira, deixa sair a sua cor, espalha pelos lábios que já são naturalmente rosa. Em seguida, faz, com toda minuciosidade, o que eu adoro vê-la executar: deixa que a boca faça biquinho e desliza a os lábios recém pintados pelo dedo indicador. Observa por meio segundo o rastro vermelho que fica sobre o seu dedo. Depois, com o mesmo vigor, enfia o dedo seguinte na boca, faz o mesmo que havia feito com o anterior. Segue com isso até chegar ao mindinho, onde o olha com satisfação, após conferir que não havia restado nenhum resquício de batom na pele. O grand finale vem quando ela passa a língua por seus dentes da frente. Pronto. Era a sua tradição. O batom não iria manchar os seus dentinhos!

Ah, Melinda! Como ela é cheia de detalhes! Coisinhas pequenas que me enchem de alegria por saber que existem em alguém tão, mas tão...

Senhores, o único relato que pude dar-lhes hoje foi esse. Pois fiquei com essas cenas tão bem colecionadas em minha mente durante essa semana à espreita! Meu mundo anda girando em torno disso. Não poderia escrever sobre outra coisa que não fosse Melinda.

Ah, mas aconteceu outro causo. Não sobre a menina. Sobre o infeliz do meu filho mais velho. Devo eu nunca ter falado dele por aqui. Ele é-me tão desprezível que com certeza não devo ter feito isto. Pois bem. Mandei-o tomar rumo na vida e nas próximas semanas estará indo para Belo Horizonte cursar a Faculdade de Direito. Fez birra e manha. Esse é um daqueles filho típicos de Vila Doracy, nada espera da vida. Mas, queira ele ou não, irá. Dentro de um ano mando o próximo. E assim, quem sabe, poderei eu ter um pouco a mais de paz.

[CONTINUA]


Biografia:
Leio desde criança, quando comecei a achar o mundo enfadonho em demasia. Escrevo desde a adolescência, quando senti a necessidade de dissertar sobre aquele mundo tão tedioso. Prazer, sou Europa!
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Publicações de número 61 até 63 de um total de 63.


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