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Vizinho de Frente
Lucas Dames

Numa pequena cidade do interior do país - num desses brasis -, Felix recebia os convidados em casa; contente e alvoroçado com os últimos preparativos da sua festa de aniversário. Quando viu Tácito, alegrou-se ainda mais. Era seu vizinho de frente e um homem que gozava algum respeito e importância na cidade. Além da boa vizinhança, gostava mesmo do cara, apesar de achá-lo meio seco e, às vezes, politicamente correto demais. Felix era um comerciante de origem pobre e de pouca instrução que conseguira prosperar, mantendo certo conforto - ali visto como luxo e com interesse. Já tinha grana pra usufruir com a família muito além do que seus universos concebiam; orbitando ao redor de novidades eletrônicas, pacotes de viagens óbvias e comidas cujos nomes não sabiam falar direito. Era muito satisfeito fazendo o que gostava e vendo seus filhos terem o que nem de longe sonhou e sua esposa sorrindo com sua pele e penteados novos.
- Ah, vamu chegar! Vamu chegar, Tácito. Pensei que nem viesse mais. Mora tão longe, né?! - e sorriu. Sabe que a festa não começa antes de você chegar!
Tácito riu, o abraçou e retribuiu os louvores. Depois de lhe desejar felicidades e lhe entregar um presente, ficou a conversar largamente com ele e com outros homens mais ou menos de sua faixa etária. Albertinho logo se achegou, rindo exageradamente e dando razão a tudo o que Tácito dizia. Era um desses caras que concordam com o tudo de todos. Mas não agia por falsidade ou falta de opinião própria, conquanto não a tivesse em algumas ocasiões, deveras. Ele tinha preguiça da discordância; do debate. A cada um amoldava o próprio espírito; e era feliz assim. Trabalhando apenas o necessário para gastar com farras e prazeres egoístas, vivia mais da misericórdia e dos favores de uns parentes; e era feliz assim. Nutria um verdadeiro apreço por Tácito; talvez porque este fosse de família tradicional da cidade, que deteve algum poder político e econômico. Pôde ter boa formação; estudou na capital; conheceu novos horizontes; gente de variadas tendências e origens. Abertinho, que nunca saíra dali - sempre nas mesmas ruas e rotinas -, gostava de ouvi-lo.
Uns 25 minutos depois, Tácito já estava sentado, enquanto Felix contava histórias que todos já conheciam há tempos. E todos riam; Albertinho se contorcia. Mas quem olhasse bem pra Tácito perceberia uma leve cara de enfado que cada vez mais ia se descortinando, como o riso em quem tenta evitá-lo. Buscou refúgio para o tédio vagando o pensamento numa menina de uns 15 anos... a sua novinha fogosa a quem tinha gosto em dar presentinhos! Porém, seu rosto já estava sério. Mexeu-se no sofá e fez uma pose de gravidade. Ao seu lado, sua mulher, escandalosamente vestida com excesso de pudor, bocejava vez ou outra. Era sua esposa adorada: submissa, acomodada e de inteligência pouca e quase nada explorada. Ao som de músicas massificadas no rádio e na televisão, homens falavam de futebol, política e mulheres. Mulheres falavam da trama do horário nobre, de roupas, de homens e de mulheres. Num canto, jovens gastavam suas energias discutindo com fervor diferenças teológicas bizantinas entre católicos e protestantes.
Felix tirava fotos sorrindo com prazer. Precisamente no momento em que se sentia mais realizado, Tácito deixava escapar um ar de desprezo, mantendo o olhar longe e os olhos negros. Albertinho escondia uns brigadeiros no bolso, malocados com habilidade enquanto dizia que 'também achava que era melhor na época da ditadura', concordando com um velho de cabelo rigorosamente repartido e com mau hálito. O padre, meio rechonchudo, falava a algumas senhoras sobre a importância de jejuar, sem conseguir tirar os olhos do bolo - fazendo íntimas preces para que fosse logo partido. A mulher de Felix parecia ainda mais feliz do que o marido. Fazia-lhe de boa vontade tudo que ele pedia. Cheia de sorrisos, beijos e abraços. De quando em quando, pousava os olhos sobre Albertinho e, se este os retribuía, saía dos olhos dela uma tênue faísca, ruborizando a face quase que imperceptivelmente.
De repente, crianças faziam coreografias semi-pornográficas acompanhadas por risos e aplausos, ao mesmo tempo em que se iniciava uma fofoca generalizada. Tácito conseguiu sorrir quando puxaram o parabéns e outras cantigas de tempos remotos. Após o padre, também fez uma oração de viva voz do fundo de sua alma, acompanhada por améns e glórias. Ocupava posição de destaque na igreja que freqüentava. Comoveu os presentes. Sentiu-se perto de Deus e, por um instante, imaginou-se como uma de suas relíquias sagradas.
Em seguida, passou a se deliciar com doces, sentindo, no entanto, um gosto azedo no fundo. Aquela festa era o último lugar do mundo em que queria ter ido, embora já não fosse convidado pra muitas festas. A prosperidade de Felix o incomodava terrivelmente. Coincidira com sua decadência. "Um simplório! um ignorante..." - pensava Tácito secretamente, na convicção de sua superioridade; a qual lhe fazia ter certeza de que os agrados da parte de Felix não passavam de vaidade; provocação até. Todavia, Felix agia sinceramente, sem avistar os entulhos da alma do vizinho. Tácito mantinha no coração a arrogância a ele dispensada em outros tempos, agora transfigurada – a muito custo - em gestos cordiais e subservientes. Era um homem que guiava seus sentimentos pela lógica. E pelo revanchismo. A felicidade tinha que estar submetida rigorosamente a certas regras. Sorria como meio; não por fim. Preferia um gozo pálido e certo a se abrir à vida; ao sol e à chuva. Seu viver era uma masturbação existencial.
- Muita saúde, Felix! Que Cristo te guarde e te proteja sempre, meu amigo! - disse quando se despediu, rindo carinhosamente. Saiu arrotando coca-cola e inveja. Inflou-se de raiva ao se lembrar do dinheiro que lhe devia; dívida que, muito provavelmente, jamais teria como pagar.
Quando fechou a porta de casa, ainda pôde ouvir uma risadaria entrecortada pela voz meio ébria de Felix, que gritava: viva...!


Biografia:
Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em março de 2004; advogado e servidor público. Vivo a juntar umas palavras o tempo todo quando posso minha inquietude apoquentar. Alguns textos publicados a partir de outubro de 2011 pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores - CBJE - e, a partir do início de 2012, na Escrita - Biblioteca Virtual -.
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