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Blues Motel
GUSTA ALBUQUERQUE

O bar. Sinto-me como prisioneiro. Se me sobra consciência, lamento a completa ausência de atitude. Ruim pra caralho isso. Sou um corpo amorfo. Arrasto-me entre mesas e bêbados. Doses e mais doses de vermute. Caralho, to metido a poeta, né? Ta Foda. Rosane me pediu tantas vezes. Lembro-me de uma vez na roda gigante: promete? Prometeria qualquer coisa naquela ocasião. Ancas largas. Também o babaca do Fúlvio. Não agüentava mais analisar aqueles papéis. Ele sabia. O puto sabia. Dezoito horas e minha boca começava a salivar. Sempre foi um processo automático. Dezoito horas e o babaca saiu de sua sala: “preciso de você por mais duas horas. A matriz está me cobrando o relatório”. Foda-se a matriz. E o relatório. E essa merda de emprego. “Justa causa, seu lunático”. “Ainda não”, respondi, antes do soco que lhe abriu o nariz.

Temos que dar um jeito nessa luz néon. Esse tom azulado é uma desgraça. Acho sinceramente que é um letreiro de gosto duvidoso. Há anos a mesma luz e o mesmo barulho, esse zumbido intermitente parecido com um sibilar. Escuta! Lá no final. Zzzziiimmm. Irrita qualquer um, porra. E ainda deve espantar quase todo mundo. Em minutos chegará aquele babaca tocando violão. Poucas coisas me irritam tanto quanto um babaca tocando violão. Tinha pelo Renato Russo algum apreço, hoje não tenho mais. Acordes simples fomentam mais e mais idiotas a imitá-lo. ‘Tempo perdido’ foi um legado irônico, só pode ser.

Dá mais um vermute aí, Simplício! O bar. Preciso deixar isso aqui. Conheci o antigo dono. Um paulista boa praça. Veio de Araraquara ainda moleque. Isso aqui era só um imenso descampado. Hoje só tem puta. E eu. O gozado é que tecnicamente eu também sou uma puta. Nunca vi ninguém dar uma definição melhor do que é ser puta do que o Zé Teófilo. Dizia ele que puta é todo mundo que se fode fingindo prazer. Pode não ser uma definição brilhante, até porque o Zé Teófilo é um idiota, mas não dá pra dizer que o cara está errado.

Depois da última demissão só tenho feito três coisas. Todas no bar. Não tenho vergonha de contar. Sou puta, mas não devo nada a ninguém. Jogo moedas na Jukebox, bato punheta trancado no banheiro e assisto à reprise do jogo que estiver passando de madrugada naquela televisão velha dali. Tanto faz o jogo e a punheta. A única coisa com a qual sou intransigente é a Jukebox. Estou numa fase Celso Blues Boy. É uma forma de irritar quem vem aqui. Sempre a mesma música. Blues Motel. Excelente. Gosto de como ele toca guitarra. Tem alguma coisa de subterrâneo, de sujo. Anote esse nome: Celso Blues Boy. Ainda vai estourar.

O problema deste bar é que de uns tempos pra cá tenho pensado cada vez mais na hipótese de me suicidar. Não sei. Talvez sejam as paredes, vermelhas demais. Ou as fotos em cima da porta dos banheiros. Fotos desbotadas me enojam. Ainda mais de Copacabana. O dilema em si não é o suicídio. Acho que essa é a parte fácil. Um único tiro. Ou então estricnina. É o bar. Morto, não terei o prazer de planejar minha morte. Engraçado como todos os caminhos levam ao suicídio. Qualquer dia desses, fffuuufff, acabo. Mas não hoje.

Hoje tenho contas a acertar. Talvez seja por isso que você esteja me achando um pouco nervoso. Até confesso que estou um pouco mesmo, embora, pensando friamente, não tenha motivos. Quando ele chegar, vou chamá-lo pelo nome, vou me aproximar, vou olhá-lo nos olhos e vou dizer pra ele o que tem que ser dito. E vou matá-lo porque ninguém faz isso comigo e acha que vai continuar andando pela Nossa Senhora de Copacabana como se nada tivesse acontecido.

- Mais um vermute, vai!

Falei da roda gigante, né? Que noite foi aquela! Rosane morava num sobrado no Grajaú. Do lado morava uma velha que cuidava de dezoito gatos. A rua toda era fedorenta por causa daqueles gatos todos. Passamos a noite toda fodendo. Pedi uma pizza pelo telefone. Já era quase de manhã e não havia mais pizza. Nem cigarro havia mais. Matamos cinco dos gatos. Foi muito divertido. Atraíamos os bichos com comida congelada. A comida espatifava e os gatos se lambiam e lambiam o gelo da comida, se lambiam e lambiam-se uns nos outros. Gatos são promíscuos. Quando juntava mais de três no mesmo pedaço de gelo, jogávamos um pedaço de reboco. Quatro morreram na hora. O branquinho nós só soubemos quando consolamos a velha na rua. Rosane era uma mulher e tanto. Casou-se com o chefe e foi morar na Alemanha. Na definição do Zé Teófilo ela não é puta. Ninguém que troca o Brasil pela Alemanha pode ser considerado fodido.

Eu vou matar esse carinha do violão. Acho que aprendeu mais um acorde. Idiota completo. Queria que ele fosse um dos gatos. O branquinho, que é pra ter morrido bem devagar, e ainda por cima nos braços daquela velha horrorosa. Toda noite ele vem aqui e eu acabo com ele colocando seguidas fichas no ‘Blues Motel’. Coloco cada uma das fichas olhando pra cara dele. Nunca me encarou. Fica só jogando esse cabelinho de viado de um lado pro outro. Outro dia veio de gola rolê. É um merda. Ontem foram 12 fichas. Punha a ficha, a máquina me pedia o número. Digitava 1-4-8. “Blues Motel... Blues Motééél... É sempre fácil encontrar... Marcas de batom... Uísque na cama... E a emoção de uns... No coração do blues... No coração do blues” Do caralho... Sério! Do caralho, né? O babaquinha fingia que não ligava e continuava tocando aquelas merdas. Mas eu sei que ligava. Daqui a pouco eu vou acabar com ele de novo.

Mas agora não. Agora é melhor você se afastar. Chega pra lá um pouco. O babaca chegou.

- Ô Zé Teófilo! To falando com você, seu merda! Que palhaçada foi aquela que você falou de mim? Quem é o vagabundo aqui, seu filho da puta?Quem é o vagabundo? Hein? Diz pra mim! Ah! Ta assustado, seu arrombado? Pelo que conheço de você sua cueca deve estar toda suja, né otário? Nunca viu um desses, não? Hein? Quem é o vagabundo aqui? Quem é o fodido aqui? Ta vendo o brilho dela, ta? Comprei. EU COMPREI. Com o dinheiro que EU GANHEI. Seu merda! Ajoelha. AJOELHA, CARALHO! Pede desculpas, seu cagão de merda! Pede desculpas. Ahhhhh... Olha só... Agora ta mansinho, né seu puto? Encosta essa carinha de idiota no chão!

- Você continua tocando, porra! Não para de tocar, porra!

- Isso. Agora me diz se é bom sentir o cheiro do chão com meu pé em cima dessa cara de filho da puta. Diz seu merda. DIZ PORRA! Ah! Isso é música pra mim. Ajoelha de novo! AJOELHA DE NOVO, PORRA! TÁ SURDO, CARALHO? Caralho! Agora olha bem pro meio desse buraquinho. Bem no meio dele. BABACA!

Não. Não quero nada. Ta tudo tranqüilo! Não tem porque ficar tenso. Eu que fiz. Ninguém aqui tem nada a ver com isso. Alguém chame a polícia. É só discar 190. Vou ficar aqui esperando, ok? Essa é minha! Ta na minha conta, beleza? Conheço cada um de vocês. Não quero que se preocupem. Vou ficar bem. E eu ficando bem é sinal que todos vão ficar bem também. Vocês entenderam, né? Todo mundo viu! Ele me atacou com a faca, me cortou na altura do ombro! Abriu a maior boceta no meu ombro! E antes me disse que eu estava devendo cem reais. Cem reais! Cem, ok? Apenas me defendi. Legitima defesa. Entendido? Vocês são foda! Os caras! Vocês são os caras! Cem reais!

- Simplício, vai lá dentro e me traz uma faca bem afiada! Traz vermute também. E aproveita e me vende dez fichinhas da Juke. Música. MÚSICA!





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