O Catecismo
E com a professora dentuça a aula começou:
_Vamos estudar a religião Católica Apostólica Romana.
Por tradição a autoridade máxima é Sua Santidade o Papa, explicou.
Acima dele (apontou para cima) temos o nosso Deus todo poderoso,
Que criou o céu, a terra, o mar e tudo que no mundo há.
(Com as mãos na altura do peito)
Inclusive nós e todos os animais que rastejam, andam, nadam e voam...
Ele fez o homem de barro e lhe deu vida com um sopro no nariz.
Enquanto, ele dormia, Deus tirou sua costela e fez uma companheira.
Deus deu ao homem o nome de Adão.
E à mulher o nome de Eva.
De tempos em tempos, Lira lançava o olhar com o corpo meio rígido.
Vendo que todos estavam estarrecidos voltava pra a posição de imobilidade.
Lira pensou: Adão e Eva, por que não Ivo e Eva?
Adão não parece fácil de gritar.
Essa foi sua interrogação.
Continuou a professora, após tomar fôlego:
_Deus pai, todo poderoso poderia castigá-los.
Se desobedecessem aos seus ensinamentos
E não pedissem perdão.
E os castigou por terem comido a maçã, o fruto da árvore da vida,
Que desperta nossa imaginação.
O que ia fazer agora? Lira fechou a boca, cerrou os dentes.
Comer maçãs nos passeios com D. Alaíde era freqüente.
Com essa desobediência, de Adão e Eva, nascemos com o pecado original,
Do qual só após o batismo podemos nos livrar.
Lira pensou na sorte de ser batizada.
Vamos obedecer a Deus, pais e a professora, nossa segunda mãe.
Assim, na hora de nossa morte, junto de Deus, vamos estar.
Mandaremos o diabo se catar.
E seu garfo de três pontas, não vai nos jogar no fogo do inferno para queimar.
Obedientes, sempre obedientes, para ao diabo enganar.
Agradar somente a Deus, pois, sacrificou seu filho Jesus Cristo para nos salvar.
Mostrando a cruz com Jesus crucificado, falou do sofrimento de sua mãe ao vê-lo na cruz pregado. Convidou a todos para cantarem o hino em louvor à mãe de Jesus: “Azul é seu manto, branco é o seu véu, mãezinha querida me leva para o céu...”.
A aula encerrada e o horário também.
Lira não quer ir para o céu.
Está cansada, com fome,
Prefere correr para casa, caminhando pelas sombras,
Para o Sol não a queimar.
As rolinhas mariscando na areia fazem reboliço.
Aperta o passo, faz dos seus pés a sua condução.
Quando no córrego chegar, vai poder descansar.
Naquele filete d’água, vai se refrescar.
Fez suas mãos de concha, no riacho, abaixou para sua sede matar.
Com a barriga pesada, ofegante, andou devagar.
Podia descansar, naquele caminho tranqüilo,
Vez por outra um cavalo a galopar.
Olhou para o céu, sabia que lá está à casa de Deus,
Reunindo todos que fossem seus.
Precisa andar um pouco mais para chegar no que é seu.
A tarde caía quando no pequeno sítio entrou,
O portão de madeira que range o dia inteiro anunciou que ela chegou.
Os pardais e as rolas empanturram-se no chiqueiro,
Entre os patos, galinhas, perus,
Está o galo do terreiro que canta na madrugada, acordando o galinheiro.
No majestoso fogão a lenha, instalado na cozinha.
O bule de ágata fumegante tem café pro mundo inteiro.
Lira enche sua caneca, com pão e manteiga molhando no café.
Delicia-se sentada na pedra do quintal, gasta por tanta roupa que lavou...
E esbranquiçada por tanto sabão que o sol secou.
Por causa da aula de religião, dever de casa não tinha não,
Pegou sua boneca. E no balanço do galho da mangueira, balançou... Balançou...
No jantar, o pé de cravina a mesa vai enfeitar.
Corre para o seu lugar que está sempre a esperar.
Na porta de madeira senta na soleira,
Que apesar de sua fortaleza,
Está côncava pela quantidade de pisadas
Que foi capaz de agüentar.
Na caçarola de ferro o dourado alho faz o arroz cheirar.
Com a boca cheia d’água, arroz com carne-seca no feijão,
De cócoras vai saborear...
A noite clara. A lua enfeita o céu estrelado,
O bicho papão caminha ao luar.
Precisa dormir para cedo acordar, botar o pé na estrada.
Como diz o seu pai: “Deus ajuda a quem cedo madruga”.
Deitada olha o telhado com medo do bicho pegar,
Cansada dormiu...
Na madrugada ouviu quando o galo vermelho cantou.
O relógio despertou, o garnisé cocoricou.
Com tantos ruídos a menina acordou e na cama ficou
Seus cílios colados, por causa da dor d’olhos.
Sem se mexer com medo do bicho papão
Que do telhado podia descer,
Cobriu a cabeça, pedia ao Sol pra aparecer.
Logo, logo o dia amanheceu...
Lira agora para a escola ia: Andou... Andou... Pulou...
Contou os dormentes da linha do bonde.
Sempre era assim, Lira se distraía e a contagem perdia.
Jurou que um dia conseguiria.
Na escola estudou em sua sala: Cabeçalho... Cópia...
Interpretou, ouviu estória da Menina dos Cachinhos de Ouro.
No recreio comeu melado com farinha.
Brincou de roda, cantou: “Não atire o pau no gato, tô...”.
Para o gato, tô... Não morrer, re... Re...
O “pai Francisco” entrou na roda, mas não tocou seu violão,
Foi por causa das meninas que lhe deram um empurrão,
E o menino foi parar no chão.
Levantou cantarolando:
“A menina diz que tem sete saias de balão”,
É mentira, ela não tem nem dinheiro pro sabão. Ra, Ra, Ra...
Nem dinheiro pro sabão...
Na aula de religião desta vez, a professora estava ao centro e as crianças ao seu redor.Deu-lhes folhetos contendo rezas:
Pai nosso, Ave Maria, Credo e Salve Rainha.
Para decorar e a missa acompanhar.
Recomendações para o dia da comunhão:
Não esqueçam do jejum, para receber o corpo de Cristo na Eucaristia.
A chuva caiu assim que a aula acabou.
Lira saiu correndo para da chuva se livrar,
Lembrou de contar dormentes
Hoje eu conto pra lá,
Amanhã conto pra cá. Assim fácil vai ficar.
Tomou o lugar de referência e começou: 1, 2, 3, 4,...
Distraiu-se outra vez, desta vez não ia dar.
Com a chuva caindo no trilho não podia equilibra-se.
Preferiu na terra caminhar,
Deixando o trilho do bonde para trás ficar.
Aperta o passo para em casa chegar.
Os eucaliptos dançam uma longa valsa em meio à chuva e os clarões dos relâmpagos, em seguida os fortes trovões. Na sua frente um roda-moinho gigante. Suas voltas cada vez mais velozes traziam a lembrança do episódio das seis horas: Jerônimo, o herói do sertão.
Quando o crepúsculo chegar, Lira quer saber onde o moleque Saci estará.
Lira cantando foi: “Quem passar por essa chuva vai ouvir alguém cantar”. E sua mãe preocupa;
“E Lira toda molhada nessa estrada a caminhar“.
O toró cessou então, seguiram rumo à padaria velha. Na casa do seu irmão. Os comentários a respeito do seriado ajudavam chegarem rápido. D.Alaíde sempre chamando atenção: “Olha lá! Não vamos acordar Toninho, vai que o menino esteja dormindo”. Mas Lira pressentia, com aquele tempo não ficaria sabendo se o moleque saci, o amigo de Jerônimo, tinha saído da enrascada. Lira pensou e o feito se realizou. Às seis horas, o grupo na casa de seu irmão, sentados em volta da mesa, o rádio ligado em cima da cristaleira, o som vinha e ia porque a luz caía. E a sua cunhada no rádio batia, mas ele só falava quando a lâmpada acendia. Então ouviam a música: “Quem passar pelo sertão”,
Vai ouvir alguém falar,
Do herói desta canção, ãaaaao...”.
A luz quase apagava e sempre perdiam um pedaço da canção. E mais chiadeira do rádio, que levava mais tapas e quanto mais apanhava mais ele chiava e enquanto Lira esperava o sono a derrubava. Mas no percurso de volta a bagunça imperava, corriam até das sombras das árvores...
À noite Lira passou inquieta,
Sonhou com Cristo pregado na cruz,
Em seu sonho dizia:
“Não! Não quero receber esse corpo cheio de sangue escorrendo”.
E essa coroa de espinhos ““.
E a professora dentuça, parecendo um porco do mato;
Batendo a queixada falava:
“Mantenha as mãos postas, enquanto recebe o corpo de Cristo”.
Você terá que abrir a boca seguindo as instruções:
Não pode encostar os dentes, pois se a hóstia cortar sua boca sangrará.
A sua boca aberta na certa vai ficar,
Só o cobertor de aniagem vai ouvir ela pedir
À fada madrinha das historinhas
Que transforme o seu cobertor como era o do ursinho.
Com os olhos acostumados ao breu,
Lembra-se da estória de ternura que a professora contou da menininha
Que experimentou tudo do papai urso, tudo da mamãe ursa,
Mas não gostou de nadinha,
Preferiu comer o mingau da tigelinha,
E descansar na caminha fofinha do ursinho.
Lira leva um baita susto com o gemido da bichana,
Que entra no quarto com um peixe cascudo preso nos dentes,
Delicioso jantar para os seus filhotes.
Cochila. Bichana aproveita e no seu peito deita,
Aninha-se, esparrama -se, nesse colo gostoso.
Um espaço generoso. Chiando... Chiando... Bichana dorme
Para aquecer-se da friagem da madrugada, a pescaria foi boa!
Mas o seu pêlo molhado não vai secar a toa.
Ao amanhecer, barulho de passos leves. Será o bicho papão?
Que vai embora levando seu dente estragado de cima do telhado?
O mourão é mais forte e rico.
Sempre trás pra ela um dente mais bonito.
E a espada de S. Jorge, igual a do soldadinho de chumbo,
O mourão enfiaria na barriga do papão e gritaria:
“Sai daqui seu ladrão! Comigo ninguém pode, eu como muito agrião”.
Lira com os olhos colentos solta o ar contido no peito,
Alisa o pêlo da bichana, mas não sente o tremor de suas costas,
Procura seu rabo para vê-lo empinado.
Teve uma grande surpresa:
A magia da estória passou para a sua cama.
Por isso bichana saiu...
A fada tinha ouvido o seu pedido,
Ela também ganhou um macio cobertor para se aquecer.
Que felicidade! Olha mãe, o que foi que a fada fez!
Foi seu irmão Antônio que trouxe cobertores para todos nós.
Ah! Então ele é o “fado” padrinho da minha estopinha.
Oba! Um feriado escolar.
Lira segue sozinha num vestido de bolinhas
À procura de bichana, mas não a incomoda,
Ela está cansada da pesca da madrugada,
Descansando na quentura do fogão.
Lira caminha de mansinho inspirando o ar.
Identifica os perfumes, adocicado do jasmim, do manjericão e da hortelã.
A joaninha, bota no vestido, bonito broche a bichinha vai virar.
Pediu à borboleta que levasse o pólen para outros quintais
E assim as margaridas seriam muitas mais.
Vai para junto da soca de bananeiras,
No amassado da palha mora o sapo-boi, gordo, pesado,
Quase não agüenta pular, dorme um sono sossegado.
Como pode ser tão forte comendo mosquitos,
Parece desmaiado no seu buraco ajustado onde só ele pode entrar
Lira com a salsa na mão fez varinha de condão,
Bateu três vezes no sapo,
Se o príncipe vira um sapo,
O sapo pode virar um príncipe.
Vire um príncipe e saia dessa toca senão a serpente vem te pegar.
Lira não conseguiu, mas também não desistiu,
Sempre fazia mágicas diferentes
Até virar uma fada competente,
Faz o papel virar barquinho
E levou pro laguinho.
O barquinho navegou
No vaivém das ondinhas que faziam os patinhos
Lira vê o vôo das aves no bambuzal, pensa:
Eva e ave pra trás são iguais
Tomou um susto, pediu desculpas a Deus,
Onde se viu comparar bicho com gente!
Ah! O patinho levado, o barquinho desmanchou.
O sapo veio pulando para tomar sol na beira do laguinho
E visitar os seus parentes girinos.
Meio dia o sol a pino.
Os girassóis não vêm os gansos com pose de majestade a banhar-se no lago.
Estão olhando para o sol lá em cima.
Lira continua sentada comendo goiaba inchada,
Das águas do temporal da noite passada.
De olhos fechados, parece cansada.
Foi logo despertada: Dondon! Dondon! O almoço ta’ pronto.
Lira reage, corre ao poço, toma um banho ligeiro,
Vai comer arroz, carne-seca no feijão,
O cabelo louro vai comer atrás da porta, pra mais bonita ficar.
À tarde Lira no seu balanço de corda sentou para descansar.
Na sombra da mangueira mariscam na areia rolinhas e pardais
Sem temer a arapuca do mano pra pegar as pobrezinhas.
Lira se escondia, desarmava as arapucas, com pena das rolinhas.
Após o almoço, estudou o caderno de religião.
A Bíblia é a palavra de Deus
O sinal do cristão é a cruz
A Páscoa é a ressurreição de Cristo.
A Bíblia se divide em duas partes
O Velho e o Novo Testamento.
A igreja é a casa de Deus, onde podemos nos comunicar com Ele,
Através da oração.
Lira não pode acreditar!
Antes de o dia virar noite precisa brincar
Sai correndo sobe no pé de Jamelão. Come todos os grandões .
Desce com o vestido enodoado, vários matizes arroxeados.
Lira sabe que a igreja e a casa de Deus,
Fez sua oração embaixo do Jamelão,
Para as manchas irem embora, não esperassem a temporada acabar,
Sua língua enegrecida vai a ela condenar
O emaranhado das fibras do cajá vai colaborar
Nem que para isso dentuça vá ficar
Limpos os dentes vão ficar
E mentira não pode falar.
Toda lambuzada de manga pegaria água com a caçamba...
Pra sua cara lavar.
O melhor seria as varadas nas pernas ganhar,
Arde igual à ferroada de marimbondo que vem lá do bambuzal,
Coloca a faca de aço que a dor passa devagar.
É hora de Lira voltar pra casa,
Vai desconfiada com seu vestido aquarelado,
Com a cintura rasgada da cerca de arame farpado,
A perna arde do corte da sapetuba,
Passa a língua na folha de andarandaca
Coloca no machucado pra ele logo sarar.
Lira pensa: Como vai guardar o domingo?
Achou curioso esse mandamento.
Neste dia na sua casa parece festa,
Lira enfeita a casa, troca os vestidos da boneca,
Lira vai limpar a casa
A cristaleira chama sua atenção ao ver o espelho embaçado.
Abre a porta, pega à doceira de vidro verde, à tampa em formato de ninho,
Que abriga dois filhotinhos,
Tem pena desses bichinhos, com as asas trincadas não podem mais voar,
Dá uma lambida no doce de mamão e coloca a doceira no lugar.
Lira fica contente ao pegar a tigelinha
Onde guarda o coração de cartolina
E o botão de rosa de papel crepom,
Abre e relê o cartão:
“Sou pequenininha do tamanho de um botão”,
Trago papai no bolso “. Trazer papai só no bolso não”,
No braço é o que ela mais trazia, depois que ele bebia.
Tetê, o marido e o filho Nito, chegam falantes,
Vestidos com roupas de festa.
Tetê troca o papel da prateleira,
Lira tem vontade de fazer o novo repique.
Mas sua mãe dá o contra:
“Essa tesoura é Mundial”.
Sempre que a bendita tesoura ela perdia,
No meio de suas costuras,
Que mais parecia um tesouro,
Lira era a primeira ver.
Resolve guardar o domingo na dispensa.
Um bom lugar pra o domingo ficar,
Até a segunda-feira chegar.
Leva Nito junto, passam por baixo do bambu das tripas.
Nito grita:_ Que é isso?
_Chouriço!Medroso.
_Socorro! Ouvi um suspiro.
_Calado Nito
_Alguém parece abafado,... Pedindo para ser libertado.
_Vamos Nito desenrolar o saco.
_Nossa! O cacho de banana ouro,
_Está mais pintado que os ovos da codorna!
_Mãe! Vem ver o meu tesouro. Tesouro Mundial.
O Catecismo
E com a professora dentuça a aula começou:
_Vamos estudar a religião Católica Apostólica Romana.
Por tradição a autoridade máxima é Sua Santidade o Papa, explicou.
Acima dele (apontou para cima) temos o nosso Deus todo poderoso,
Que criou o céu, a terra, o mar e tudo que no mundo há.
(Com as mãos na altura do peito)
Inclusive nós e todos os animais que rastejam, andam, nadam e voam...
Ele fez o homem de barro e lhe deu vida com um sopro no nariz.
Enquanto, ele dormia, Deus tirou sua costela e fez uma companheira.
Deus deu ao homem o nome de Adão.
E à mulher o nome de Eva.
De tempos em tempos, Lira lançava o olhar com o corpo meio rígido.
Vendo que todos estavam estarrecidos voltava pra a posição de imobilidade.
Lira pensou: Adão e Eva, por que não Ivo e Eva?
Adão não parece fácil de gritar.
Essa foi sua interrogação.
Continuou a professora, após tomar fôlego:
_Deus pai, todo poderoso poderia castigá-los.
Se desobedecessem aos seus ensinamentos
E não pedissem perdão.
E os castigou por terem comido a maçã, o fruto da árvore da vida,
Que desperta nossa imaginação.
O que ia fazer agora? Lira fechou a boca, cerrou os dentes.
Comer maçãs nos passeios com D. Alaíde era freqüente.
Com essa desobediência, de Adão e Eva, nascemos com o pecado original,
Do qual só após o batismo podemos nos livrar.
Lira pensou na sorte de ser batizada.
Vamos obedecer a Deus, pais e a professora, nossa segunda mãe.
Assim, na hora de nossa morte, junto de Deus, vamos estar.
Mandaremos o diabo se catar.
E seu garfo de três pontas, não vai nos jogar no fogo do inferno para queimar.
Obedientes, sempre obedientes, para ao diabo enganar.
Agradar somente a Deus, pois, sacrificou seu filho Jesus Cristo para nos salvar.
Mostrando a cruz com Jesus crucificado, falou do sofrimento de sua mãe ao vê-lo na cruz pregado. Convidou a todos para cantarem o hino em louvor à mãe de Jesus: “Azul é seu manto, branco é o seu véu, mãezinha querida me leva para o céu...”.
A aula encerrada e o horário também.
Lira não quer ir para o céu.
Está cansada, com fome,
Prefere correr para casa, caminhando pelas sombras,
Para o Sol não a queimar.
As rolinhas mariscando na areia fazem reboliço.
Aperta o passo, faz dos seus pés a sua condução.
Quando no córrego chegar, vai poder descansar.
Naquele filete d’água, vai se refrescar.
Fez suas mãos de concha, no riacho, abaixou para sua sede matar.
Com a barriga pesada, ofegante, andou devagar.
Podia descansar, naquele caminho tranqüilo,
Vez por outra um cavalo a galopar.
Olhou para o céu, sabia que lá está à casa de Deus,
Reunindo todos que fossem seus.
Precisa andar um pouco mais para chegar no que é seu.
A tarde caía quando no pequeno sítio entrou,
O portão de madeira que range o dia inteiro anunciou que ela chegou.
Os pardais e as rolas empanturram-se no chiqueiro,
Entre os patos, galinhas, perus,
Está o galo do terreiro que canta na madrugada, acordando o galinheiro.
No majestoso fogão a lenha, instalado na cozinha.
O bule de ágata fumegante tem café pro mundo inteiro.
Lira enche sua caneca, com pão e manteiga molhando no café.
Delicia-se sentada na pedra do quintal, gasta por tanta roupa que lavou...
E esbranquiçada por tanto sabão que o sol secou.
Por causa da aula de religião, dever de casa não tinha não,
Pegou sua boneca. E no balanço do galho da mangueira, balançou... Balançou...
No jantar, o pé de cravina a mesa vai enfeitar.
Corre para o seu lugar que está sempre a esperar.
Na porta de madeira senta na soleira,
Que apesar de sua fortaleza,
Está côncava pela quantidade de pisadas
Que foi capaz de agüentar.
Na caçarola de ferro o dourado alho faz o arroz cheirar.
Com a boca cheia d’água, arroz com carne-seca no feijão,
De cócoras vai saborear...
A noite clara. A lua enfeita o céu estrelado,
O bicho papão caminha ao luar.
Precisa dormir para cedo acordar, botar o pé na estrada.
Como diz o seu pai: “Deus ajuda a quem cedo madruga”.
Deitada olha o telhado com medo do bicho pegar,
Cansada dormiu...
Na madrugada ouviu quando o galo vermelho cantou.
O relógio despertou, o garnisé cocoricou.
Com tantos ruídos a menina acordou e na cama ficou
Seus cílios colados, por causa da dor d’olhos.
Sem se mexer com medo do bicho papão
Que do telhado podia descer,
Cobriu a cabeça, pedia ao Sol pra aparecer.
Logo, logo o dia amanheceu...
Lira agora para a escola ia: Andou... Andou... Pulou...
Contou os dormentes da linha do bonde.
Sempre era assim, Lira se distraía e a contagem perdia.
Jurou que um dia conseguiria.
Na escola estudou em sua sala: Cabeçalho... Cópia...
Interpretou, ouviu estória da Menina dos Cachinhos de Ouro.
No recreio comeu melado com farinha.
Brincou de roda, cantou: “Não atire o pau no gato, tô...”.
Para o gato, tô... Não morrer, re... Re...
O “pai Francisco” entrou na roda, mas não tocou seu violão,
Foi por causa das meninas que lhe deram um empurrão,
E o menino foi parar no chão.
Levantou cantarolando:
“A menina diz que tem sete saias de balão”,
É mentira, ela não tem nem dinheiro pro sabão. Ra, Ra, Ra...
Nem dinheiro pro sabão...
Na aula de religião desta vez, a professora estava ao centro e as crianças ao seu redor.Deu-lhes folhetos contendo rezas:
Pai nosso, Ave Maria, Credo e Salve Rainha.
Para decorar e a missa acompanhar.
Recomendações para o dia da comunhão:
Não esqueçam do jejum, para receber o corpo de Cristo na Eucaristia.
A chuva caiu assim que a aula acabou.
Lira saiu correndo para da chuva se livrar,
Lembrou de contar dormentes
Hoje eu conto pra lá,
Amanhã conto pra cá. Assim fácil vai ficar.
Tomou o lugar de referência e começou: 1, 2, 3, 4,...
Distraiu-se outra vez, desta vez não ia dar.
Com a chuva caindo no trilho não podia equilibra-se.
Preferiu na terra caminhar,
Deixando o trilho do bonde para trás ficar.
Aperta o passo para em casa chegar.
Os eucaliptos dançam uma longa valsa em meio à chuva e os clarões dos relâmpagos, em seguida os fortes trovões. Na sua frente um roda-moinho gigante. Suas voltas cada vez mais velozes traziam a lembrança do episódio das seis horas: Jerônimo, o herói do sertão.
Quando o crepúsculo chegar, Lira quer saber onde o moleque Saci estará.
Lira cantando foi: “Quem passar por essa chuva vai ouvir alguém cantar”. E sua mãe preocupa;
“E Lira toda molhada nessa estrada a caminhar“.
O toró cessou então, seguiram rumo à padaria velha. Na casa do seu irmão. Os comentários a respeito do seriado ajudavam chegarem rápido. D.Alaíde sempre chamando atenção: “Olha lá! Não vamos acordar Toninho, vai que o menino esteja dormindo”. Mas Lira pressentia, com aquele tempo não ficaria sabendo se o moleque saci, o amigo de Jerônimo, tinha saído da enrascada. Lira pensou e o feito se realizou. Às seis horas, o grupo na casa de seu irmão, sentados em volta da mesa, o rádio ligado em cima da cristaleira, o som vinha e ia porque a luz caía. E a sua cunhada no rádio batia, mas ele só falava quando a lâmpada acendia. Então ouviam a música: “Quem passar pelo sertão”,
Vai ouvir alguém falar,
Do herói desta canção, ãaaaao...”.
A luz quase apagava e sempre perdiam um pedaço da canção. E mais chiadeira do rádio, que levava mais tapas e quanto mais apanhava mais ele chiava e enquanto Lira esperava o sono a derrubava. Mas no percurso de volta a bagunça imperava, corriam até das sombras das árvores...
À noite Lira passou inquieta,
Sonhou com Cristo pregado na cruz,
Em seu sonho dizia:
“Não! Não quero receber esse corpo cheio de sangue escorrendo”.
E essa coroa de espinhos ““.
E a professora dentuça, parecendo um porco do mato;
Batendo a queixada falava:
“Mantenha as mãos postas, enquanto recebe o corpo de Cristo”.
Você terá que abrir a boca seguindo as instruções:
Não pode encostar os dentes, pois se a hóstia cortar sua boca sangrará.
A sua boca aberta na certa vai ficar,
Só o cobertor de aniagem vai ouvir ela pedir
À fada madrinha das historinhas
Que transforme o seu cobertor como era o do ursinho.
Com os olhos acostumados ao breu,
Lembra-se da estória de ternura que a professora contou da menininha
Que experimentou tudo do papai urso, tudo da mamãe ursa,
Mas não gostou de nadinha,
Preferiu comer o mingau da tigelinha,
E descansar na caminha fofinha do ursinho.
Lira leva um baita susto com o gemido da bichana,
Que entra no quarto com um peixe cascudo preso nos dentes,
Delicioso jantar para os seus filhotes.
Cochila. Bichana aproveita e no seu peito deita,
Aninha-se, esparrama -se, nesse colo gostoso.
Um espaço generoso. Chiando... Chiando... Bichana dorme
Para aquecer-se da friagem da madrugada, a pescaria foi boa!
Mas o seu pêlo molhado não vai secar a toa.
Ao amanhecer, barulho de passos leves. Será o bicho papão?
Que vai embora levando seu dente estragado de cima do telhado?
O mourão é mais forte e rico.
Sempre trás pra ela um dente mais bonito.
E a espada de S. Jorge, igual a do soldadinho de chumbo,
O mourão enfiaria na barriga do papão e gritaria:
“Sai daqui seu ladrão! Comigo ninguém pode, eu como muito agrião”.
Lira com os olhos colentos solta o ar contido no peito,
Alisa o pêlo da bichana, mas não sente o tremor de suas costas,
Procura seu rabo para vê-lo empinado.
Teve uma grande surpresa:
A magia da estória passou para a sua cama.
Por isso bichana saiu...
A fada tinha ouvido o seu pedido,
Ela também ganhou um macio cobertor para se aquecer.
Que felicidade! Olha mãe, o que foi que a fada fez!
Foi seu irmão Antônio que trouxe cobertores para todos nós.
Ah! Então ele é o “fado” padrinho da minha estopinha.
Oba! Um feriado escolar.
Lira segue sozinha num vestido de bolinhas
À procura de bichana, mas não a incomoda,
Ela está cansada da pesca da madrugada,
Descansando na quentura do fogão.
Lira caminha de mansinho inspirando o ar.
Identifica os perfumes, adocicado do jasmim, do manjericão e da hortelã.
A joaninha, bota no vestido, bonito broche a bichinha vai virar.
Pediu à borboleta que levasse o pólen para outros quintais
E assim as margaridas seriam muitas mais.
Vai para junto da soca de bananeiras,
No amassado da palha mora o sapo-boi, gordo, pesado,
Quase não agüenta pular, dorme um sono sossegado.
Como pode ser tão forte comendo mosquitos,
Parece desmaiado no seu buraco ajustado onde só ele pode entrar.
Lira com a salsa na mão fez varinha de condão,
Bateu três vezes no sapo,
Se o príncipe vira um sapo,
O sapo pode virar um príncipe.
Vire um príncipe e saia dessa toca senão a serpente vem te pegar.
Lira não conseguiu, mas também não desistiu,
Sempre fazia mágicas diferentes
Até virar uma fada competente,
Faz o papel virar barquinho
E levou pro laguinho.
O barquinho navegou
No vaivém das ondinhas que faziam os patinhos
Lira vê o vôo das aves no bambuzal, pensa:
Eva e ave pra trás são iguais
Tomou um susto, pediu desculpas a Deus,
Onde se viu comparar bicho com gente!
Ah! O patinho levado, o barquinho desmanchou.
O sapo veio pulando para tomar sol na beira do laguinho
E visitar os seus parentes girinos.
Meio dia o sol a pino.
Os girassóis não vêm os gansos com pose de majestade a banhar-se no lago.
Estão olhando para o sol lá em cima.
Lira continua sentada comendo goiaba inchada,
Das águas do temporal da noite passada.
De olhos fechados, parece cansada.
Foi logo despertada: Dondon! Dondon! O almoço ta’ pronto.
Lira reage, corre ao poço, toma um banho ligeiro,
Vai comer arroz, carne-seca no feijão,
O cabelo louro vai comer atrás da porta, pra mais bonita ficar.
À tarde Lira no seu balanço de corda sentou para descansar.
Na sombra da mangueira mariscam na areia rolinhas e pardais
Sem temer a arapuca do mano pra pegar as pobrezinhas.
Lira se escondia, desarmava as arapucas, com pena das rolinhas.
Após o almoço, estudou o caderno de religião.
A Bíblia é a palavra de Deus
O sinal do cristão é a cruz
A Páscoa é a ressurreição de Cristo.
A Bíblia se divide em duas partes
O Velho e o Novo Testamento.
A igreja é a casa de Deus, onde podemos nos comunicar com Ele,
Através da oração.
Lira não pode acreditar!
Antes de o dia virar noite precisa brincar
Sai correndo sobe no pé de Jamelão. Come todos os grandões .
Desce com o vestido enodoado, vários matizes arroxeados.
Lira sabe que a igreja e a casa de Deus,
Fez sua oração embaixo do Jamelão,
Para as manchas irem embora, não esperassem a temporada acabar,
Sua língua enegrecida vai a ela condenar
O emaranhado das fibras do cajá vai colaborar
Nem que para isso dentuça vá ficar
Limpos os dentes vão ficar
E mentira não pode falar.
Toda lambuzada de manga pegaria água com a caçamba...
Pra sua cara lavar.
O melhor seria as varadas nas pernas ganhar,
Arde igual à ferroada de marimbondo que vem lá do bambuzal,
Coloca a faca de aço que a dor passa devagar.
É hora de Lira voltar pra casa,
Vai desconfiada com seu vestido aquarelado,
Com a cintura rasgada da cerca de arame farpado,
A perna arde do corte da sapetuba,
Passa a língua na folha de andarandaca
Coloca no machucado pra ele logo sarar.
Lira pensa: Como vai guardar o domingo?
Achou curioso esse mandamento.
Neste dia na sua casa parece festa,
Lira enfeita a casa, troca os vestidos da boneca,
Lira vai limpar a casa
A cristaleira chama sua atenção ao ver o espelho embaçado.
Abre a porta, pega à doceira de vidro verde, à tampa em formato de ninho,
Que abriga dois filhotinhos,
Tem pena desses bichinhos, com as asas trincadas não podem mais voar,
Dá uma lambida no doce de mamão e coloca a doceira no lugar.
Lira fica contente ao pegar a tigelinha
Onde guarda o coração de cartolina
E o botão de rosa de papel crepom,
Abre e relê o cartão:
“Sou pequenininha do tamanho de um botão”,
Trago papai no bolso “. Trazer papai só no bolso não”,
No braço é o que ela mais trazia, depois que ele bebia.
Tetê, o marido e o filho Nito, chegam falantes,
Vestidos com roupas de festa.
Tetê troca o papel da prateleira,
Lira tem vontade de fazer o novo repique.
Mas sua mãe dá o contra:
“Essa tesoura é Mundial”.
Sempre que a bendita tesoura ela perdia,
No meio de suas costuras,
Que mais parecia um tesouro,
Lira era a primeira ver.
Resolve guardar o domingo na dispensa.
Um bom lugar pra o domingo ficar,
Até a segunda-feira chegar.
Leva Nito junto, passam por baixo do bambu das tripas.
Nito grita:_ Que é isso?
_Chouriço!Medroso.
_Socorro! Ouvi um suspiro.
_Calado Nito
_Alguém parece abafado,... Pedindo para ser libertado.
_Vamos Nito desenrolar o saco.
_Nossa! O cacho de banana ouro,
_Está mais pintado que os ovos da codorna!
_Mãe! Vem ver o meu tesouro. Tesouro Mundial.
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