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A Toca do Coelho
Martinho do Rio

Resumo:
Não sei se vão acreditar nesta história que vou contar. Porque, nem eu hoje passados tantos anos, consigo acreditar nela.

Martinho do Rio

A Toca do Coelho

Uma Confissão Atormentada e Verdadeira

Não sei se vão acreditar nesta história que vou contar. Porque, nem eu hoje passados tantos anos, consigo acreditar nela. Mas resolvi escrevê-la porque, para mim, funcionará como uma espécie de exorcismo. De algo que me tem atormentado durante todos estes anos e que preciso de acreditar e deitar sem demora para trás das costas. Quando me lembro do que aconteceu, parece que esse tempo foi um tempo irreal; qualquer coisa que sucedeu com outra pessoa e não comigo. Como se fosse um filme que passasse no écran de um cinema e eu não passasse de um mero espectador sentado na plateia. Mas também sei que isso é mentira. E que tudo o que aconteceu nesse tempo mágico da minha infância foi bem real para mim. Que de facto vivi todas estas aventuras que descrevo nesta história. Embora, já adulta, me custe acreditar que tivessem acontecido. E para que a história que vou contar se torne tão real e verdadeira a quem a leia como foi real e verdadeira para mim, vai ser necessário que eu volte atrás no tempo, para esses dias conturbados da minha infância. E para que isso aconteça, tive que pedir ajuda a um amigo meu, um psicólogo que conheço desde criança, uma amigo a quem eu confiei tudo que vou contar e que me ajudou a recuar no tempo e a viver de novo aquele tempo mágico e maravilhoso da minha infância.


1

No Jardim com a Mademoiselle

Era uma chata. Tinha a mania que sabia contar histórias mas não sabia coisa nenhuma. Era monocórdica, lenta e com pouca imaginação. E, ainda por cima, as histórias não se distinguiam uma das outras. Eu gostava de ouvir contar histórias é verdade. Pelava-me por elas; era o melhor divertimento que me podiam dar. Se possível, podia passar vinte e quatro horas a ouvi-las sem me chatear nada. Mas era preciso que as soubessem contar, que fossem interessantes e que tivessem tudo no sitio. Que o herói fosse mesmo um herói valente e destemido, e o mau fosse mesmo um mau horrível e odiento e a donzela fosse mesmo bonita, romântica e ingénua. Ora as histórias que ela contava não eram nada disso. Eram chatas, mal contadas e geralmente não tinham heróis destemidos nem donzelas ingénuas. E os maus não eram maus a sério e acabavam sempre por se arrepender no fim. Parecia que ela gostava que todos eles, fossem maus ou bons, donzelas ou príncipes, fossem parar ao céu; arrependidos de todos os pecados que cometeram. Ora isso era falsear a vida e as histórias; porque, embora eu fosse ainda uma menina naquela altura, sabia já que a vida não era bem assim. Tinha bons exemplos na minha família. O meu irmão por exemplo, mais velho do que eu alguns anos, era já uma peste, por que passava a vida a ser castigado pelas partidas e asneiras que cometia. E o meu tio...que era repreendido quase todos os dias por andar sempre a enganar e a vigarizar os outros. Até o dia em que a policia foi buscá-lo a casa para o levar definitivamente para a cadeia. Mas a mademoiselle não via as coisas assim. Para ela, o mundo resumia-se aos santos e aos pecadores, aos mártires que morriam pela fé e aos pagãos que os torturavam até à morte. Mas, mesmo esses, geralmente arrependiam-se no fim, depois de o mártir com o seu exemplo abnegado e heróico os ter convertido a todos já á hora da morte. Eram histórias de abnegação e de heroísmo em que os mártires, geralmente cristãos abnegados, tentavam a todo o custo converter os pagãos; que não queriam saber da religião cristã para nada e a combatiam por todos os meios ao seu alcance. Na maior parte das vezes esses cristãos acabavam mal. Porque, já fartos de os aturarem, os pagãos perdiam a paciência e acabavam por matá-los; depois de os terem horrivelmente torturado. Eu ficava impressionada com a coragem e abnegação dos cristãos. Mas também compreendia os pagãos em não quererem aturar os chatos dos cristãos e a sua estranha mania em querer convertê-los á força. Eu, se fosse a eles, e vivesse naquele tempo, até era capaz de ter feito bem pior, não sei. Talvez desesperada com aquela mania tonta tivesse inventado uma máquina de raios da morte e os tivesse limpo a todos um por um antes que eles tivessem tempo de dizer: Ufa. Enfim, a minha mademoiselle via o mundo a preto e branco com os cristãos de um lado a fazerem de bons e os pagãos do outro a fazerem de maus e eu, coitada, no meio; a aturar aquelas histórias todas que já tinha ouvido contar mais de mil vezes. A minha mademoiselle que já tinha sido mademoiselle da minha mãe quando ela era criança, tinha uma vocação frustrada: Gostava de ser freira. Mas nunca o conseguiu ser. Porquê ? Não sei. Nunca me contou nem eu lhe perguntei; sei apenas que passou a fazer parte da família e que a minha mãe a punha muitas vezes a tomar conta de nós quando resolvia ir para o estrangeiro. E era nessa altura, quando a minha mãe estava fora, que ela se esmerava a contar as histórias de pagãos e de mártires. Parecia que achava que nós éramos também uns pagãos horríveis e que precisava de nos converter à força. Enfim, ela gostava de contar aquelas histórias e eu, que remédio, era obrigada a ouvi-las mais o meu irmão mais novo que fazia um ar fascinado e meio idiota quando as ouvia contar. Foi numa manhã de verão, em que os meus pais mais uma vez tinham ido para o estrangeiro, que tudo aconteceu. Ainda me lembro porque, nessa manhã, a Esmeralda, a cozinheira, tinha comprado a compota mais deliciosa que alguma vez provei na vida. Uma compota de amoras que eu gulosamente barrei com todo o cuidado no pão quente que ela tinha cortado às fatias muito finas. E foi quando depois de ter comido e quase ter sido levada á força da cozinha pela mademoiselle para o jardim que vi o coelho. Era pequenino, branco e caminhava muito direito pela relva. E tinha uma particularidade notável que só reparei depois de ter olhado bem para ele: usava óculos. Uns óculos redondos, á antiga, sem hastes. Ele segurava-os na ponta do nariz e quando olhou para mim sorriu. Juro que sorriu. Depois, como se se tivesse assustado por reparar demais nele, correu para o grande carvalho, a árvore mais antiga do jardim e desapareceu. Lembro-me que fiquei a olhar durante muito tempo para ela sem acreditar no que via. Até me belisquei. Lembro-me que olhei para o meu irmão mais novo que continuava atento ás histórias que a mademoiselle contava e perguntei-lhe se tinha visto alguma coisa esquisita. Ele olhou para mim com aquele ar imbecil que geralmente punha quando ouvia as histórias da mademoiselle e disse que não. Eu insisti e perguntei-lhe se não tinha visto um coelho esquisito a atravessar o jardim. Ele perguntou-me que coelho esquisito era esse; e eu respondi-lhe muito séria que era um coelho com óculos que tinha acabado agora mesmo de atravessar o jardim. Ele continuou a olhar para mim com aquele ar de idiota e sem responder. Percebia-se que ficara confundido e eu resolvi não insistir mais para não piorar a já pouca sanidade mental dele. A mademoiselle entretanto olhava para mim do alto das suas lunetas antigas, muito parecidas com as do coelho, e estava agora com ar de quem não tinha gostado nada que eu tivesse interrompido o fio à história. Ela desta vez estava a ler, em vez de contar, a história dum mártir romano que tinha sido morto amarrado a uma árvore com uma enorme quantidade de flechas. Não sei se ele teve tempo de converter alguém antes de morrer mas, pelo olhar que ela me deitou por eu a ter interrompido, quem acabaria por ser morta e por muitas flechas era eu se não me calasse imediatamente. Detesto que me dêem ordens ainda por cima á bruta e a minha vontade foi levantar-me e seguir o caminho do coelho isto é: desaparecer. Mas como eu era ainda uma criança - tinha completado havia pouco os nove anos -, tive que me resignar e ficar sentada a ouvir a história da morte heróica daquele mártir romano; mas com o meu espirito todo virado para aquele coelho branco muito esquisito. Estava disposta a investigar mal tivesse uma aberta. Era muito estranho aquilo que eu tinha visto e para o meu próprio equilíbrio mental era necessário que eu percebesse se ele tinha existido mesmo e onde é que tinha desaparecido. Se é que tinha mesmo desaparecido. Essa oportunidade surgiu quando ela depois de ter terminado a história se levantou para ir à casa de banho. O meu irmão seguiu-a porque a admiração que ele tinha por ela era sem limites e nunca perdia uma oportunidade para lhe fazer perguntas a propósito dos mártires. Ela adorava-o por ele ser um ouvinte atento e curioso. Dizia até que ele começava a ter a vocação necessária para servir a igreja e que ela ficaria muito orgulhosa e realizada se ele, quando fosse mais velho, resolvesse seguir definitivamente aquele caminho. O meu irmão inchava de orgulho quando ouvia isto e olhava-me de revés como se eu fosse uma pobre coitada, uma pagã, com a alma prestes a perder-se se não entrasse rapidamente como ele no caminho correcto. Eu claro abominava tudo aquilo e sentia cada vez mais que o verdadeiro caminho devia ser exactamente o contrário daquele que ela nos queria á força impingir. Mas como estava a dizer, a oportunidade surgiu quando ela resolveu ir à casa de banho. O meu irmão seguiu-a e eu, vendo-me livre dos dois, corri imediatamente para o grande carvalho que ficava num dos cantos do jardim. A árvore era enorme e antiga. Tão antiga que nem a minha avó se lembrava quando a tinham plantado. Falavam até que debaixo dos seus frondosos ramos muitas coisas importantes se tinham passado ao longo dos inumeráveis anos da sua já longa vida. Contava-se até, que tinha sido debaixo daqueles ramos, que a minha bisavó decidiu seguir o seu coração e casar com um político jacobino contrariando assim o desejo dos seus pais. Eu não sei o que quer dizer jacobino, talvez queira dizer pagão, porque, para a minha família, quem não é católico e não vá todos os domingos á missa é pagão. E o jacobino com certeza que não ia á missa para a minha família o odiar assim tanto. De qualquer maneira se a minha bisavó decidiu seguir o que o seu coração lhe ordenava eu acho até que fez muito bem. Pagou por isso é verdade. Durante anos ninguém falou com ela e ela viu-se completamente ignorada pela família. Foi preciso o pai dela morrer para ela poder, novamente, voltar ao seio da família. Se assim não tivesse sido eu não estaria agora a viver nesta casa nem à procura do coelho neste jardim. Bom, já me alonguei demasiado a falar da árvore e dos amores da minha bisavó e esqueci-me completamente do coelho. Tinha chegado perto dela e comecei á procura de algum lugar onde o coelho se pudesse ter escondido. Havia relva à volta da árvore e alguns canteiros de rosas. Aliás era naquele lugar que a minha avó plantara as mais belas rosas do seu jardim. Procurei no meio dos canteiros mas não vi nada, nenhum sinal dele. O malandro devia-se ter escondido bem. Mas, como eu era muito teimosa e não desistia assim tão facilmente continuei à procurar e, finalmente, dei com a toca. Estava junto a uma das grandes raízes do carvalho, era um buraco grande em que quase cabia lá dentro uma pessoa crescida. Estranhei, porque não me parecia a toca dum coelho. E ainda por cima dum coelho tão pequenino como aquele. Espreitei lá para dentro mas só vi escuridão e um barulho que parecia o silvar do vento. A toca parecia plana e direita e podia-se rastejar por ela facilmente e eu como era ainda criança e não era muito grande cabia perfeitamente dentro dela. Olhei para trás e não vi sinal nem do meu irmão nem da mademoiselle o que era bom, pois podia fazer á vontade as minhas explorações. E estava disposta a explorar. Se o coelho ainda estava lá dentro talvez eu pudesse agarrá-lo. Comecei a rastejar e em breve estava dentro do buraco. Ao principio não vi nada porque a escuridão era muita e levou ainda algum tempo até os meus olhos se habituarem á falta de luz. Quando comecei a ver reparei que a toca era comprida e que a certa altura inclinava-se descendo mais para as entranhas da terra. Foi aí que hesitei, eu não me queria enfiar muito dentro daquele buraco, porque tinha medo de não poder regressar. Além disso era comprido e também estreito; e eu nunca conseguiria dar a volta se quisesse regressar. Teria que recuar em marcha-atrás se quisesse sair daquela toca. Além disso começava a sentir falta de ar e calor. O buraco era abafado e tinha dentro um cheiro a raízes podres e a terra húmida. Mas a minha curiosidade era cada vez maior, eu não via o coelho e perguntava-me aonde é que ele se teria metido. Resolvi arriscar um pouco mais, era só rastejar mais um bocadinho e tinha a certeza que acabaria por ver o fundo da toca. Arrisquei um bocadinho mais e, de repente, para meu espanto e terror, o chão fugiu-me debaixo dos joelhos e eu vi-me no ar a cair a toda a velocidade para o fundo dum buraco mais negro que o carvão.


2

O Poço

Foi um susto tremendo. O maior medo que tive na vida. Até gritei com todas as forças que tinha…Mas de nada valeu e continuei a cair a uma velocidade estonteante. Tão depressa que mal respirava. Tinha os olhos fechados e rezava a todos os santos para que, quando chegasse ao fundo, não me magoasse muito. Era um pensamento absurdo, mas, naquela altura, perante a perspectiva de acabar toda partida no fundo daquele poço que parecia não ter fim, não tinha sequer tempo para ter pensamentos racionais. A certa altura qualquer coisa travou a minha queda, pois levei uma sacudidela e comecei a cair mais lentamente. Tão lentamente que até achei estranho. Parecia que havia uma força que me segurava e que aparava a minha queda até ao fundo do poço. Um poço que parecia que nunca mais acabava o que era também muito estranho. Por aquilo que eu já caíra segundo me parecia, dava para eu ter atravessado o planeta todo até aos antípodas. A queda tornou-se cada vez mais lenta e uma luminosidade que parecia vir das paredes fez, de repente, com que eu deixasse de estar completamente às escuras. E o que vi deixou-me de boca aberta. Um pouco mais abaixo, num nicho cavado na parede do poço, um ser apareceu. Parecia um esquilo e tinha na mão um pacote com uma pega. Quando passei por ele a uma velocidade cada vez mais lenta ele estendeu uma pata e entregou-me o pacote dizendo-me: “É para si. A viagem ainda é longa e precisa de comer.” Olhei para ele aparvalhada e o bicho disse-me adeus com uma pata. Olhei para dentro do pacote e vi que continha duas sanduíches. Tirei uma para fora e vi que era de queijo. De repente veio-me uma fome tremenda e atirei-me à sandes. Comi as duas; a outra, para meu desconsolo, era de fiambre. Mas mal acabei de comer, outro nicho apareceu por baixo de mim com o mesmo ser a observar-me -, seria o mesmo…Desta vez trazia pendurado na mão o que me pareceu ser uma garrafa. Mal passei pelo nicho ele entregou-ma dizendo-me: “É para si. A viagem é longa e precisa de beber.” Desta vez portei-me melhor e não fiz cara de parva. Antes atirei-lhe um grito angustiado: “Onde é que eu estou?” Ele não me respondeu e desapareceu rapidamente no fundo do buraco. Abri a garrafa e bebi o seu conteúdo porque, de repente, senti uma enorme sede. O liquido tinha um sabor agradável e fresco e sabia a maçã. A minha queda continuou e, de quando em quando, com alguns metros de intervalo, apareciam na parede umas placas com dizeres que me pareceram ditados populares. Havia uma do meu lado esquerdo que dizia : “ Seja bem vindo quem vier por bem.” Mais abaixo outra do lado direito dizia: “Dá Deus nozes a quem não tem dentes” e havia ainda outra que rezava assim: “ Não olhes para trás porque já estás a olhar para a frente”. Este não percebi. “Não olhes para trás porque já estás a olhar para a frente…” Mas que falta de sentido era aquele…O que é que aquilo queria dizer…Mas, como também ali nada fazia sentido, eu não tinha nada que me admirar. De repente alguma coisa começou a acontecer com o meu corpo. Primeiro senti um esticão, um esticão que me fez doer os ossos todos e quase me desequilibrou. Depois, para meu horror, as minhas pernas começaram a crescer. E a crescer desmesuradamente. Esticaram de tal maneira que rebentaram com os jeans que trazia vestidos e apanhei um grande susto. De tal maneira que comecei a gritar como uma louca e a balancear os pés. Não sabia porque fazia aquilo, talvez por instinto, talvez julgasse que elas voltassem ao normal se eu as balanceasse. Mas não serviu de nada, elas continuaram a esticar até eu ficar igual aquelas imagens que se vêm nas feiras quando visitamos a sala dos espelhos e vemos a nossa imagem reflectida completamente deformada. As pernas ficaram tão grandes que chegaram ao fundo muito mais depressa que o resto do meu corpo. Eu percebi que tinha batido no fundo porque, quando os meus pés chegaram ao chão, quase me desequilibrei, tal era o meu tamanho naquele momento. Quando consegui readquirir novamente o equilíbrio ouvi uma voz fininha a protestar: “Porra! Olhe que você ia-me pisando…” Olhei para baixo e vi um ser pequenino e peludo a olhar para mim. Tinha dois olhos muito estreitos e luminosos e um focinho pontiagudo, manobrava uma máquina tão pequenina quanto ele. “Quem é você ?” perguntei mal me senti firme sobre as minhas pernas gigantes. “Quem sou eu? Repetiu o ser que parecia uma toupeira. “Pois bem, sou aquele que manobra a máquina que ajuda todos aqueles que querem a descer o poço.” Inclinei-me estendi o meu braço que me parecia pequenino e apontei para a máquina minúscula que estava ao lado dele. “Foi essa máquina minúscula que aparou a minha queda ?” “Claro. Se não fosse ela, você tinha-se partido toda cá embaixo.” Depois olhou bem para mim e comentou: “O palerma do dente afiado mais uma vez meteu a pata na poça e deu-lhe a beber da garrafa errada.” “O quê...?” “O Liquido que você bebeu era o liquido errado, veja o estado em que ficou…” De facto ele tinha razão aquelas pernas gigantes faziam com que eu me desequilibrasse constantemente. “Como é que eu me safo desta, toupeira ?” Perguntei tentando dar um tom cordial à minha voz. “Toupeira eu…- respondeu ele todo indignado -. Veja lá como é que me fala se quer a minha ajuda…” “ Então você não é uma toupeira ?” O ser peludo olhou para a máquina que continuava a fazer um barulho surdo e sem me responder deu um pontapé numa alavanca; a máquina cessou imediatamente de ronronar. “Pronto, está desligada, hoje mais ninguém deve descer.” Virou-se para mim e apontou para uma porta pequena que estava justamente atrás de mim. “ Para resolver o seu problema terá que passar por aquela porta.” Olhei para a porta e vi que era impossível passar por ela, tinha pelo menos metade do meu tamanho. “É impossível ! Com o tamanho que tenho não caibo lá de certeza !” “Cabe…Olhe que cabe... Eu abro a porta e você passa primeiro as pernas.” “Mas como é que eu faço isso?” perguntei aflita sentindo que devia ser inútil sequer tentar. A toupeira -, eu continuo a chamar-lhe assim porque não tenho outro termo de comparação -, soltou um suspiro e passou a correr por entre as minhas pernas, abriu a porta e olhou para mim. Como eu não me mexesse insistiu: “Vá lá...dobre-se toda e estenda as pernas.” Como eu continuava sem me mexer ela tornou a insistir, desta vez num tom mais persuasivo: “Vá lá…não tenha medo, faça como eu lhe digo.” Não sei se terá sido o seu tom persuasivo, ou porque de facto eu não via outra solução, comecei a dobrar-me lentamente porque ainda não estava acostumada aquelas pernas gigantes. Depois de me ter dobrado e sentado o rabo no chão comecei a esticar as pernas e a toupeira, para não se ver arrastada pelas minhas pernas gigantes, colou-se completamente contra a parede. “Vá...está a ir muito bem…Isso, já tem os dois pés do outro lado…Boa, agora estique-se toda…” Eu estiquei-me e senti que as pernas tinham passado para o outro lado. “Agora arraste-se que consegue passar pela porta.” Disse ela num tom já mais confiante. “E depois…o que é que vai acontecer-me do outro lado ?” Perguntei já com uma ponta de angústia a oprimir-me o peito. Ela não respondeu e eu senti que, o que ela mais desejava, era livrar-se de mim o mais depressa que pudesse. Continuei a arrastar-me já resignada e para grande espanto meu a minha cabeça passou sem dificuldade através da porta. Quando finalmente já estava toda do outro lado senti a porta a fechar-se com estrondo atrás de mim.


3

Os Três Sábios


Durante alguns instantes, depois do estrondo horrível da porta a fechar-se, apenas senti o silêncio e como estava de costas para baixo a primeira coisa que reparei foi no teto. Era completamente branco, de um branco que quase magoava os olhos. Logo de seguida, quando tentava perceber onde me encontrava, uma voz aflautada e irritante gritou-me aos ouvidos: “Já viram os pés dela ? nunca vi pés tão grandes e tão feios.” Imediatamente outra voz tão irritante como a primeira acrescentou: “E as pernas, parecem dois paus de bandeira de tão esticadas que estão.” Levantei a cabeça irritada e pronta a responder com comentários ainda mais jocosos e malcriados quando dei de caras com três homenzinhos esquisitos. Eu chamo-lhes homenzinhos porque a altura deles mal ultrapassava os meus joelhos. Mas isso acontecia por as minhas pernas ainda estarem demasiado grandes e compridas. “Quem são vocês ?” perguntei de chofre mal olhei para eles. “Quem somos nós?” Repetiu um dos homenzinhos que era tão magro como um pau duma vassoura. “Sim, quem são vocês?” Tornei a repetir olhando os três e perguntando-me de onde teria surgido aquelas personagens tão bizarras e esquisitas. Eles não responderam logo, olharam primeiro uns para os outros como se eu tivesse feito a pergunta mais estúpida do mundo; e o que tinha falado primeiro e que parecia ser o porta-voz do grupo respondeu: “Nos somos os três sábios.” “Os três sábios ? ! E o que é que significa isso?” O homenzinho pareceu ficar escandalizado com a minha ignorância. “Então não sabe…- respondeu ele com um ar que parecia indignado e ao mesmo tempo também ofendido -. Somos os principais sábios do conselho de sábios.” Disse ele com um ar importante. “E que conselho de sábios é esse de que nunca ouvi falar ? “Nunca ouviu falar ?!” Perguntou ele com um ar ainda mais espantado e indignado. “Não. Nunca ouvi falar” respondi sentindo que estava finalmente a vingar-me dos comentários jocosos e malcriados que tanto me tinham irritado. “Pois fique sabendo que somos o principal e único conselho de sábios deste lugar.” “Ah! Então vocês são o principal e único conselho de sábios deste lugar. ” Eles olharam uns para os outros e disseram que sim. E o que parecia ser o porta-voz do grupo enrugou a testa, olhou para mim de viés e acrescentou: “Parece que ainda dúvida daquilo que lhe acabei de dizer…” Suspirei, sorri e respondi de maneira a que a minha irritação que já era muita não transparecesse demasiado na minha voz: “Eu ? ! Duvidar de vocês ? ! Longe de mim tal ideia. Aliás vou precisar da vossa ajuda e grande sabedoria para voltar ao meu estado normal.” “Estado normal…o que é isso de estado normal?” Perguntou um dos homenzinhos que ainda não tinha falado e que trazia na cabeça um chapéu preto de aba larga e de copa em bico parecido com aqueles chapéus que as bruxas costumam usar. “Estado normal…- repeti eu com uma grande dose de paciência -, é o estado em que me encontrava antes de as pernas me terem pregado esta enorme partida.” “Ah! As sua pernas pregaram-lhe uma grande partida, e que partida foi essa ?” perguntou ele com o ar mais estúpido e angélico deste mundo. Eu quase perdi a cabeça com tanta burrice. Tive que respirar fundo e deixar que o ar saísse o mais lentamente possível, ao mesmo tempo que esperava que levasse também com ele a enorme sensação de frustração e de irritação crescente que sentia dentro de mim. “Então não vê que cresceram demais?” Respondi eu quase a gritar e já a denotar sem querer alguma da minha irritação na voz. Eles começaram logo a discutir entre si e um deles, depois de muita algaraviada que não percebi,- eles falavam entre eles numa língua que me era completamente estranha -, deslocou-se a uma mesa que tinha uma cor quase tão branca como o teto e abriu uma gaveta. Aliás toda a sala onde me encontrava era de cor branca. Fora a mesa e três cadeiras que se encontravam encostadas a um canto, apenas um objecto grande de cor preta e de uso indefinido que estava encostado no canto oposto fazia a diferença. O homenzinho voltou com um metro igual ao que os carpinteiros usam e, enquanto caminhava, ia desdobrando-o com lentidão. Quando chegou perto de mim encostou-o já esticado a uma das minhas coxas e começou a medir. “Hum…De facto…Hum.” Colocou um dedo sobre um número e foi mostrá-lo aos colegas. Tornaram a discutir entre si numa algaraviada mais gritada desta vez. E eu impaciente a ouvi-los sem perceber nada do que diziam e a temer ao mesmo tempo qualquer solução que podia sair daquelas cabeças malucas. Por fim, depois de muito discutirem e falarem, um deles veio ter comigo e com um ar muito solene disse-me: “Os meus colegas acham e eu também e depois de muito discutirmos, que as suas pernas assim como estão lhe ficam até muito bem. Portanto, achamos que não é necessário fazer-lhes mais nada.” Fez uma pequena vénia e retirou-se lentamente com um ar muito digno. Ao ouvir aquela resposta a fúria que me assaltou foi tão grande que me coloquei instantaneamente de pé. Toda eu tremia. Então aqueles patifes não iam fazer nada em relação às minhas pernas…? Iam deixar-me naquele horrível estado…? A minha vontade era esmagá-los com uma pisadela do meu pé gigante. Mas eu precisava deles. Eram os únicos que me podiam ajudar a voltar ao meu estado normal. Embora temesse qualquer solução que pudessem encontrar. Abri a boca e soltei um grito que fez um eco tremendo nas paredes daquela sala: “Seus malandros! Ou tratam já de me encolher ou esmago-os a todos com o meu pé gigante!” Os homenzinhos ficaram como que petrificados. “Mexam-se seus sábios de meia tigela! Ou ainda experimentam o peso do meu pé!” E para verem que eu não estava a brincar levantei o meu pé direito. Foi remédio santo. Eles começaram a mover-se em todas as direcções com uma velocidade incrível. Primeiro foram buscar o objecto grande e preto para o meio da sala. Depois, um deles, o do chapéu bicudo, chegou perto de mim todo encolhido de medo e convidou-me a entrar dentro dele. “Eu preciso mesmo de entrar dentro dessa caixa para voltar ao normal ?” Perguntei bastante receosa do que me pudesse acontecer. “Tem que ser” respondeu ele com a voz a tremer. “É a única maneira das suas pernas encolherem.” Resignada entrei dentro dela. Como era muito grande fiquei com a cintura, os braços e o resto do corpo até á cabeça fora da caixa. A única parte do meu corpo que estava tapado pela caixa eram as minhas pernas gigantes. “Esta coisa vai mesmo funcionar ?- Perguntei cada vez mais receosa. O do chapéu bicudo sorriu e disse que sim. Os outros olhavam em silêncio como meros espectadores. Davam a sensação de serem apenas assistentes convidados para assistirem à morte duma vaca nas mãos dum magarefe num talho qualquer. Uma súbita angústia e um medo terrível do que podia acontecer-me secou-me de repente a garganta. E eu tive uma enorme vontade de sair dali para fora. Mas em vez de saltar da caixa para fora e de gritar para que parassem, limitei-me estupidamente a perguntar enquanto o homenzinho de chapéu bicudo levantava uma varinha comprida e brilhante com a mão direita. “Não viram por acaso um coelho branco e pequenino com óculos?” Não obtive resposta, porque a explosão de luz foi tão grande que fiquei quase cega. Senti-me transportada num remoinho de vento que me levou pelos ares, o medo foi tão grande que gritei com quanta força podia. Depois, como por milagre, vi-me novamente de pé num prado cheio de relva verde. À minha volta um bando de pássaros coloridos piava alegremente. Estava novamente cá fora e com o meu tamanho natural. As pernas tinham de novo encolhido e voltado ao tamanho normal


4

O Princepezinho


Era um sitio maravilhoso e belo. Eu estava de pé num campo relvado que se estendia até o horizonte, semeado de canteiros de flores e também de árvores carregadas de folhas verdes espalhadas um pouco por todo o lado. Apenas ao longe, já perto da linha do horizonte, vi um grande bosque com árvores compridas que me pareceram serem pinheiros. O cheiro que as flores deitavam era maravilhoso e havia pássaros coloridos por todo o lado. Alguns deles tinham caudas compridas como aquelas aves do paraíso que habitam os climas tropicais. De qualquer maneira sentia-me feliz porque as minhas pernas tinham regressado ao tamanho normal. Os três sábios tinham sido afinal competentes e conseguido que as minhas pernas encolhessem. Estava-lhes agradecida por isso; embora tivessem feito demasiado espalhafato e me tivessem enviado para este sitio que eu não fazia a mínima ideia onde era. Mas devia ser o paraíso ou coisa parecida, e quem devia gostar muito de estar aqui era a mademoiselle; porque a ideia de paraíso que ela tinha era muito parecida com este lugar. Só lhe faltava Deus e os anjos. Pelo menos, por enquanto, ainda não vira qualquer deles. Resolvi explorar o lugar para perceber onde estava e ao mesmo tempo se tinha algum caminho de volta para minha casa. Os meus pais e a mademoiselle já deviam estar em cuidado com a minha longa ausência. Além disso começava a sentir fome. Só tinha comido aquelas duas sanduíches e bebido aquela bebida esquisita que me esticara as pernas; pelo menos estava convencida disso. Comecei a andar e resolvi ir na direcção do bosque que ainda ficava longe. Por estranho que possa parecer á medida que caminhava os pássaros seguiam-me. Alguns voavam ao meu lado, especialmente os de cauda comprida. Enquanto os outros saltavam de árvore em árvore. Ou seja, voavam sempre para a árvore que ficava à minha frente. Eu comecei a achar aquele comportamento um bocadinho estranho e comecei a perguntar-me se aqueles pássaros não seriam um bocado atrevidos e até um poucochinho inteligentes. A dada altura encontrei o que me pareceu ser uma horta. Pois vi árvores de frutos, canteiros de legumes, de alfaces e até de batatas. Um poço e uma cerca de madeira à volta daquilo tudo. E o mais engraçado è que, junto à cerca, estava um espantalho. O espantalho mais mal amanhado que alguma vez vira na vida. Era de palha, usava um casaco de cor escura todo roto e um chapéu preto amarfanhado e esburacado. Só que a palha que o enchia, além de estar velha e gasta estava, também, a desfazer-se. Por isso havia partes do espantalho que estavam quase vazias; como, por exemplo, os braços e o peito. Era um espantalho meio ridículo que não metia já medo a ninguém. Uma das árvores estava carregadinha de maçãs vermelhas bem maduras. Imediatamente a minha língua começou a salivar e eu não me fiz rogada. Saltei a cerca e corri para a árvore. Comecei a colher e a comer. Já tinha despachado duas maçãs quando reparei, um pouco mais longe, outra árvore carregadinha de pêras. Quem tinha plantado aquelas árvores de fruto ainda não tinha vindo colher, porque, por todo o lado, havia fruta pelo chão. Como a minha mãe me tinha dito para só comer fruta das árvores porque a que estava caída podia estar estragada, colhi apenas a fruta que estava nas árvores. As pêras eram tão deliciosas como as maçãs; e quando me senti suficientemente satisfeita, resolvi fazer a digestão debaixo duma das árvores pouco me importando que fosse surpreendida ou não pelo dono ou dona da horta. O sono começara a atacar-me e eu resolvi bater uma soneca ao abrigo daquelas árvores. Encostei-me a uma delas e fechei os olhos. Não sei se dormi durante muito tempo ou não. Só sei que acordei cheia de sono e com alguém a abanar-me o ombro. Abri os olhos estremunhada e dei de caras com um miúdo. Um miúdo loiro e de olhos azuis em que a cabeça parecia um campo de trigo doirado a brilhar á luz do sol e em que a pele era tão rosada como a dum bebé recém-nascido. Toda a sua cara era um compêndio de traços bem desenhados e perfeitos que me fez lembrar imediatamente os rostos daqueles bebés que anunciavam um conhecido pó de talco. Era o miúdo mais bonito que alguma vez vira na vida. Quando me viu acordada sorriu e a primeira coisa que disse foi: “Por favor…desenha-me uma cabra…” Aquilo pareceu-me familiar, e quando ele tornou a repetir a frase lembrei-me de repente de onde a conhecia. “Não é uma cabra !- Disse eu muito depressa-, o que eu tenho que desenhar é uma ovelha !” Eu ainda estava meio estremunhada quando disse aquilo, mas fiquei logo acordada com a reacção que ele teve quando percebeu que eu tinha trocado a cabra por uma ovelha. A cara dele tornou-se feroz e começou aos berros: “ Qual ovelha qual quê ! Eu quero é uma cabra! Já estou farto dessa história da ovelha ! Quero uma cabra!” Repetiu ele batendo com o pé no chão. E enquanto berrava saltava ao mesmo tempo a pés juntos em cima da fruta estragada. Eu fiquei abismada perante tamanha reacção e tratei logo de acalmá-lo: “Pronto…pronto…não é uma ovelha é uma cabra.” Ele pareceu acalmar e acabou por sorrir para mim. Parou de saltar e veio sentar-se ao meu lado. Fora aquele ataque de fúria medonha parecia um miúdo simpático. Estava vestido com um fato verde alface de manga curta e usava um lacinho vermelho junto ao colarinho. As botas eram pretas e muito bem engraxadas. Olhava para mim com um ar curioso e não devia ter mais de seis anos. Enquanto eu o observava ele desenhou no chão com a ajuda de um pau um circulo largo e lá dentro desenhou o que me pareceu ser uma cabra. “Desenhas-me uma cabra igual a esta ?” pediu ele na sua voz fininha. Eu sorri, abri as mãos e expliquei-lhe: “Eu gostava, mas infelizmente não tenho nada com que desenhar.” Ele fez beicinho e começou a chorar num enorme berreiro. Mais uma vez fiquei assustada com a sua reacção e para o acalmar comecei a desenhar no chão com a ajuda de um pau. Ele parou imediatamente de chorar e começou a olhar atentamente o desenho que eu fazia no chão. Quando percebeu o que eu estava a desenhar bateu as palmas de contente. “É uma cabra não é?” Perguntou ele com um ar satisfeito. “É sim senhor e está dentro dum redil para não fugir” expliquei-lhe deitando-lhe ao mesmo tempo o meu mais bonito sorriso. Enquanto desenhava, eu até nem era uma grande desenhadora, ele manteve-se calado. No momento em que acabei de dar o último retoque ao redil ele voltou-se para mim e perguntou: ”Como é que te chamas ?” Eu respondi-lhe: “Ermelinda. Mas para os amigos sou apenas Linda.” “Linda...então chamas-te Linda.” Repetiu ele batendo mais uma vez as palmas. “E tu, como é te chamas?” Perguntei-lhe sem ter a certeza de vir a obter alguma resposta. Ele olhou para mim e uma expressão gaiata brilhou-lhe nos olhos. “Eu sou o princepezinho.” “E estás aqui á muito tempo ?” Perguntei-lhe. Ele deste vez respondeu com um ar mais sério: “Eu estou sempre aqui.” “Sempre viveste aqui é isso ?” “Sempre.” Respondeu ele com aquele ar sério que lhe tornava o rosto num apetite e me dava ao mesmo tempo uma enorme vontade de enchê-lo de beijos. Era como se fosse um bebé e apetecia-me embalá-lo o tempo todo nos meus braços, como fizera ainda à bem pouco tempo com algumas das minhas bonecas. Mas sabia que ele não era boneca nenhuma e que por isso não podia embalá-lo. Embora reconhecesse que naquele momento sentia uma enorme necessidade de ter uma boneca nos meus braços. “Podemos tapá-la ?” perguntou ele com uma expressão implorativa naqueles belos olhos azuis. “Claro que podemos tapá-la” respondi eu e comecei logo a desenhar um alpendre. “Não…não…não quero assim” disse ele muito depressa. Começou á procura de pauzinhos e de palha e rapidamente começou a construir uma cabana por cima do desenho da cabra. Quando ficou pronta deu saltos todo contente. ”Assim ela já está em casa…assim ela não vai poder fugir.” Baixou-se de repente e espreitou para dentro da cabana. “Olha…Já está a dormir.” Era uma ternura vê-lo rir e divertir-se, se não fosse o mau génio que mostrara à bocado até podia passar por um menino muito bonzinho. “Começo a ter fome” disse ele de repente. Virou-se para mim e perguntou: “Também tem fome ? Quer que eu lhe arranje alguma coisa para comer?” “Não obrigado. Eu já comi à bocadinho, mas se quiseres ir comer podes ir á vontade.” Ele sorriu, agarrou numa das minhas mãos e começou a puxar-me. “Venha! Vou mostrar-lhe uma coisa.” Eu deixei-me conduzir, não sabia o que ele queria mas, pelo olhar maroto que me tinha deitado, fiquei curiosa de ver o que vinha a seguir. Ele levou-me a trepar um monte que ainda ficava a alguma distância da horta. E o que vi do outro lado deixou-me de boca aberta. Á minha frente estava um lago parecido com aqueles que vemos frequentemente nos jardins públicos carregado de patos e de cisnes brancos. Confesso que era a última coisa que esperava ver naquele sitio. Mas depois das aventuras porque passara já nada me admirava. Ele correu todo contente para o lago, chapinhou na água e começou a correr atrás dos patos. Ao principio não compreendi bem o que ele pretendia, corria atrás dos patos aos gritos e aos saltos e eles fugiam á sua frente assustados. Quando finalmente agarrou num e tentou torcer-lhe o pescoço assustei-me a sério; porque não estava a perceber como é que um menino tão bonito e de aspecto tão inocente pudesse conter dentro dele tamanha agressividade. Apanhei-o justamente a tempo quando ele, com aquelas mãozinhas que pareciam tão delicadas, tentava a todo o custo e confesso que quase o conseguiu, torcer o pescoço ao pobre pato. Ele protestou e tentou agredir-me com pontapés, mas consegui tirar-lhe o pato e ele desatou imediatamente numa grande choradeira. A minha vontade era assentar-lhe com força umas boas palmadas naquele traseiro. Mas quando ele, depois de ter chorado tudo quando podia, começou por entre soluços a dizer: “Era para si…era para si…Confesso que fiquei desarmada. “Era para mim ?” “Era. Era para si para você comer.” Respondeu ele por entre soluços. “Querias matar o pato para eu comer ?” Ele disse que sim com a cabeça. Eu pensei: meu Deus, é verdade que eu ás vezes sou uma grande peste, mas nunca na minha vida pensaria em matar um pato para oferecê-lo à minha mãe ou à mademoiselle. Depois lembrei-me que o rapazinho estava ali sozinho à demasiado tempo. E por isso não tinha qualquer noção do que era o bem ou o mal. Como ele continuasse a chorar comovi-me e abracei-o. Ele, em vez de me repelir, colocou o polegar na boca e encostou-se todo a mim. Imediatamente senti a crescer dentro de mim uma enorme ternura e comecei a afagar os seus bonitos caracóis doirados. Um sorriso de felicidade brotou-lhe da boca e ele fechou os olhos. Parecia um anjo, igual àqueles anjos italianos que eu tinha visto num livro sobre pintura da Renascença. Enquanto afagava o cabelo dele perguntava-me se teria tido como toda a gente um pai e uma mãe e onde é que estariam naquele momento. Era muito triste estar assim sozinho naquela idade sem ter ninguém a tomar conta de si. De repente veio-me a ideia de o levar comigo se conseguisse sair dali. A minha mãe com certeza que não se ia importar de ter mais um filho e ao meu pai tanto se lhe dava, raramente estava em casa. Olhei para ele e vi que tinha adormecido, o seu sono era tão tranquilo que me custava acordá-lo. Por isso fiquei para ali, sentada, junto ao lago, com ele a dormir nos meus braços como se fosse uma das minhas bonecas preferidas. Finalmente tinha conseguido aquilo que mais desejava, tê-lo nos meus braços e poder encher aquelas bochechas gordas com os meus beijos mais ternurentos. Ele dormiu quase até ao pôr do sol e no meio do seu sono, algumas vezes agitado, julgo que por alguns sonhos maus, e por entre os inúmeros beijos que eu ia dando naquelas bochechas rechonchudas, ouvi algumas vezes ele pronunciar baixinho: ”Mãe…mãezinha…” isso acontecia quase sempre quando eu acabava de lhe dar um beijo mais ternurento. Naquela altura ele confundia-me com a mãe e eu, já completamente derretida por tê-lo nos meus braços, apertava-o ainda mais contra o peito e lambuzava-lhe a cara toda com os meus beijos mais carinhosos. A noite chegou e ele finalmente acordou. Olhou para mim e sorriu. Deu-me a mão e eu levei-o até à horta. Lá colhi alguns frutos e apanhei alguns legumes. Depois improvisei uma fogueira e com a ajuda de duas pedras fiz como tinha aprendido nos escuteiros, ateei fogo à palha do espantalho a quem tinha roubado alguma. Cozi os legumes e dei-lhe a comer e ele gostou. Depois encostei-me a uma árvore com ele ao meu lado a contemplar aquele céu carregadinho de estrelas. A certa altura perguntei-lhe: “Ouve princepezinho, não gostarias de vir comigo para minha casa ?” Ele não respondeu logo, ficou silencioso a contemplar o céu, como se esperasse que alguma ajuda viesse dali. Repeti a pergunta desta vez mais alto: “Princepezinho, não gostarias de vir comigo para minha casa ?” Ele olhou então para mim e respondeu numa voz triste: “Não posso.” “Não podes… porquê ?” Ele encolheu os ombros. Eu achei aquilo estranho, porque é que ele não podia sair dali…Voltou-se de repente para mim e com aqueles olhos azuis muito abertos disse-me: “Tu podes. Se quiseres podes.” “Eu posso…mas tu não podes…” Ele concordou. “E como é que eu faço para sair daqui?” Perguntei sentindo o coração a bater com força dentro do meu peito. Ele levantou-se e agarrando-me a mão levou-me até ao alto do monte perto do lago. Ali pediu para eu ficar quieta enquanto os seus olhos percorriam o céu à procura de qualquer coisa que não percebi. Ao fim de longos minutos sem que nada acontecesse virei-me para ele e com a impaciência a brilhar-me no olhar perguntei-lhe: “Então…” ele apenas apontou para o céu. Virei a cabeça e o que vi estarreceu-me. Uma mancha escura que parecia de fumo negro tapava as estrelas e crescia a olhos vistos. Aquilo atemorizou-me e eu encolhi-me. O miúdo, pelo contrário, parecia calmo, sem demonstrar qualquer medo pelo que estava a acontecer. Senti-me envergonhada e voltei á minha posição inicial. A mancha entretanto alongou-se e transformou-se num espécie de tubo que começou a crescer e a correr na nossa direcção. Parecia um remoinho igual ao remoinho de um tornado só que mais fino e mais comprido. Ao mesmo tempo que crescia fazia um barulho terrível muito parecido com o do aspirador de minha casa. O princepezinho olhava para aquilo fascinado e não dizia nada. Eu também me sentia fascinada, mas estava, ao mesmo tempo, toda borrada de medo. E sem ousar gritar ou mexer-me. Se o miúdo estava ali sem demonstrar qualquer receio daquela coisa eu, que era mais velha do que ele, não podia dar parte de fraca. Tinha que aguentar e a pé firme. A coisa desceu com aquele barulho de aspirador cada vez mais alto e começou a envolver-nos. Senti-me sugada. Positivamente sugada. Como estava agarrada à mão dele puxei-o para mim. Só que o miúdo parecia pesar toneladas. Não saía do chão…eu puxava e ele não se mexia. Tentei mais uma vez, o braço doía-me e eu sentia-me toda esticada. Como se houvesse duas pessoas a puxarem-me cada uma para seu lado. Se aquilo durasse muito mais tempo o meu corpo acabaria por partir-se ao meio. Ele então olhou para mim e gritou-me: “Largue-me ! É inútil !” Disse-me aquilo com o olhar mais firme que alguma vez contemplei num miúdo. Eu obedeci. Triste, contrariada e vexada pela minha derrota. Vi-o ficar cada vez mais pequenino sozinho no alto daquele monte solitário enquanto o funil me levava consigo não sei para onde. Quando ele desapareceu da minha vista fechei os olhos e chorei.


5


O Dragão Solitário


Não sei onde o remoinho me deixou, mas pareceu-me um local triste. O céu tinha uma cor cinzenta e a vegetação um aspecto desolado. Estava no meio do que me pareceu ser uma floresta. Havia pinheiros, muitos eucaliptos, eram até demais para o meu gosto, alguns choupos e outras árvores que não consegui identificar. Mas faltava qualquer coisa que só com o decorrer do tempo percebi o que era: vida animal. Não vi animais em lado algum. Não vi pássaros no céu nem qualquer outro tipo de animal em terra. Parecia uma floresta morta ou quase a morrer. Aquilo assustou-me. Onde raio é que eu tinha vindo parar ? O único som que ouvia era o do vento a abanar os ramos das árvores mais altas. Mais nenhum outro som me chegava aos ouvidos. Era como se estivesse isolada num local completamente vazio onde o único ruído que ouvia era o do ar a correr por entre as árvores. Era deprimente e estarrecedor. Para quebrar aquele tipo de atmosfera e para me animar um pouco mais resolvi explorar. Comecei a percorrer a floresta na esperança de encontrar qualquer coisa que me indicasse que havia alguma coisa viva além de mim e das árvores que me pareciam estarem a morrer. Mas, por mais que andasse e percorri alguns quilómetros, não vi nada; mesmo nada que me indicasse a existência de qualquer ser vivo naquele lugar. Finalmente, cansada e deprimida, resolvi sentar-me e pensar numa solução para sair rapidamente dali. Não sentia fome por mais estranho que possa parecer, embora não tivesse comido nada desde que partira do mundo do princepezinho. Parecia que o ambiente desolado e triste daquele mundo me tirara o apetite. Mas eu tinha que sair dali e o mais rapidamente possível, ou acabaria por morrer de fome ou de tristeza. Enquanto ponderava uma solução, qualquer coisa de extraordinário aconteceu. Ouvi de repente um ruído diferente do ruído que o vento fazia ao abanar as árvores. Foi um ruído rápido, curto. Um ruído que faz um bocado de pau ao partir-se. Fiquei logo atenta e excitada na esperança que, finalmente, alguma coisa viva fosse aparecer defronte de mim. Mas logo a seguir senti medo. Porque essa coisa viva podia também ser perigosa. Eu não sabia que espécie de vida podia habitar aquele lugar, se é que havia vida naquele sitio. Por isso esperei quietinha que alguma coisa surgisse. Como nada acontecesse e o sol estivesse quase no ocaso resolvi ficar ali para passar a noite. Não tinha frio e por isso não senti necessidade de fazer uma fogueira. Para me alimentar colhi alguns figos duma figueira solitária que me pareceram murchos e sem gosto; mas como não vi mais nada bom para comer tive que me contentar com eles. Quando me preparava para me deitar ouvi novamente um ruído diferente. Como se alguém andasse a caminhar no meio da floresta muito perto dali. Imediatamente fiquei atenta e tentei esquadrinhar por entre as árvores alguma sombra que se movesse. Como nada acontecesse e nada se movesse deitei-me. Sentia-me insegura e atemorizada. E se afinal havia alguma coisa viva por ali…E se essa coisa fosse perigosa para mim…Com um olho aberto e outro fechado tentei dormir. Precisava de todas as minhas forças para, no dia seguinte, arranjar uma forma de sair dali. Se tinha conseguido sair do mundo do princepezinho, e só a lembrança dele oprimia-me o coração, também de certeza conseguiria sair dali. No decorrer da noite acordei de repente com a sensação que estava a ser observada. Levantei-me e vi uma sombra enorme a desaparecer entre as árvores. O episódio deu-me a certeza que havia outra coisa viva além de mim dentro da floresta. O resto da noite passei-a tranquila. De manhã comi mais alguns figos e colhi outros para o almoço. Depois pus-me a pensar no que devia fazer a seguir. Como é que eu ia sair daquela situação. Devia haver algum meio para chegar ao meu mundo, e tinha que o encontrar muito rapidamente, porque não me estava a apetecer mesmo nada ficar presa naquele mundo triste e desolado. A solução era procurar e procurar sempre. No mundo do princepezinho tinha saído com a sua ajuda e aqui, se não encontrasse ninguém que me pudesse ajudar, teria que ser eu própria a encontrar um caminho. Uma tarefa um bocado ciclópica para uma miúda com apenas nove anos. Mas que remédio, aqui não tinha nem pai nem mãe a quem recorrer. Apenas eu própria, com a minha própria engenhosidade. Levantei –me, enchi o peito de ar, e pus-me a caminho. Para onde ia…não sei, ia... Comecei a caminhar e aspirei o ar para me dar forças e reconfortar os pulmões e não senti qualquer cheiro nem qualquer gosto, embora houvesse algumas flores silvestres com aspecto ainda viçoso espalhadas por entre as árvores. Mais um sinal da desolação daquele mundo e também um sinal, julgo eu, que o seu fim talvez não estivesse assim tão longe. A certa altura quando atingi uma clareira onde havia um pequeno ribeiro de uma água que me pareceu cristalina e convidativa senti sede. Debrucei-me para beber e ouvi nitidamente o ruído de passos de alguém pesado não muito longe do lugar onde eu estava. Levantei-me e olhei em redor esperando ver quem tinha produzido aqueles sons. Só que, mais uma vez não vi ninguém. Farta de andar a ser observada sem ver o observador desatei a chamá-lo. Gritei para que ele aparecesse e foi então que, por entre as árvores, uma cabeça grossa apareceu. Uma cabeça que me meteu muito medo. Porque, além de ser grossa, tinha uma boca grande e dentes compridos. Por baixo da cabeça havia também um pescoço comprido que abanava à medida que ele andava. O animal -, chamo-lhe assim porque não parecia ser outra coisa -, veio a trotar até ao lugar onde eu estava. Fiquei muito quieta, com medo que qualquer movimento meu desencadeasse uma reacção agressiva da parte dele. Depois de todas as aventuras porque tinha passado não me apetecia morrer num lugar tão triste e desolado dentro da boca duma besta qualquer. Ainda queria rever o meu pai e a minha mãe mais o meu irmão e a mademoiselle. A besta parou a poucos metros de mim e soltou uma espécie de grunhido que me fez lembrar irresistivelmente o bramido dum elefante. Depois abanou a enorme cauda e mostrou os dentes. Parecia que estava contente por me ver. Se estava contente não me ia comer de certeza. Nunca tinha visto um bicho que abanasse a cauda perante o dono e depois o comesse logo a seguir. Por isso fiquei mais descansada e para mostrar que não tinha medo dele fiz-lhe com cuidado uma festa na cabeçorra. O bicho soltou outro bramido e falou. Foi aí que apanhei um grande susto. Tão grande que saltei para trás enquanto gritava: “Quê!!” “Obrigado pela festa” disse ele mostrando os dentes. “Tu falas ? !” Perguntei-lhe de boca aberta. “Claro que falo. Porque é que não havia de falar ?” “Mas tu não és um bicho…?!!” Perguntei-lhe estupidamente. “O que é isso dum bicho ?” Perguntou ele levantando a enorme cabeça. Não respondi, porque, para responder-lhe, teria que lhe explicar demasiadas coisas que não me interessava estar a explicar-lhe naquele momento. Em vez disso perguntei-lhe: “Quem és tu?” Ele respondeu: “Sou um Dagon”. “Um Dagon ?” “Sim, um Dagon. Os Dagons eram os habitantes deste mundo; só que, agora, já não há mais nenhum. Foram-se todos embora. Só eu fiquei.” Eis uma novidade que me pareceu interessante. Para saber mais coisas perguntei-lhe: “Foram-se embora porquê?” Ele respondeu num tom triste: “ Porque este mundo está a morrer. Só eu fiquei, deixaram-me para trás.” Fiquei comovida com a resposta dele, tinham-no deixado para trás num mundo quase vazio de vida. Agora percebia porque é que ele andava atrás de mim. “E os animais que havia neste mundo, o que é que aconteceu a eles ?” Ele engoliu em seco, pelo menos pareceu-me que tinha feito isso, e respondeu: “Eles levaram todos os animais, só eu fiquei.” “Pobre Dagon” disse eu e fiz-lhe outra festa. “O que é que vai ser de ti ?” “Podia ir contigo para onde tu fores... não me queres levar contigo ?” Perguntou ele lambendo-me a cara com uma língua comprida e áspera que me arrepiou a pele toda. Eu sorri e pensei que talvez não fosse má ideia levá-lo comigo, pelo menos enquanto andasse neste mundo. Com aquele tamanho todo seria de certeza uma boa protecção para mim. Talvez ele não fosse o único a ter ficado para trás. “Está bem, podes vir comigo.” Ele começou a dar saltos de contente. Com aquele peso todo a terra até parecia que tremia. “Bom, agora vamos ter de decidir o que vamos fazer.” Disse eu olhando para ele à espera duma sugestão. Ele inclinou a cabeça e com o seu grande olho fixo em mim perguntou: “ O que é que queres fazer ?” “Gostava de encontrar o caminho para minha casa.” Ele ficou alguns instantes calado e logo a seguir perguntou: “Onde fica a tua casa ?” “Fica noutro mundo, muito longe daqui.” Ele pensou um bocadinho e sugeriu: “Podemos experimentar a grande caverna.” “A grande caverna ?” “Sim, a grande caverna. É o lugar que os Dagons utilizaram para se irem embora, para irem para outro mundo.” Fiquei de repente excitada. “Eles foram-se embora pela grande caverna? ” “Acho que sim, porque foi para aí que todos os Dagons foram antes de partirem. Quando lá cheguei já não estava ninguém e eu tive medo de entrar sozinho.” Então era capaz de haver um caminho para casa...Tinha que ir visitar essa caverna. “Tu sabes onde fica essa caverna?” Ele disse que sim. “Sei onde fica. Mas ainda vai levar algum tempo a lá chegar.” Quase bati as palmas. “Então a caminho Dagon, não percamos mais tempo.” Ele pareceu-me estar tão excitado quanto eu estava e rapidamente pusémo-nos a caminho. A caverna ficava no alto duma serra que eu avistava ao longe. Para lá chegar tínhamos que primeiro atravessar a floresta. “Há ainda animais perigosos neste mundo?” Perguntei-lhe. Ele disse que não, que todos os animais tinham sido levados pelos Dagons; perigosos ou não. “Eles levaram-nos a todos para repovoarem o outro mundo.” Eu fiquei mais descansada. Num mundo tão estranho como aquele era bom saber que todos os animais perigosos tinham-se ido embora. “Sabes Dagon, que és parecido com um animal maravilhoso que dizem que existiu no meu mundo e que se chamava dragão?” “Ah sim ? E como era ele ?” “Era grande, voava, tinha um pescoço comprido como o teu e deitava fogo pela boca.” “Que giro…eu não consigo deitar fogo pela boca.” Ri-me e acrescentei: “Ele também não deitava. De facto nunca existiu. É apenas um animal mítico inventado pelo homem.” “Tens a certeza ?” Perguntou ele. Admirei-me com a sua dúvida. “Porquê, achas que estou a inventar?” Ele abanou a cabeçorra e respondeu: “Acho que não. Mas os meus irmãos devem ter ido para um lugar qualquer.” Um arrepio percorreu-me a espinha e engoli em seco. O que é que ele estava a dizer…? “Estás a dizer que eles podem ter ido para o meu mundo ?” “Não sei”, respondeu ele placidamente. “Talvez tivessem ido... Sabes, eu ainda não deito fogo pela boca porque ainda sou muito novo. Mas deitar fogo pela boca é uma das características mais notáveis dos Dagons mais velhos. Quando eu chegar á maturidade vou conseguir fazer o mesmo. Quanto a voar…” Ele abanou a cabeçorra mais uma vez.” Nós temos asas. Olha !” Quando olhei para ele duas asas pequenas que ainda não tinha notado e que eram parecidas com as dos morcegos desdobraram-se nas suas costas. Eram pequenas demais para sustentar no ar um corpo tão grande e pesado como o dele. Mas eram magnificas, tinham uma pele fina que filtrava a luz do dia e que fazia com que brilhassem como duas pedras preciosas. “Talvez os meus irmãos no teu mundo tivessem desenvolvido asas maiores.” Engoli outra vez em seco e um choque eléctrico percorreu-me o corpo da cabeça até aos pés. A ideia dos Dagons terem emigrado para a Terra era magnifica, mas também era uma ideia de loucos. Mas, pelo que eu estava a ver, tudo parecia indicar que talvez tivessem mesmo emigrado. Era impossível ! Os dragões, se eu bem me lembro, teriam existido na Terra à milhares de anos atrás. Era impossível terem sido os Dagons que haviam emigrado apenas à pouco tempo. “É impossível ! Se os dragões existiram na Terra, foi à milhares de anos atrás.” Ele respondeu com toda a tranquilidade: “Os meus irmãos também começaram a sair daqui à milhares de anos atrás. A emigração levou muito tempo, não se passou só num dia; levou muitos milhares de anos. Eu sou o último que ficou.” Senti-me vencida. Não tinha mais argumentos para rebater os dele. “Está bem. Se calhar tens razão e os antigos dragões eram vocês.” Ele soltou um bramido de contente. “Não fiques assim. Se calhar eles emigraram do teu mundo para outro lado qualquer. Talvez não se tivessem sentido lá muito bem no teu mundo.” Eu já tinha desistido de argumentar com ele. “Talvez tenhas razão. Mas o que me interessa agora é chegar á caverna.” Ele empertigou-se quando me ouviu dizer aquilo e colocou-se á minha frente. “Eu vou à frente para te indicar o caminho” disse ele. Eu não queria outra coisa. Por agora, a ideia dos dragões terem emigrado para a Terra teria de ficar para outra ocasião. A viagem durou dois dias, através dum mundo que estava a morrer aos poucos. Tive a prova disso quando o Dagon derrubou uma pequena árvore já na montanha para fazer uma fogueira e ela quase se desfez perante os nossos olhos em pó. “Esta já não tinha o sumo da vida a correr dentro dela e por isso morreu.” Explicou o Dagon. “As outras, não tarda muito devem seguir pelo mesmo caminho.” Senti-me triste e deprimida perante o espectáculo da árvore morta e daquele mundo a morrer aos poucos. “Não há nada a fazer Dagon ? Não há mesmo nada a fazer para salvar este mundo ?” Perguntei angustiada. “O que é que a gente pode fazer…” respondeu ele olhando para mim com uma expressão que significava o nosso encolher dos ombros. Ele tinha razão. O que é que nós podíamos fazer…não tínhamos o poder para mudar o destino. Se os outros, que eram filhos deste mundo nada puderam fazer e fugiram, muito menos podíamos nós fazer que éramos apenas duas pobres criaturas abandonadas e solitárias perante a grandeza e a estranheza do universo. Nessa noite, enquanto nos aquecíamos com os restos da árvore morta, já estávamos bem alto na montanha, perguntei ao Dagon o seu verdadeiro nome. Já estava farta de o tratar sempre pelo nome da sua espécie. Era como se alguém, em vez de me tratar pelo meu verdadeiro nome, me chamasse todo tempo: Humana chega aqui ! Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e redondos e respondeu: “Impossível ! Não conseguias pronunciar o meu verdadeiro nome.” “Não conseguia porquê ? É assim tão difícil ?” “É, é muito difícil. Até eu ás vezes me vejo à rasca para pronunciá-lo.” Tornei a insistir. “Vá lá…deixa ver se consigo pronunciá-lo.” Ele então abriu a boca e pronunciou o seu verdadeiro nome. Não percebi nada e soou-me como o barulho dum moscardo a voar numa sala fechada. “Repete lá…” pedi. Ele repetiu, dessa vez um pouco mais alto e mais lentamente. E dessa vez ouvi qualquer coisa parecida com: Qqqqqzzzzzzsssxxx. Era impossível de facto pronunciá-lo. A garganta humana nunca produziria aquele tipo de sons. “Tens razão. Nunca conseguiria pronunciá-lo.” Ele levantou os braços ou patas, mas a mim pareceram-me mais braços, porque terminavam nuns dedos muito parecidos com os meus e respondeu: “Eu tinha-te dito.” E a minha tentativa para poder chamá-lo pelo seu verdadeiro nome ficou por ali. Não encontrámos ninguém durante a viagem. O mundo estava mesmo vazio de qualquer vida animal, e a vida vegetal estava a definhar aos poucos. Finalmente, depois de dois dias cansativos, chegámos ao alto da montanha. Ele conduziu-me pelo meio de algumas gargantas profundas, com muitos metros de altura. Só de olhar para baixo ficava com vertigens. Até que chegámos junto a um penedo muito alto em cuja base havia um buraco enorme e escuro como uma mina de carvão. “É aqui.” Disse-me ele. Olhei para o buraco escavado na montanha e vi que tinha vários metros de altura. “Caramba ! É enorme !” “É verdade, é enorme. E foi por aqui que o meu povo partiu.” Olhei mais uma vez para o grande buraco e perguntei-me como é que indo por ali eu poderia chegar ao meu mundo. “Tens a certeza que este buraco vai dar ao meu mundo?” O Dagon olhou para mim e hesitou, revirou os olhos e respondeu numa voz quase sumida: “Acho que sim, pelo que me contaste...” Ele não fazia a mínima ideia onde o túnel ia dar. Conclusão: se queria sair dali tinha que arriscar. “Bom, se eu quiser sair daqui vou ter que arriscar” disse em voz alta. Enchi o peito de ar, olhei com um olhar firme a porta da caverna e comecei a andar pisando firmemente o caminho que conduzia até ao interior do buraco. Quando cheguei á entrada olhei para trás. O Dagon não se tinha mexido do lugar onde estava. “Então...vens ou não vens ?” Perguntei-lhe, estranhando que ele não me tivesse acompanhado. O Dagon hesitou. Via-se nitidamente que tinha medo do túnel. Para o encorajar acrescentei: “Não precisas de ter medo, eu estou aqui ao teu lado.” Ele hesitou durante alguns segundos e começou a andar lentamente, quando chegou perto de mim reparei que a testa dele que era larga e comprida estava carregada de gotas de suor. O olhar dele mostrava medo e a sua respiração era apressada e ruidosa. Todo o seu corpo mostrava o terror que sentia por ter que entrar naquele túnel que era tão negro como o breu. “Então Dagon, se quiseres sair daqui vais ter que me acompanhar. Não tenhas medo que eu estarei sempre ao teu lado.” Olhei o túnel e engoli em seco. Eu também tinha medo. Para uma garota de nove anos enfrentar aquela escuridão toda não devia ser nada fácil. Mas se tivesse o Dagon ao meu lado sempre nos podíamos apoiar um no outro. “Ouve Dagon, entramos os dois juntos. E, se por acaso, acontecer alguma coisa a um de nós, estará sempre ali o outro para ajudar. Concordas ?” Ele nem olhou para mim. O seu olhar continuava fixo na entrada do túnel e o suor caia-lhe ás catadupas da testa escorrendo pelo longo pescoço até á sua barriga volumosa. Via-se que nada nem ninguém o obrigaria a entrar dentro daquele túnel. “Dagon, se não vieres eu vou ter que ir sozinha.” Ele olhou fixamente para mim e com o olhos ainda cheios de medo respondeu-me: ”Vai sozinha…vai sozinha…eu não consigo entrar, é mais forte do que eu.” Tive pena dele ia ficar outra vez para trás. Quanto tempo iria ele resistir à solidão... “Dagon…olha que vais ficar sozinho...” “Eu sei” respondeu ele. “Mas não posso fazer nada, não consigo entrar no túnel.” Havia uma doença que a minha mãe uma vez me falara e que dava um nome àquele medo que ele sofria. Aliás eu conhecia uma pessoa que sofria de um medo muito parecido e que também não conseguia entrar em túneis ou no metropolitano. “Bom Dagon” comecei, sentindo o coração bem apertadinho. “Se não vens, eu vou ter que ir sozinha.” Ele olhou para mim e uma lágrima escorreu-lhe até á enorme boca. “Vai…Vai sozinha, eu fico aqui. Se por acaso não conseguires passar por qualquer razão eu estarei aqui á tua espera.” A voz dele estava embargada pela emoção e eu percebi, que se me demorasse mais um minuto, ele começaria a chorar. E um dragão a chorar era uma coisa impensável de ver. “Obrigado Dagon” respondi eu, e comecei a andar. Entrei no túnel e parei. Olhei para trás na esperança que ele me seguisse, só que ele não fez nenhum movimento para vir atrás de mim. Estava ali parado a olhar estupidamente para o fundo do túnel. Acenei-lhe e continuei com o medo a começar a apertar-me o coração. O túnel era comprido e a certa altura virou á esquerda e eu deixei de o ver. Continuei a andar embora a escuridão fosse quase total. A pouca luz que entrava vinha da entrada larga e grande. A certa altura deixei quase de ver e reparei que o túnel acabava um pouco mais á frente. Se era assim, como é que podia conduzir a outro mundo…devia haver qualquer engano... Parei a alguns metros do fim e perguntei-me se não devia voltar para trás e ir ter novamente com o Dagon que me esperava à entrada do túnel. Depois pensei: não, não vou desistir tão perto do fim. Se calhar existe alguma passagem dissimulada na parede que é preciso encontrar. Se os Dagons conseguiram chegar a outro mundo vindo por este túnel é que existe de certeza uma passagem. Mais encorajada com o meu raciocínio dei um passo em frente e foi então que sofri uma vertigem tão grande que me desequilibrei; e vi-me de repente transportada no ar como se fosse uma pena. Quando a vertigem passou estava de pé no meio duma estrada poeirenta com uns homens esquisitos a olharem para mim.



6

O Julgamento


Eles eram esquisitos porque estavam tapados com roupa da cabeça aos pés. Não havia um centímetro de pele do corpo que estivesse a descoberto. A não ser a cara e as mãos. A cabeça estava tapada com um barrete de lã ou por outro tecido qualquer de aspecto grosseiro que lhes tapava também as orelhas e o cabelo. Além do barrete usavam um chapéu mole na cabeça. Faziam-me lembrar aquelas figuras de camponeses que eu já tinha visto em gravuras no livro de história e que pretendiam retratar os camponeses da idade média. Quando eles me viram ficaram estáticos a olharem para mim. Depois, como eu avançasse para pedir informações, começaram aos gritos. Largaram o que estavam a fazer e correram como coelhos assustados. Perto de mim havia um campo imenso carregado dum belo trigo doirado. As pessoas que fugiam deviam estar a trabalhar nele. O sol queimava e ondas de calor faziam estremecer o ar. Alguns dos que fugiam repentinamente voltaram para trás e correram na minha direcção. Ao principio não percebi o que pretendiam, mas depois assustei-me. Á medida que se aproximavam, comecei a temer que as suas intenções não fossem as melhores. Gritavam qualquer coisa e os seus gestos pareciam agressivos. Quando se aproximaram o suficiente comecei a perceber o que gritavam : “Pagã! Pagã ! Filha do Diabo !” Tentei dar meia volta e fugir. Mas fugir para onde…? Não tinha maneira de voltar para o mundo do dragão…? Ainda tentei esconder-me no meio da seara mas eles agarraram-me antes disso. Os seus rostos distorcidos por um ódio que eu não percebia nem conseguia explicar e a sua brutalidade rude de camponês assustaram-me a sério. Gritei e chorei, pedi socorro e ajuda a todos os santos, mas de nada me valeu. Arrastaram-me pelo campo enquanto me enchiam de pancada. Não desmaiei, embora me convencesse que me iam matar ali mesmo. Quando eu esperava o golpe de misericórdia, - já tinha entretanto rezado o meu acto de contrição -, as pancadas pararam misteriosamente. E um silêncio enorme desceu sobre o campo. Levantei a custo a cabeça, estava deitada de costas no meio da seara com o corpo completamente dorido de tanta pancada que apanhara. Quando levantei a cabeça vi um grupo de soldados. Deviam ser soldados, porque usavam uma cota de malha de ferro a cobrir-lhes o peito, um elmo de ferro na cabeça, e umas caneleiras também de ferro a protegerem-lhes as pernas. Os camponeses tinham parado de me bater porque, felizmente, eles tinham aparecido. Quando me viram deitada, moída de pancada no meio da seara, tiveram um movimento de recuo e de surpresa. Mas logo se recompuseram e agarraram-me com tanta ou mais rudeza que os camponeses e levaram-me com eles. Os camponeses entretanto tinham recomeçado aos gritos: ”Pagã! Pagã ! Filha do Diabo !” Agitavam os punhos e alguns chegaram a atirar-me com fruta podre. Felizmente para mim não tinham boa pontaria. Carregada quase ao colo pelos soldados, todo o meu corpo doía e não tinha forças para andar, fui arrastada por uma estrada poeirenta até uma aldeia miserável que ficava no alto duma encosta. Atravessei a aldeia com todo o povo na rua de punho ao alto a gritar que eu era pagã e filha do diabo. E a clamar pela minha morte. Eu não entendia porquê e o medo de morrer começou a revolver as minhas tripas. Fui atirada para uma enxovia que ficava na cave duma velha torre carregada de ameias e de soldados de vigia. A enxovia era escura, nojenta e mal cheirosa. Tinha um catre de madeira podre para onde me atirei maldizendo a minha sorte e com as tripas a revolverem-se cada vez mais de tão agoniada que estava. Vomitei no canto mais afastado do meu cárcere. E depois chorei, chorei até não ter mais lágrimas. Algum tempo depois, não sei quanto tempo depois, a luz do dia mal entrava por uma janela estreita ao nível do chão e por isso eu não fazia a mínima ideia se era de manhã ou de tarde, atiraram para dentro da enxovia um pão escuro e uma malga cheia de água. Comi o pão mas não bebi a água. Não tinha nenhuma confiança na qualidade da água daquela miserável aldeia. Sei lá de que poço é que eles a tinham tirado…aquela gente parecia-me ainda viver em plena idade média, e se isso fosse verdade, esperavam-me momentos bem difíceis. E quem sabe, até talvez me torturassem. Essa expectativa lançava-me no mais puro dos terrores. Eu nunca iria aguentar a tortura, morreria muito antes de medo. Antes sequer de eles agarrarem no primeiro instrumento de tortura. Acabei por adormecer de tão cansada e moída que estava. Mal tinha adormecido quando fui acordada bruscamente. Um soldado abanava-me com violência. Tirou-me do catre com brusquidão e aos empurrões levou-me para fora do meu cárcere. Cá fora mais soldados esperavam-me. Enquadraram-me e levaram-me através da aldeia para um edifício que parecia maior e mais bem construído que a maioria das cabanas miseráveis que compunham aquela aldeia. Já lá dentro enfiaram-me numa sala carregada de camponeses onde me sentaram á força num banco de pau. À minha frente, sentada defronte duma mesa tosca que estava sobre um estrado de madeira, vi a personagem que aparentemente iria decidir sobre o meu destino. Estava também vestida da cabeça aos pés, mas o seu traje era bem mais rico que o traje miserável da maioria dos camponeses que estavam dentro daquela sala. Ela estava debruçada sobre um enorme livro, por isso não lhe vi imediatamente a cara. Uns minutos depois de eu ter entrado e estar sentada naquele banco, a personagem acabou, finalmente, o que estava a ler e olhou para mim. Apanhei o maior susto e ao mesmo tempo a maior surpresa da minha vida. À minha frente, sentada num banco de pau e a olhar para mim estava a mademoiselle. Fiquei de boca aberta. Era impossível! mas ali estava ela... Era o mesmo olhar, o mesmo nariz, a mesma boca, e a mesma maneira de inclinar a cabeça quando se dirigia ás pessoas. A primeira coisa que disse foi: “Chamem o escrivão !” A voz era igual e o meu assombro fazia com que eu mantivesse a minha boca aberta. O escrivão chegou e eu tive outro susto e outra grande surpresa. O escrivão era nem mais nem menos que o meu irmão mais novo. Não podia ser…eu estava a milhares de quilómetros do mundo deles, numa dimensão completamente diferente, e no entanto…A voz da mademoiselle interrompeu os meus pensamentos e o julgamento começou. Pois era de um julgamento que se tratava e eu era a ré. Não sabia era do que me acusavam. A primeira testemunha foi chamada e em breve ouvi a acusação. Acusavam-me de paganismo, de imoralidade, de feitiçaria e de ser filha do diabo. Pois só uma filha do diabo podia aparecer como eu apareci e andar como eu andava vestida. Com a pele á mostra sem nada a tapar-me, com todo o cabelo ao vento e, mais grave do que tudo, de calças. E ainda por cima rotas com as pernas ao léu. Era este o meu maior pecado. O pecado da tentação. E era por isso que eu devia ser condenada. Por ter provocado com a minhas pernas ao léu, a minha pele à mostra e com a minha sensualidade diabólica, os homens que estavam a ceifar o campo de trigo. E ainda por cima tinha surgido do nada, como por encanto e magia. Como só uma feiticeira serva de Belzebu pode fazer. Só uma bruxa servidora do mal pode surgir daquela maneira no campo de trigo para tentar os homens. Ao ouvir a acusação senti-me imediatamente perdida. Tinha caído por desgraça minha numa sociedade puritana e ortodoxa. E ainda por cima da idade média. A mademoiselle já me tinha contado histórias de bruxas que tinham morrido queimadas na idade média por muito menos do que aquilo que me acusavam. Eu estava a ser julgada por ser filha de Satã, por comportamento imoral e por bruxaria. E por aquilo que tinha ouvido das histórias da mademoiselle, ia de certeza acabar mal. Senti-me perdida e quando ela começou a interrogar-me resolvi apelar ao seu bom coração. “Mademoiselle - comecei eu -, eu sou ainda uma criança, mal acabei de fazer nove anos, como podem fazer-me semelhante acusação…Eu sou uma cristã temente a Deus, veja ! Até uso um crucifixo ao pescoço... - Mal acabei de dizer isto mostrei-lhe o pequeno crucifixo de oiro que a minha madrinha me tinha oferecido no dia do meu baptizado e que eu sempre trazia pendurado ao pescoço. A mademoiselle quando viu o meu crucifixo abriu desmesuradamente os olhos e teve um movimento de recuo. A sua boca abriu-se sem produzir qualquer som e só ao fim da terceira tentativa conseguiu dizer com a voz rouca: “A cruz invertida ! A cruz invertida !” Ouviu-se um Ah! de espanto na sala e um murmúrio de medo percorreu a assistência. Eu fiquei embasbacada com aquela reacção, com a mão ainda no crucifixo virei-me para a assistência que teve um movimento de recuo e de medo quando viu o crucifixo. Imediatamente começaram a gritar : “Bruxa ! Bruxa ! Matem-na ! Á morte !” Um medo horrível percorreu-me o corpo, larguei o crucifixo e virei-me para a mademoiselle. Ela, com um horrível ríctus na boca gritou-me: “Não preciso de mais provas ! Quem usa a cruz invertida merece morrer ! Levem-na !” “Mas que cruz invertida ? ! Eu não uso nenhuma cruz invertida?!” Gritei-lhe desesperada. Ela sem se comover fez sinal aos soldados que guardavam a porta. Eles avançaram e agarraram-me com alguma brutalidade. Virei-me para o escrivão que tinha a cara do meu irmão e pedi-lhe já a lacrimejar: “Pedro, por favor, diz-lhe que eu não uso nenhuma cruz invertida.” Ele limitou-se a apontar para uma cruz que estava na parede mesmo por detrás da mesa onde a mademoiselle se sentara. Uma cruz que eu ainda não tinha reparado. Devido com certeza ao medo e á ansiedade em que me encontrava. A cruz que estava pendurada na parede e que era feita duma madeira tosca, dois bocados de pau cruzados, estava de pernas para o ar numa posição invertida. A boca abriu-se-me de espanto. No mundo onde eu tinha nascido aquela é que era uma cruz invertida, não a minha, que era uma cruz normal. “Jesus quando foi crucificado, foi crucificado de pernas para o ar.” Disse ele com um sorriso e uma ponta de ironia a percorrer-lhe a voz. “A sua cruz é uma cruz invertida, a cruz do diabo !” “Mas é mentira !”- insisti eu -, “S. Pedro é que foi crucificado de pernas para o ar, Jesus foi crucificado numa posição direita, normal.” Ele disse que não com a cabeça e insistiu: “Jesus foi crucificado de pernas para o ar, toda a gente sabe isso.” Não insisti porque também já não podia. Os soldados tinham-me empurrado com alguma rudeza e eu vi-me na rua. Conduziram-me até ao alto do monte mesmo por cima da aldeia com todo o povo a injuriar-me e a atirar-me com pedras e fruta podre. Felizmente os soldados fizeram barreira com os escudos e poucos desses projécteis atingiram-me. Eu estava borrada de medo e chorei durante todo o percurso. Parecia que tinha chegado a minha hora e que nos próximos minutos ia, de facto, morrer. Tudo porque, naquela terra, a cruz invertida é que era a cruz direita, a cruz normal. Era absurdo. E eu ia pagar por esse erro e esse absurdo. Porque é que eu tinha tido a triste ideia de mostrar a minha cruz á mademoiselle…E nem o meu irmão me tinha ajudado... Dava a sensação que eles me odiavam e que queriam mesmo a minha morte. No alto do monte uma pequena multidão tinha-se juntado ao lado dum grande buraco aberto no solo. Junto á borda desse buraco muito direita no seu trajo de inquisidora, estava a mademoiselle e o seu escrivão. A tremer como varas verdes fui empurrada até á borda do buraco. O sol aproximava-se do poente e os seus últimos raios iluminavam o poço quase até ao fundo. Era um poço redondo quase uma circunferência perfeita e com uma fundura onde não se descortinava o fim. De lá de dentro saiam sons arrepiantes. Pareciam queixumes de vozes angustiadas, enquanto o som lúgubre do vento subia e descia continuamente pelo poço. Eu olhei para o fundo e não quis acreditar no que eles iam fazer-me. “Mademoiselle, por favor, - disse eu a chorar -, não me mate, eu juro-lhe que não lhe prego mais partidas.” Ela sem me ligar nenhuma começou a ler a sentença. Ao seu lado, de braços cruzados, o meu irmão olhava-me com um ar indiferente. Nem um nem outro pareciam importar-se muito com a minha triste sorte. Quando ela acabou de ler fez-se um grande silêncio. E um queixume de alguém a sofrer horrivelmente subiu pelo poço acima. “Rapariga, - disse a mademoiselle num tom solene -, vais voltar ao inferno de onde nunca devias ter saído. Mas primeiro, quero que beijes a verdadeira cruz e que te arrependas de todos os pecados.” Fez um sinal a alguém e um homem já idoso com a cabeça tapada por um grande capuz aproximou-se de mim com uma grande cruz invertida na mão. Pensei que talvez tivesse ali a minha chance de escapar, que talvez eles não me matassem se eu beijasse aquela cruz. “Se eu beijar a cruz e me arrepender de todos os pecados vocês não me atiram ao poço ?” perguntei com uma pontinha de esperança a nascer dentro do meu coração. O homem do capuz virou a cabeça para a mademoiselle. Ela esteve alguns segundos calada e depois respondeu num tom duro onde mais uma vez soou a sua sentença implacável: “Não ! Por aquilo que fizeste mereces mil mortes como esta !” Então eu respondi-lhe com toda a dignidade que podia arranjar já furiosa com a teimosia e o ódio que ela demonstrava por mim.   “Eu não vou beijar essa cruz nem arrepender-me de nada !” Ela torceu então a boca num sinal de despeito e ordenou furiosa para os soldados que estavam atrás de mim: “Atirem-me essa pagã de uma vez por todas para dentro do poço do diabo !” Sem ter tempo de dizer um ai fui empurrada com força e caí de cabeça para baixo para dentro do poço do diabo. Não gritei. Apenas abri a boca para gritar, mas não saiu qualquer som porque não deixei. Não lhes ia dar esse prazer. Caí sentindo o vento a rodopiar junto aos meus ouvidos e sentindo também o longo e horrível queixume a aproximar-se cada vez mais de mim. Depois veio o nada. Porque, o meu espirito, para não enlouquecer de vez, resolveu cair no oblívio total.


7


O Encontro com o meu Pai


Devia estar morta porque ouvia vozes de anjos. Era um coro de vozes femininas e masculinas que cantavam um ave-maria e era lindo. De repente, como se a harmonia daquelas vozes se tivesse quebrado, começaram a desafinar. Repetiam sempre o mesmo tema, aparentemente sem conseguirem sair dele. Logo a seguir um ruído horrível de disco riscado acabou com a tortura daquelas vozes. Abri os olhos na esperança de ver o céu; e o que vi foi de facto o céu. Só que era o céu azul da Terra e não o céu celestial. Se estava a ver o céu azul então significava que não estava morta. Ergui o busto satisfeita por ainda estar ainda viva e tive uma dupla surpresa : estava deitada no meu jardim e a música que ouvira vinha dum gira-discos que estava na varanda da minha casa. Pus-me de pé num salto com a alegria a encher-me o peito e corri como uma seta para a varanda. A alegria era tanta que fiz todo o percurso aos saltos. Quando lá cheguei vi o meu pai estendido numa cadeira de lona a ler o jornal. A minha alegria redobrou, à muito tempo que não o via, porque quase sempre estava ausente em viagem. Corri para ele e abracei-o. Ele deu um salto na cadeira e deixou cair o jornal, quando me viu os seus olhos iluminaram-se de prazer: “Linda…És tu ? !” “Sou eu pai, estou tão contente por te ver…” Abracei-o com tal força que ele começou a protestar: “Linda…Linda…não me apertes tanto que me estás a magoar.” “Desculpa pai.” Larguei-o e em vez de o apertar entre os meus braços cobri-lhe a cara de beijos. “Pai…Pai…sabe lá o que me aconteceu…” “O que foi que te aconteceu filha…? Conta-me tudo.” Contei-lhe todas as minhas aventuras sem omitir um único pormenor. Ele ouviu tudo muito calado sem interromper-me, soltando de vez enquanto um Ah! de surpresa quando eu lhe contava uma passagem com mais suspense ou um pormenor mais fantástico que o deixava de boca aberta. “Isso é verdade ? Não estás a inventar ou a mentir ?” “É verdade pai, tudo o que lhe estou a contar é a mais pura das verdades.” Ele então fez-me uma festa na cabeça e respondeu : “Desculpa filha.” Quando acabei ficou calado sem dizer nada. O meu pai não era uma pessoa muito imaginativa, era uma pessoa essencialmente prática. Toda a sua imaginação estava nas pontas do seus dedos, tinha jeito para consertar tudo e inclusive para costurar. Um dia encontrei-o sentado junto á máquina de costura a costurar umas velhas calças e perguntei-lhe o que é que ele estava a fazer. Ele respondeu-me com o ar mais pachorrento deste mundo, como se fosse natural ele fazer de costureira naquela casa: “Estou a apertar umas calças filha, emagreci um bocado desde á um ano para cá.” O meu pai era assim, prático. Nunca se enrascava e arranjava sempre uma solução para tudo. Fiquei à espera que ele me dissesse qualquer coisa, que fizesse um comentário qualquer, mas ele ficou calado e a única coisa que realmente fez foi afagar-me com ternura o cabelo. Fiquei sentada ao seu colo a pensar nas suas longas ausências e na falta que sempre me fazia. A minha mãe estava sempre presente, mas era uma chata, com a mania de querer obrigar-me a fazer isto ou aquilo e a dizer-me como devia comportar-me á mesa ou o que é que eu devia vestir. O meu pai não era assim. Quando regressava das suas longas viagens trazia-nos sempre uma lembrança qualquer, quase sempre qualquer coisa diferente e ás vezes até exótica. E nunca se preocupava com a minha maneira de vestir nem com os meus modos á mesa. Além de me embalar quase sempre no seu colo sentado naquela varanda nas noites quentes de verão. “Pai…Pai…acha que tudo o que me aconteceu foi um sonho ?” Ele afagou-me mais uma vez o cabelo e respondeu : “Não sei filha, é tudo tão esquisito... nunca ouvi uma história tão estranha como essa que acabaste agora de me contar.” “Eu sei pai, eu também sinto isso, também acho tudo muito estranho. E tudo isto aconteceu porque fui atrás dum coelho.” Ele sorriu. “Gostava de um dia conhecer esse coelho tão extraordinário.” Sorri também e aconcheguei-me mais no seu colo. Sentia-me bem, aquele colo era como se fosse uma recompensa por todos os infortúnios e chatices porque passara. Ali eu estava em paz. Ali eu estava verdadeiramente no céu. “Pai…a mãe e o mano... não os vejo, aonde é que eles estão?” Ainda o ouvi responder antes de adormecer no seu colo: “Não sei filha, não faço a menor ideia aonde é que eles possa estar.” Devia ter desconfiado, mas estava com tanto sono que mal a ouvi. Adormeci logo a seguir. Tive um sono tranquilo sem sonhos como à muito tempo não tinha. Mas devia ter previsto que não há bonança sem que uma boa tempestade não venha logo a seguir. Quando acordei não o vi. Estava deitada em cima da cadeira de lona e do meu pai nem sinal. Olhei para o jardim e tive uma surpresa : parecia uma selva. Do jardim bem arranjado que eu conhecia tão bem não havia qualquer sinal. Em vez dele o que estava a ver era uma verdadeira selva africana. Pus-me de pé e o terror apoderou-se de novo de mim. Estava a recomeçar tudo outra vez. Olhei para a casa e vi-a velha, gasta, como se tivesse centenas de anos. Corri para o seu interior a chamar pelo meu pai e percorri-a duma ponta à outra passando por quartos vazios e móveis gastos e desconjuntados e é claro que não encontrei ninguém. Tinha sido bem enganada. Afinal tudo aquilo não passava de outra ilusão. De cabeça baixa mas sem chorar voltei para o jardim e sentei-me na relva. Exactamente no lugar onde a mademoiselle costumava contar-nos as suas histórias de mártires e de santos. Como eu ansiava por elas, como eu gostava de poder ouvir novamente aquelas histórias. Eu, que fazia tanta troça delas, eu, que desprezava aquelas histórias, estava agora mortinha por poder ouvi-las outra vez. Fechei os olhos e tentei recordar aqueles momentos. Tentei ouvir a voz da mademoiselle a contar pausadamente sem qualquer emoção aquelas histórias. E, de repente, pareceu-me ouvi-la. Era ainda longe mas percebi que era a sua voz. Fiz novamente um esforço e a voz tornou-se mais próxima. Agora já quase que a ouvia nitidamente. Como era engraçado, bastava ás vezes um esforço da nossa imaginação para enganar os nossos sentidos. A sua voz era tão real que enganava os meus ouvidos e eu permaneci de olhos fechados para poder manter o mais tempo possível aquela ilusão. Foi então que a sua voz parou de falar e eu ouvi distintamente ela a perguntar num tom áspero: “Ermelinda! Estás a ouvir o que eu estou a contar...ou estás antes a dormir ?”


8


De Regresso ao Jardim com a Mademoiselle


“Eu não estou a dormir mademoiselle, eu até estou bem acordada, ouvi tudo o que tem estado a contar.” Ela olhou para mim com aquele seu ar inquisidor e respondeu : “Porque é que eu tenho a impressão que estiveste todo o tempo a dormir e não ouviste nada do que estive contar...” Engoli em seco e respondi furiosa: “Mas eu não estive a dormir ! Juro que não estive!” Ela fez aquele ar de quem não acreditava em nada e olhou para as horas : “Bem meninos, são horas de irmos todos lanchar.” Levantou-se e connosco a segui-la dirigiu-se para dentro de casa. Já na cozinha o meu irmão com aquele ar irritante olhava-me divertido enquanto acabava de comer o pão com manteiga e se preparava para se lambuzar todo com um dos pasteis de nata ainda quentes e estaladiços que a mademoiselle tinha trazido. Já farta de ver aquele idiota a olhar para mim com ar de parvo avisei-o: “para de olhar para mim com esse ar de idiota !” Ele inclinou-se sobre a mesa e disse-me baixinho ao ouvido: “Eu sei que estiveste a dormir o tempo todo.” “Como é que sabes isso ?” “Ora…vi-te a dormir.” “Meninos, não quero segredinhos à mesa” avisou a mademoiselle. Olhei para ela e sorri enquanto levava o meu pastel de nata à boca. Eu não tinha estado a dormir, pelo menos não me lembrava de sequer ter fechado os olhos. Mas tinha tido uma espécie de sono é verdade. Um sono que me levara aos confins da imaginação e do sonho. E do qual, a certa altura, temi seriamente não conseguir regressar. Agora que tinha voltado a casa sentia que tinha perdido qualquer coisa. Algo de mim ficara perdido para sempre naqueles mundos de sonho e de imaginação que eu nunca conseguiria recuperar. Era como se tivesse deixado lá para sempre os meus sonhos de criança e a vontade de não querer crescer, de não querer ser adulta. E talvez fosse essa vontade de querer crescer e de querer ser adulta, que me fez olhar para a mademoiselle e perguntar-lhe com o meu ar mais sério: “ Mademoiselle...os adultos também sabem sonhar ?”.


F I M




Biografia:
Escritor com o primeiro livro já publicado
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