PELÉ CAIU DO TELHADO E FOI PRO CÉU
(ESBOÇO DE UMA CRÔNICA DA VIDA EM PRETO E BRANCO)
Pelé era um desses cidadãos aos quais nos referimos, comumente, em nossa ignorância institucionalizada pela inteligentsia social preconceituosa e discriminatória, como “pretos de almas brancas”. Autêntico representante da cidadania brasileira. Desses, que não se sabe ao certo como vieram ao mundo. Sem pai, nem mãe, nem parentes. Quando muito, aderentes. Foi o caso de Pelé, que teve, aparentemente, apenas a senhora Cremilda como sua fiel protetora.
Assim, Gelson, como era propriamente chamado por dona Cremilda, surgiu na Rua Dionísio, na Penha. Um “toco de gente” que logo cedo se tornou “um Pelé”, driblando o destino para se inserir na categoria das gentes ditas “normais”. Não fosse o malfadado vínculo ancestral estampado na pele, teria ele alcançado o seu objetivo no jogo da vida. Pois, conquistou a atenção de alguns, o carinho de outros e o respeito de todos, pelo exemplo de honestidade, dentre outras virtudes que possuía. Trabalhou e vadiou pelas ruas e vielas do “Asfalto” e das “Favelas”. Transitou pelas searas dos Brancos e dos Negros. Freqüentou seus lares, seus bares, seus costumes. Conheceu (sem tocar) seus vícios.
Pelé, Moleque amigo, dos recados, das pipas, dos foguetes, dos balões, dos churrascos, das quadrilhas (de São João), dos Pagodes, das Escolas de Samba..., dos sonhos de ser gente.
Mas, Pelé tinha um limite para sonhar. O limite da ordem social categorizada pela ideologia da moderna escravização, geradora de escravos sem senzala e sem um senhor identificável. Mercê de seus impróprios destinos. Sem emprego, sem pão, sem camisa, sem teto, sem afeto...
Eis a ironia fatídica: o negro, sem teto, caiu de um telhado, bateu de cabeça, no asfalto, no mês de fevereiro e, pela primeira vez, transgrediu a ordem do limite de sonhar.
Sonhou com um mundo de pipas e balões multicores a flutuar entre estrelas cintilantes, ao som de foguetões disparados por uma multidão sem cor.
Sonhou que havia um Céu e creu que havia um Deus, e que Deus e o Céu, também, eram de cor nenhuma.
Sonhou que ganhara um troféu, e que o troféu era o próprio Céu, e Deus era o premiador, e o seu merecimento era pelo sofrimento e pela cor.
Então, ele subiu em um dos balões de seus sonhos e foi subindo, subindo..., até ficar da cor do Céu e da cor de Deus.
Aí, nos olhou, deu um sorriso inocente e pela última vez acenou, como a nos perdoar a fraca humanidade!
|