| Lira  x Dondon 
 
 
 SÃO FIDÉLIS - 1955
 Na primeira vez em que  a chamaram de Lira, sua dentição, sem explicação, dente por dente amolecia.  Balançando de um lado para o outro até ficarem dependurados. Recusava-se a permitir que os arrancassem. Surgia sempre alguém com sugestões: Amarrar uma linha, comer pão duro, amarrar na porta...Diziam,  não vai doer  nada,  repetiam. Mas ela não acreditava, corria para o quintal longe dos olhos dos outros, mexia  no dente sem parar. Achava que cada um que amolecia, tinha mesmo que cair. Havia o receio de engolir ao ingerir os alimentos.  Lira ficava feliz quando o dente mole caía, então, num ritual jogava o dente no telhado para o “Mourão” levar, o dente podre e trazer outro bom. Mesmo sem os  dentes,  Lira foi para a escola, era seu primeiro dia de aula, sentou-se na cadeira, debruçou-se na carteira e chorou. Estava cheia de medo, só após algum tempo foi levantando a cabeça, desconfiada  abriu os olhos, sorrateira, viu que na  sala,  tinha outras crianças. Foi fácil distinguir a professora sentada na cadeira, atrás  da mesa   na frente da classe. Curiosa, observava as vestes que a professora usava: Blusa cinza de mangas compridas que realçava os cabelos escuros e presos junto à nuca, não ostentava jóia. Apenas um discreto batom.  Despertou de suas observações quando a professora levantou-se e começou a distribuir lápis  preto  e uma folha de papel pardo. Lira, novamente abaixou o rosto na  mesa fechando os olhos bem apertados. Quando olhou de soslaio, viu que a saia e os sapatos da professora eram pretos. A professora  falou alguma coisa que Lira não entendeu, voltando-se à mesa, sentou-se  e pôs-se a escrever na máquina.
 A folha do bloco pardo e o lápis continuaram  na frente de Lira. Que voltou a levantar a cabeça  para admirar  as paredes altas e claras. Permaneceu com as mãos paradas ouvindo o canto  das  cigarras. Foi interrompida pelas vozes das crianças que levantavam as mãos e em resposta  à  chamada  falavam: “Presente!  Professora!” Enquanto a professora falava alguma  coisa que  Lira não entendia e talvez por temor de não saber o que fazer enterrava o rosto na carteira e pensava: “Será que não podia olhar as  paredes e as telhas que cobriam a  sala?” Com a mão parada, apoiada  na mesa, segurando o lápis, sentiu um frio no estômago por não ter feito nada. Levantando novamente a cabeça, enquanto todos permaneciam de cabeça baixa, descobriu que apesar de todos os outros alunos já terem concluído seus trabalhos, ela sequer tinha traçado um único rabisco. Assustou-se com o barulho da sineta, mas só levantou-se após todos já terem saído. Abraçou a bolsa de pano e com passos acanhados retirou-se da sala. Mas ao transpassar a porta não conteve um sorriso ao deparar-se com o seu irmão Elias (Zoca) que a aguardava do lado de fora.
 
 Essa era a  oportunidade que sua professora esperava, aproveitando a presença do irmão de Lira interpelou-o:
 _ Sua irmã tem problema de audição?
 O irmão de Lira sem entender o motivo da pergunta, permaneceu calado e perplexo.
 _ Estou perguntando se a menina é surda.
 _ Não, não é surda. Quer ver?
 O Elias  virou-se para a irmã e chamou: _ Dondon!
 A menina virou-se perguntando:
 _ O quê?
 _Viu como ela não é surda?
 
 _ Ah! Ainda bem que ela não é  surda, mas ela não atendeu pelo nome, avisa à sua mãe. A professora despediu-se com um, “até amanhã, Lira”. O irmão segura a mão de Lira e seguem juntos para casa.
 Em  lá chegando, refugiou-se  no quintal. Ao chamado, reconheceu a voz de sua mãe que insistia em chamar Lira. Amedrontada correu apoiando-se  na goiabeira, fechou os olhos por causa do sol forte. Sentiu os ouvidos  pressionando.  Ficou parada segurando a  árvore enquanto suportava uma espécie de ruídos estalando em sua cabeça. De olhos bem fechados inquietou-se, procurando desvendar o mistério do nome Lira. Quem é Lira?  Essa tal de  Lira!  Cada  vez que pronunciava era como se outra pessoa fosse aparecer para tomar o seu lugar. O  receio confundia o seu pequeno ser, desencontrada com seu íntimo e o que se desenvolvia por fora... Para ela era passar o dia, feito alguém que procura outro alguém. Lira sai do seu estado letárgico  ao sentir um cheiro bom que o vento trazia da cozinha de sua mãe.  Deixou a tal de Lira na goiabeira, saiu correndo, e enquanto entrava na cozinha, sentiu mais forte o cheiro do doce. Sorrateira, chegou perto da  bandeja, olhou todos os pés-de-moleque,  pegou o maior de todos, segurou com as duas mãos de tão grande que era o doce...
 _Que é isso Dondon?  Você não gosta de pé-de-moleque. Para que você pegou um grandão? Lira não respondeu à sua mãe, trancou os dentes,  espichou os olhos para cima e foi saindo com  passinhos  lentos, e o doce nas mãos. A  mãe não a impediu  apesar de saber que ela não gostava daquele doce e não tardaria trazê-lo de volta à bandeja. Dondon saiu da cozinha e foi esconder-se, lá no fundo do quintal, sentou-se na pedra e ofereceu o doce para Lira.
 _Você quer esse doce todinho?  Fica com ele para você! Eu não gosto nem um pouquinho dele, vou deixá-lo aqui nessa pedra e vou embora, ta?...
 Dondon  colocou o pé de moleque na pedra e correu para dentro de casa, com a certeza de ter agradado a tal Lira, que havia ido embora para sempre comendo o pé-de-moleque cheio de amendoim, para mastigar, mastigar até cansar...
 A mãe  perguntou:
 _ Cadê o doce? Duvido que você tenha comido. Lira fez cara que comeu e até enjoou.  A mãe desconfiada e com toda certeza, pediu ao irmão de Lira para ver onde ela o tinha colocado.  Quando Zoca  mostrou o doce para a mãe, veio confirmação que Dondon não havia “tocado” no pé-de-moleque.  A mãe  falou em tom  carinhoso:
 _ Então “Dondon Lira!”  O que você me diz?
 Dondon ficou com vergonha, do irmão ter tirado o pé-de-moleque que ela havia dado a tal Lira que ainda não conhecia...
 
 Depois desse dia Lira não voltou à Escola Municipal Típica Rural, em Ipuca, Distrito de S. Fidélis, acometida de coqueluche e sarampo. Entre outras coisas  que aconteceram nesse período... Posso destacar a vinda de sua mãe e o irmão Elias para o Rio de Janeiro.
 
 
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