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Urutu e seus bens
Aquiles Rapassi

“Que se lembre de Urutu
Aquele feito do fígado
De Prometeu
E padecente do amor
Indivisível do qual morreu.”

Todos os dias, quando queria recordar aquelas duas figuras que o levaram às últimas conseqüências da insanidade, ele resgatava o corpanzil da soneira profunda e bebia do seu cotidiano almoço composto por duas doses de cachaça de rolha. Após os infortúnios que acometeram uma serenidade secular, os dias eram de um todo semelhantes aos anteriores e presumivelmente iguais aos seguintes. O anti-herói divino punha-se a caminhar à beira-mar pelas avenidas largas de um paraíso construído à sua vontade e semelhança, mas que mesmo assim não lhe rendia louvores daqueles que habitavam um lugar perfeito, onde a água fluía em bonança e a areia amaciava o passo de anjos e seres antípodas.
Tratava-se de uma criatura extraordinária, por excelência, e penoso por incumbência do destino (este que não era submisso aos seus choros). Era um deus onipotente que foi tentado pela bigamia impossível entre duas almas antagônicas e que deitava seu pensamento néscio, sempre que o sentia, no colo duro da impaciência fecunda em ordinários momentos, logo quando o crepúsculo fecha o horizonte para a esperança e abre os céus da noite para os sofrimentos carnais dos amantes. O plenilúnio cândido prostrava-se ao manto celeste de um maná imberbe e negro retinto, que rogava mais sabedoria em assuntos amorosos e blasfemava, atacava ferozmente os poderes dos astros. A lua, bem, essa nada respondia.

O nome do supremo em voga era Urutu, como o da serpente temida, aquela que quando não mata, aleija. Era divino, mas sofria de mal do homem comum. Era inconstante, furioso e bondoso ciclicamente. Um deus moleque, açodado pela ira de semideuses e que apesar de todo o vaticínio que o cercava, desabou em solidão.

A mulher do trono celestial e dona majoritária – embora não soberana – do coração de Urutu era de pele rosada e de íntimo macio como pelego das ovelhas novas. Levava um semblante arcádio que inspirava ao seu homem um frenesi literário e terna compaixão por seus não mais de 14 anos. Já era madura nessa idade e servia ao seu bom deus com subserviência, o que tornava interessante o fato de que de menina só tinha o sono carregado e o bruxismo noturno. Era uma abreviatura de mulher.
A união estável dos dois era de paz invejável e acometia aos outros seres inegável inveja, mesmo porque as investidas ou acasos não causavam abalos a uma paixão que nasceu sob a sombra de parreiras carregadas, quando sorriam e saciavam-se com os bagos generosos e afrodisíacos das uvas insuperáveis. O casal vivia, desde então, sobre um vergel infinito, de odorífera felicidade. Ainda em tempo, vale dizer que começaram de um mimoso desdém e findaram em ternos “quero-te-bem”.

Vivia na mesma área de ventos fortes uma outra mulher, de braços lânguidos e vermelhos, distendidos paralelamente ao tronco e que findavam em mãos polidáctilas de egoísmo. Enigmaticamente bela, tinha o rosto de traços quadrados que já havia (há muito tempo e uma única vez) acolhido beijos do, então mais jovem, negro Urutu. Era cruel e, como bem sabiam todos os que a temiam, tinha dado o seu coração de comer aos porcos, para que nunca mais pulsasse uma emoção capaz de destroná-la de seus poderes. O que restou homogeneamente naquele corpo sinuoso foi o instinto incontrolável de apoderar-se de outros bens, tantos outros, os quais já possuíam portos seguros e donos honrosos. Essa besta de cabelos louros e porta-voz de encantos convidativos mirou-se em Urutu, na derradeira vez em sua vida que assim tramou.

Dada uma noite de festa entre deuses, estava Urutu acompanhado de sua amável mulher e mais outras pessoas habitantes do mundo suspenso. Era mais uma das reuniões de beber e dar sem conta, com abundância lírica e material. Do lirismo cuidava um ancião ator de arte dramática, que ostentava barba grande e grisalha, contrastante com sua calvície. O resto da diversão ficava por parte de uma farta tábua rústica de centro, servida a todo o tempo por ninfas surdas e mudas, onde estavam animais silvestres assados, frutas, bebidas compostas e um castiçal de ouro borbulhante, como que não sólido, iluminando e espantando outros predadores daquele banquete. As ninfas eram surdas para que não ouvissem os chamados carnais de tantos homens que ali se esgueiravam como caçadores, a perseguir lebres brancas e apavoradas em um terreno limitado. Já mudas eram devido ao fato de serem as mais perigosas criaturas quando punham-se a recitar deleites capitais. Só lhes restavam, portanto, olhos lívidos que guiavam o corpo para tarefas purgatórias.
Em avançada hora, quando sua doce mulher bocejava o sono infantil em seu ombro, Urutu alçou a carcaça olímpica e a guiou ao leito. Ao retornar, caminhando tranqüilo e satisfeito pelos corredores do paço sublime, assustou-se quando de repente, como que se materializando da neblina da relva, surgiu em sua frente a única mulher que o faria soluçar. Pôs-se a encará-lo com sucessivos olhares efêmeros, com os braços imóveis e o corpo do mesmo modo turvando a sua visão. Os cabelos moviam-se em melodias undosas e lentamente, como que com vida própria. Tinha a face chapada, livre de contrações sentimentais, mas sorria de pouco em pouco, sarcasticamente. O tórax era avantajado e o quadril formoso, doador de prazeres e com muitos outros atributos vulgares. Urutu resignou-se de tanta beleza e a interrogou:
-     O que queres aqui?
-     Aquela que tudo quer desejará o que não deve.
-     Ruma para longe desse reino e não te atrevas!
Tão rapidamente como surgiu, a aparição sumiu pela escuridão da noite. Certo de seu imperativo desígnio, Urutu não deu maior importância ao evento.

No dia seguinte, o deus serpentino concebeu fortes dores no peito. Trêmulo pela moléstia, procurou em sabedoria da terra alguma erva que fosse capaz de curá-lo. Arrastou o corpo pesado e inoperante pela mata que circundava o palácio até que em meio a palha e insetos, avistou alguns galhos arabescos que se alongavam em terminações policárpicas azuis. Não sabendo de outros perigos, e achando aquela planta colorida uma dádiva junto a pastagem monocromática, mastigou todas as folhas que encontrou. Anestesiado pela euforia de se sentir bem julgado pela medicina herbácea, sucumbiu ao sono solitário sobre o orvalho de seu corpo febril.
Dormiu Urutu, aquele que era, na uberdade do estado malicioso cultivado por indivíduos ocultos. Comeu e adormeceu sob o signo do fim.
Emergiu, após três dias consecutivos, do descanso induzido e voltou aos seus domínios mandatários. Encontrou, logo ao adentrar as muradas protegidas por bastiões fiéis, uma conjuntura de obscura intuição anunciada por alguns servos. Conduzido por passos eólicos, Urutu expugnou os aposentos íntimos do andar superior e arrefeceu o coração ao tomar visão de sua doce mulher em delírios, com o corpo emaciado estendendo-se sobre uma cama sustentada por quatro pés grossos de madeira nobre, os quais a protegiam de um assoalho forrado por peçonhas.

Consumido pela ira e amargando a certeza de saber a causadora do feitiço, o deus encolerizado cavalgou léguas transfretanas, em cavalo alado, e empunhou a sua espada secularmente mandriada na bainha. Era, em plena luz solar, o momento mais sombrio que aquele mundo pôde conhecer. Em ponto ultramarino, uma ilha pequena e ladrilhada por rochas era o lar daquela que desafiou a palavra de seu deus.

Urutu, entre sons de alaúde, viu a feiticeira do exclusivismo emergir de um lago infernal que existia dentro da caverna que habitava. Subia, lentamente, a começar pela cabeça e terminar na altura do quadril. Começou, então, a dançar um balé aquático, balançando os braços e flutuando de costas para a água.
Ainda que exasperado e intensamente raivoso, borbulhava no herói um desejo incompreensível por aquela tragédia toda.
-     Venha, não temas. – disse ela.
-     Quero a tua cabeça, súcubo cruel! Não podes, jamais, ter sobrevida! Um ser como tu, meretriz das sombras, há de sofrer.
-     Os teus insultos não valem neste canto, meu deus. Quero que declines amor aos meus encantos. O que quero terei, é sem demora.
-     Demonstrastes que não temes aquele que te domina, demônio. Afrontastes a mim pelo modo mais vil, atacastes uma mulher de olhos cerúleos, de ouvidos inocentes e dona da coroa que lhe é devida. Ela para sempre terá o meu céu e minha terra, o ar e a água, minha sofreguidão e meu júbilo.
-     A ela não devolverei a saúde, e a ti amaldiçoarei pela morte. Tua língua falhará, teus cabelos consumirão a massa de teu crânio. Rende-te a mim, tolo!
-     A ela, ainda que sem saúde, serei fiel. Aos teus clamores renderei a espada forjada em fogo alto e intermitente, para que não sobre nada além de um suspiro afogado em sangue.
-     Quero a terra toda, só pra mim.
-     Dar-te-ei os vermes da terra, a devorar um corpo frio e cretino.
-     Quero o Sol, só para mim.
-     Dar-te-ei o canicular do mundo baixo, que ferverá as tuas entranhas.
-     Quero a Lua, só para mim.
-     Dar-te-ei a noite eterna, em teus olhos secos e lacrados.
-     Quero as estrelas, só para mim.
-     As estrelas, tu não podes nunca, pois têm brilho próprio. E esse é o caso de minha amada. É dela o sol que me irradia a manhã, a lua que reflete o meu calor e as estrelas que decoram o céu.
-     Pensas que só te provoco? Agora, aqui, diante de tua monodia, segredo que tua mulher não padece mais de convulsões e arritmias. Ela é morta.

Urutu abalou-se profundamente com a memória da última visão de sua mulher, podendo sentir os últimos soluços daquela paixão que o envolvera. Dobrou os joelhos e rogou a ele mesmo, posto que era deus. Abaixou a cabeça de encontro ao peito e descansou as mãos uma sobre a outra no cabo da espada, que estava fincada no chão pedregoso. Amargarás por teus atos, monstro! – disse Urutu ao levantar o corpo guerreiro e navalhar o pescoço atlante da dama má.
Com a cabeça em suas mãos, não tendo a matado e sim, apenas, decretado o fim de seus horrores, lançou-a as nuvens para que vagassem eternamente os desejos irrealizáveis. Pensamentos não teriam mais braços para executá-los. Lascívia que não teria mais atributos a entregar aos homens, pois o corpo jogou ao mar. E, então, ordenou que todas as vezes que as tempestades se abatessem sobre as águas, formar-se-ia uma chama durante suficientes instantes nos mastros, representando o contato de céu e água, dando-lhe a idéia de junção metafísica e purgante. Seria para sempre em descargas elétricas que a reconheceriam, enquanto ela sofreria pelo eterno desencontro de seu conjunto. É o que chamariam, mais tarde os navegantes, de fogo santelmo.

Em seguida, sustentado por fôlego eqüino, Urutu foi ao encontro do corpo material de sua companheira. Apertou-lhe fortemente as palmas das mãos repousadas e verteu o choro soberano. Sua doce amada, aguardando frígida sobre a cama, recebeu o último beijo que pôde. Segurou-a em seus braços e partiu ao outeiro onde costumavam se encontrar.
Enterrou-a sob uma parreira sagrada e ordenou, por sua vez e memória, que se fizesse real o fogo espontâneo, brotando do chão ou de epitáfios dos amantes, todas as vezes que o amor que não se pode compartilhar fosse posto à prova. Ao evento, o porvir nomeou fogo fátuo.

Urutu, posteriormente em sua desolação, morreu fisicamente. Transformou-se em vento, pois só a presença do referido elemento possibilitaria qual fosse a combustão. Em revolta atmosférica controlava, com medidas sábias, tanto a memória de uma, como o castigo de outra.


Biografia:
aquiles.rapassi@gmail.com
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