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Imperialismo e misologia em One Piece
Caliel Alves dos Santos

Resumo:
Entenda como questões históticas e políticas são representadas em One Piece.

Quando todos acreditavam que as histórias de piratas estavam foras de moda, Eichiro Oda mostrou que só os artistas que ousam promovem a inovação. Publicado no ano de 1997, One Piece se tornou a franquia de mangá mais rentável do mundo. A Shonen Jump só teve o que comemorar. Por mais de duas décadas, a obra mostrou números surpreendentes, se dando o luxo de quebrar alguns recordes no caminho. Mas o fator de maior sucesso nesse shonen é a sua construção de mundo.
     O mangá tem fonte para ótimas análises de representações históricas e culturais. O próprio universo da história nos indica algumas das influências do mangaká nesse sentido. No planeta onde ocorre a narrativa — ele todo uma imensidão de água — se resume a ilhas e arquipélagos. O único continente existente é uma cordilheira chamada Red Line. Ela divide o mundo servindo como meridiano natural. Numa geografia dessas, seria impossível a Marinha não se fortalecer e a pirataria não se tornar uma prática comum. Um mundo muito parecido com o Japão, um arquipélago com mais de cinco mil ilhas. Foi necessário um grande processo histórico e político para que os milhares de feudos rivais se tornassem um império unificado, e potência imperialista asiática.
     É justamente na Red Line onde fica a capital do Governo Mundial, Mary Geoise. Portal de acesso direto ao Novo Mundo, onde só sujeitos com permissão explícita podem chegar. A estrutura governamental de One Piece se assemelha a uma oligarquia, ao mesmo tempo em que a sociedade é dividida em castas. São cerca de dezoito famílias nobres residindo lá, das vinte famílias fundadoras do Governo Mundial, sendo que uma delas se negou a ir para a capital e outra foi exilada.
     A nobreza mundial, os Tenryuubitou (dragões celestiais) são os personagens mais misteriosos e mais controversos da trama. A sociedade como um todo se resume em dois termos: aqueles que servem e os que são servidos. Os Tenryuubitou sãos estes últimos. Abusam enormemente de seu poder econômico e influência política. Tanto é que essas pessoas, ao andar junto aos plebeus, usam uma roupa semelhante a um traje de astronauta, com direito a um capacete e respirador acoplado. Isso enfatiza o não pertencimento desse grupo as classes subalternas, mas que mesmo assim está no topo da pirâmide social. Os Tenryuubitou equivaleriam em nosso mundo aos estrangeiros coloniais, exóticos e arrogantes, cruéis muitas vezes. Alimentam todo um sistema de opressão mundial para usufruir dos ganhos imperialistas através da invasão e colonização de reinos menores.
     Essa classe dominante tem um grupo confiável para lidar com o poder. Eles são o Gorosei. Esse quinteto de idosos tenta usar sua experiência para dar rumo a todo o planeta. Controlam o mundo de One Piece com mãos de ferros. O Estado é extremamente hierárquico, tanto no sentido social quanto institucional, militarizado no todo. Para esse exercício de controle, contam com a Marinha. O braço armado do Governo Mundial é uma das instituições mais violentas que existe. É através da dela que grupos étnico-raciais sofrem genocídios, nações recebem severas retaliações, civis morrem em ações truculentas — vide os atos das polícias secretas Ciphers Pol. As autoridades cometem crimes tão ou mais horrendos que aqueles praticados por seus inimigos naturais: os piratas.
     A pirataria, assim como outras formas de banditismo, nasce a partir de uma sociedade estruturada em desigualdades, racismo, monopólio e exploração da mão de obra escrava, sim, esse último quesito é tratado muito bem pelo autor. Nada escapa a ótica de Oda. Os piratas, longe de serem heróis, roubam e pilham. Porém, muitos o fazem mais como uma forma alternativa de existência que por algum tipo de prazer mórbido. Muitos desses piratas são poderosos, como os Yonkou, os quatro maiores da pirataria. Aglutinando tripulações menores, formam frota — exércitos particulares que oferecem grande risco a estabilidade do Estado.
     Como estabilizadores de um mundo cada vez mais pressionado pela bipolarização entre Marinha e pirataria, o Governo Mundial oferece um acordo há alguns deles. Um grupo de sete piratas é escolhido para atuar como corsários, os Shichibukai. Esses “piratas estatais” atuam ambiguamente, mas cumprem seu papel de ser mais um desafio aos piratas. Assim surge os Três Grandes Poderes.
     É nessa instabilidade que a tripulação dos Chapéus de Palhas se tornam um perigo iminente. Não apenas pelo poder que Monkey D. Luffy vem acumulando em sua jornada, mas por manter em sua tripulação Nico Robin. Essa mulher, diferente de seus outros companheiros, não era uma lutadora nata — embora seja uma guerreira por ter sobrevivido durante todos esses anos da perseguição política —, é uma arqueóloga. É a última sobrevivente do Buster Call na ilha de Ohara — um extermínio promovido pela Marinha, assegurando que os inimigos do Estado fossem dizimados. Sobrevivendo milagrosamente, Robin decide continuar a estudar a “verdadeira história”.
     A “história oficial” do Estado, escrita pelo Governo Mundial, é uma farsa para validar a hegemonia das classes dominantes, coibir a autonomia de povos, garantir os regimes de opressão vigentes e incriminar os seus opositores. Primeiro, se opera o apagamento dos fatos históricos, é impossível saber com exatidão qualquer coisa em período anterior a instalação do Governo Mundial e qual foi o seu processo, objetivamente falando; depois, o silenciamento dos profissionais de História — vide o assassinato dos arqueólogos e a destruição das fontes históricas em Ohara. História se tornou um tabu. Isso provoca medo e uma ojeriza às ciências humanas, ao estudo da História e saberes correlatos. Assim se garante um passado comum, homogeneizador, que sublima a diferença. Uma tradição inventada, porém, legitimada pela narrativa histórica estatal. O papel de Nico Robin nessa história é trazer lucidez à um mundo coberto pelo véu da ignorância. Que ela obtenha sucesso em seus objetivos.


Biografia:
Caliel Alves nasceu em Araçás/BA. Desde jovem se aventurou no mundo dos quadrinhos e mangás. Adora animes e coleciona quadrinhos nacionais de autores independentes. Começou escrevendo poemas e crônicas no Ensino Médio. Já escreveu contos, noveletas, resenhas e artigos publicados em plataformas na internet e em algumas revistas literárias. Desde 2019 vem participando de várias antologias como Leyendas mexicanas (Dark Books) e Insólito (Cavalo Café). Publicou o livro de poemas Poesias crocantes em e-book na Amazon.
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