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Virgulário
Flora Fernweh

É estranho voltar a uma vida que se apoia no caos e faz das intrigas seu ponto de partida. Não estaria me contradizendo ao dizer que o início começa em um ponto? A resposta para aquilo que indago não é me dada com a facilidade de quem desce depois de subir. Se quero descobrir, preciso ir além das aparências, silenciando vozes que são externas a mim e abafam tudo aquilo que das profundezas sempre quis emergir. Vidas em letra maiúscula começam no mesmo ponto em que nascem os colóquios das mal-formatadas e desregradas, mas todas terminam em um ponto, que encobre com a irrelevância zombeteira, o restante da frase que lutamos para ser, com letras caprichadas e acentuações exatas. Então por qual motivo falamos em ponto de partida? se o ponto é um elemento indissociável a um fim? Ao fim do dia no ponto em que o sol visita outros caminhos, ao fim da sentença que pode não ter sentido, mas jamais lhe faltará o ponto. Pontos que exclamam não interrogam, mas ambos pontuam com a mesma precisão e cautela, um cético não dogmatiza preceitos, mas encerra suas frases com um ponto que exclama sem clamar, pois ainda desconhece a eternidade de uma vírgula.
O tropeço é o ponto final daquele que vê na dureza do chão, um bom quintal para seu descanso imperfeito, e é uma vírgula para aquele que sobrevive ao desgaste da queda ávida, como a granada surda que estoura no piso elástico e o eleva ao teto do mundo. Se o ponto é o ente terminador, como podemos conceber a vida como um hiato entre dois intervalos de inexistência alternadas de uma mesma natureza, obscura àqueles que guardam em si o dom de viver, e singela àqueles que neste momento experimentam a sensação da qual provamos por milhares e milhares de anos, mas que em poucos minutos fomos capazes de esquecer? Ouso dizer que a fatalidade de um ponto é incomparável aos poréns que a vírgula imprime, virgular é perigoso, é preparar o terreno para ciclos sem-fim de uma vida que começa e termina no ponto final melódico que passamos a vida compondo, apenas para apreciar a obra final no abismo do inexistir, acompanhados da saudosa criatividade que tivemos ao imaginar o que os bosques do além mundo nos reservaram.
Sempre há um resto de frase estancado pelo divertimento soturno do ponto que dança entre palavras e memórias. Às vezes, eles podem ser verdadeiros mestres na arte dos fins e finalidades. A simplicidade de sua norma nos ensina a reconhecer o que vale a pena ser levado adiante e o que deve terminar de uma vez por todas, longe da brandura de todo “contudo”, no acúmulo necessário do “com nada” mais para ser dito. Encerrar é enterrar. Toda frase termina, toda vida se põe em jazidas, mas os pontos não caem firmes sobre a terra bruta, as vírgulas se encarregam de abrir covas com sua haste magra. À medida que acrescentamos vírgulas à vida que nos dispomos a levar e a conscientemente encerrar, abrimos derradeiros sulcos cada vez mais profundos para o conforto do grânulo final. Há mais esperança escondida na vírgula do que no ponto, sem sombra de dúvida que a morte é, há do mesmo modo, um amanhã no mais simbólico dos pontos com os quais presenteamos o solo fértil: as três sementes também são pontos que escondem a vírgula dos floreios primaveris. Ou seriam reticências?


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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