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A VIDA É UM DIA LIGADO À TERRA
Flora Fernweh

Amanhecia na charneca, a umidade da noite anterior esmaecia o cenário das urzes orvalhadas. A relva já empobrecida pela aragem exacerbada e sedenta de húmus previa uma desvalorada colheita, fato é que a estação das safras despedia-se dos esperançosos ruralistas, estes já granjeavam um teor abundante de suprimentos proporcionados pela sintonia com Deméter, somado às preces à Tupan, contentariam-se durante a hibernação de seus domínios inférteis e pacientemente aguardariam n’outra fase, que o latifúndio, poço de seu sustento, transfigurasse o lamaçal em mar de nutrientes, e as sementes regadas pelo desespero frente a possibilidade de uma lavoura infrutífera, em conchas trazidas pelo rastro de um enérgico navio de prosperidade na época de amadurecimento dos frutos e emersão das raízes à superfícies, fadadas até então, à companhia das larvas uterinas e ao calor do lençol freático.
     Ao longe, avistava-se uma criança, a brisa matutina cheirava a inocência das primeiras horas, uma cena dessas gravuras, cuja grandiosidade provém das mãos e do gênio de John Constable, sob óleo, não este propriamente providenciado à partir das oliveiras silvestres que adornam nossos campos e atravessam o Mediterrâneo equipadas em um cavalo provavelmente marinho, presenteado por Tróia, para além das ilhas jônicas, mas sim aquele que permite o trabalho do artista e enaltece suas manifestações humanas, expressas do modo mais visceral, um grito abafado por uma tela e glorificado por uma moldura que o arremata e camufla aos intelectuais, mecenas e críticos de arte a força vital que o incutiu a regurgitar uma parcela dos resquícios de suas profundezas, em contrapartida, acalenta seus semelhantes subjetivos: loucos, poetas, apaixonados, de modo geral, almas vastas e capazes de interpretar genuína e autenticamente o simbolismo da obra e senti-la através de realidades agregadas, equilibram uma dose de cada elogio mencionado anteriormente, ou adjetivos de desprezo caso prefira, essa análise parte de você e define seu ponto de vista por meio de suas virtudes e bagagem de preceitos que traz consigo.
     Na hora mais subliminar do dia, marcada pela dissipação de sombras por um sol ao pino, a vivacidade era saliente, uma primavera de poucas horas fulgurava um ser, os galhos das amoreiras já escondiam-se pela densa camada de casulos tecidos pelas larvas das futuras falenas, atrozmente enclausuradas à suas silenciosas metamorfoses, e os primeiros botões de rosa desabrochavam na terra nua, acostumada até então, à horta. Ao passo em que um jardim se formava, escuridões ilusórias abatiam os indivíduos que explorando as grutas minerais antigas, descobriram verdades existencialmente funestas e atingiram o ápice de seus conhecimentos sobre o quão ferozmente rigorosa pode ser a futura culpa de uma vida pouco intensa no presente de nossas juventudes.
     Uma fronteira de cerca separava a charneca do sítio vizinho, e na extremidade norte, uma porteira de madeira abrandava a dor viciante que a distância era capaz de evocar em corações apaixonados, cúmplices de um amor proibido e estrondosamente poderoso. Usualmente, encontravam-se às vespertinas, durante uma pausa no exaustivo trabalho na roça, traziam consigo uma pá, com ela, a moça arava a terra e o homem, abria um buraco na alma de sua amada, lá, habitaria eté o fim dos tempos. Ambos os que escreviam este romance à duras penas, trocavam abraços, carícias, beijos, sorrisos e palavras cotidianamente por meio da barulhenta portinhola de mogno que devia ser aberta com cautela, minimizando o ranger da inveja e do destino, divisava dois mundos distintos e altamente compatíveis. A natureza não tarda a chamar, a necessidade animal de suceder a vida na Terra, fluiu, num misto de Píramo e Tisbe, entretanto, sem um desfecho trágico, com Adão e Eva, plantaram juntos novas sementes em terreno fértil, regaram, cuidaram e confortavam. Como resultado, exibiram suas flores.
     Ao anoitecer, a lua trazia consigo o grisalho de seu brilho suave, retornavam assim ao casebre, onde tratavam de feridas angariadas pela venturosidade do dia que passava e refletiam sobre suas cicatrizes, precisou-se da luz estelar propiciada pelo céu noturno de um sertão fecundo para compreender na carne que pouco sabe-se sobre o dia de amanhã, encarar a vida como um período de 24 horas talvez seja a forma mais sábia de trilhar por essas terras, fundamental é ter ciência de que apesar da sucessão cíclica, o amanhã é tão desconhecido quanto o pós-vida. Anos são instantes, vidas são dias e memórias são momentos. Aproximava-se a hora de descansar na cama de madeira de cedro, e esperançosamente aguardar o dia de amanhã, que na charneca, poderia nunca mais chegar.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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