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Na fila da farmácia
Cláudio Thomás Bornstein

“A vovó viajou a noite toda. O vôo foi longo e cansativo.” disse a velha dirigindo-se a um menino de cerca de sete anos. Para o menino, cansaço era uma palavra que não dizia nada. Em contrapartida, a palavra vôo lembrava um monte de guloseimas, de forma que ele perguntou: “E o lanche vó, como é que foi?”

“A vovó não come no avião.” A resposta, seca e ríspida, na certa era para cortar de vez o tema e evitar perguntas embaraçosas. A velha devia ter lá os seus problemas de saúde e não queria dar detalhes, ou então, era porque não tinha guardado nada para o netinho e estava com a consciência pesada.

Uma senhora mais jovem, cabelos tingidos de louro, amarrados em forma de coque surgiu e, dirigindo-se ao menino, disse, de dedo em riste: “Espere aqui e não saia do lugar. Vou ali e já volto.” Era um pouco corpulenta para os quarenta anos que aparentava ter e guardava ainda uns restos de beleza que lutavam contra a flacidez adiposa, a maquilagem excessivamente pesada e, principalmente, os óculos escuros, espelhados.

Esqueci de dizer que nos encontrávamos, a velha, a jovem senhora, o menino e eu em uma longa fila do caixa de uma farmácia. A fila não andava, e na falta do que fazer, eu prestava atenção na conversa dos três que estavam atrás de mim. A moça, nem tão moça assim, devia, na certa, ter notado o meu interesse, porque ajeitou os cabelos e alisou o vestido.

A avó tinha se afastado da fila para fazer um reconhecimento de terreno e a jovem senhora tinha se dirigido a uma prateleira de cremes de beleza. Ficou somente o menino que, entediado, remexia um cesto grande, com barras de chocolate em promoção.

Farmácia e chocolate não deixa de ser uma contradição, foi o que eu pensei. Mas deviam estar exercitando a dialética, ou então, era por conta dos valores medicinais do cacau. Lembrei-me também que o cacau era usado como dinheiro pelos astecas, e esta explicação me satisfez.

Entrementes, a mãe tinha voltado do seu giro. Trazia nas mãos um frasco. Também a velha voltara, de forma que estávamos todos os quatro de novo reunidos. “Esta loção é excelente para retirar a maquilagem. Deixa a pele fresca e rejuvenescida.” Falava como se fosse um comercial.

“Eu só uso da marca B.” foi a resposta da velha para demarcar o terreno e deixar bem clara a diferença. A filha tinha optado pela marca A, mais barata.

Foi o menino que interrompeu a competição. Tirando uma barra de chocolate do cesto, ele perguntou: “Vovó, compra pra mim?”

“Vovó compra o que você quiser.” A resposta tinha sido dada para demarcar ainda mais as diferenças. Achando, no entanto, que desta vez tinha ido longe demais, a velha ajuntou, corrigindo: “Até onde o dinheiro der.”

O menino nem notara a correção. Sentindo-se incentivado na sua gulodice tirou mais uma barra de chocolate o que obrigou a mãe a interceder: “Chega! Agora chega! Duas barras são o suficiente.” e virando-se para a avó, lançou um olhar de repreensão.

Como sua tentativa de expandir limites e fronteiras esbarrara em terreno pantanoso, a avó foi obrigada a mudar de tema. Com ar preocupado disse, dirigindo-se à filha: “Estou preocupada. Acho que fiz uma besteira. Comprei uma passagem aérea, mas nem sei se vou poder viajar.”

“E para onde é?”

“É para Paris. A passagem estava muito barata e dava para parcelar. É que sempre acabo deixando para a última hora e aí, em cima da data, a passagem fica caríssima.”

A filha, que possivelmente jamais tinha saído do Brasil, estava a exercitar a sua tolerância. Mas a velha tinha acabado de chegar, fizera viagem longa e cansativa. Tinha que aguentar. Se brigasse agora, como é que ia ficar? Tentando contemporizar, atenuou o problema: “Mãe, não se preocupe. Se não puder viajar desta vez, você remarca o bilhete.”

A velha, no entanto, guardava para si o direito da última palavra: “Para remarcar tem que pagar taxa. E a passagem só tem validade por um ano.” Deixava claro que na administração da riqueza não se podia dar bobeira. Tinha que se estar atento a todos os detalhes. Para garantir que a última palavra ia ser a dela, resolveu mudar novamente de assunto. Virando-se para a filha, disse, cheia de reticências e subentendidos: “E aí, como é que vão indo as coisas?” No vão indo é que tinha sido colocado o acento, talvez porque dentro da perspectiva da velha, se tratasse de algo dinâmico, fugaz e passageiro. O olhar, lançado de soslaio ao menino, deixava claro o porquê das reticências e dos subentendidos.

“Pior do que você imagina.” foi a resposta da jovem senhora, talvez porque ela não concordasse com o fugaz e passageiro.

Ficava claro, no entanto, que entre filha e mãe havia mais do que só disputa de limites e fronteiras. Havia agora no ar uma certa cumplicidade que, para mim, tornava a conversa mais interessante. Infelizmente, no entanto, chegara a minha vez de ser atendido na fila. Antes que a velha me cutucasse e me lançasse impropérios, num arranco me desgarrei do grupo e me dirigi ao caixa.



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