deixei o teu nome deitado quando preguiçoso e dolente me ergui ao dia...
na lembrança dançava um desordenado compasso quando olhei o espelho e este me sorriu com face provocatória de desdem ...
bocejei a saudade de ontem, guardei uma lágrima como recordação daquelas que não verti na despedida da conveniência...
faço a barba, tomo um duche, espartilho-me na roupa mais prática que não faz de mim aquele tipo que elas gostam de ver...
...engulo o comprimido e penso no coração que, tão subcarregado de asneiras, já não tem espaço para mais afectos.
agora moram nele dois "parafusos" que ajudam a circulação dos sentimentos que me correm o corpo...
eis-me pronto no disfarce contranatura do homem que nasceu nu e nu despe preconceitos do "parece mal"...
saio de casa, sincopo passos, dou bons dias e caminho rumo ao destino...
estou bem disposto, mas ràpidamente fico melancólico com tantas árvores que vejo despidas e tantas folhas que piso no caminhar...
diria que piso a esperança da primavera passada e desprezo o castanho amarelado desta tela da natureza...
sigo em frente, entro na estação do combóio, a menina de todos-os-dias-à-mesma-hora, olha sorri e cumprimenta-me.
retribuo e vejo como vem bonita na sua ultra mini saia que mostra bem acima as suas pernas torneadas-
desenho mais perfeito...não há.
avanço com o olhar mas a neblina não me deixa ir longe.
fico aquém da minha ambição, apesar de continuar a esgotar-me em mil e uma fisionomias que olho na dispersão da procura.
finalmente o combóio.
lotadissimo, como sempre.
espalmo-me contra a moça da perna longa e saia curta.
peço desculpa,mas...tem de ser.
ela compreende e aceita. compreende, aceita? fico na duvida, mas não faço nada que não deva.
bafos e bafos de respiração jogam contra a minha colónia rotineira.
suo, farto-me, mas o destino chega, finalmente...
saio do combóio, entro na rolante e deslizo até aos confins do metro.
aqui, a fila é enormérrima. que fazer?
alinho na militarização composta dos utentes em parada.
estamos todos perfilados numa continência imaginária, só nos falta a farda ou a sotaina de meninos de coro catequisados .
num trovão de velocidade, eis que chega o metro. empurrão mais empurrão e...eis-me dentro do combóio.
mais uma vez comprimido. agora, contra dois metros de cintura duma negra que deve ter acordado tarde e deixado o banho para depois...
...lá se vai a minha fabulosa colónia, absorvida pelo fedor suorento da parceira que me espartilha contra outros... lá fica amarrotado o metro e setenta e três centimetros que meus pais me ofereceram ...
a minha saída deste suplicio avizinha-se. finalmente, é, já, na próxima...
quando essa felicidade chega, sinto que estou como uma folha de papel que se amachuca e joga fóra...
...e estive eu com tanto cuidado a escolher a roupa para vestir quando ainda não cheguei onde queria e já estou a pedir novo banho, nova muda de roupa...
todo eu procuro alisar-me do amarrotado que sinto. na verdade, a vaidade sente-se cruelmente ofendida com o desaforo turbulento que me esperou nos transportes...
...e agora? eis-me no centro da cidade que dizem de ulisses esse glorioso romano que em tempos remotos andou por aqui e deixou inumeras lembranças no subsolo da cidade.
subo a ingreme rua onde calcorreei a juventude e entro na brasileira.
servido por uma mineira café-com-leite lá dos brasis, tomo um café bem negro.
vadio mais um olhar, como se revivesse os tempos que por aqui universitei, culturando em tantas conversas com pessoas geniais, como, ary, ferreira de castro, nemésio, vilarett, martins correia e até juscelino.
de repente páro. se não o faço a emoção toma conta de mim e lá perco mais umas tantas lágrimas desprevenidas.
ah! como o tempo passa, como tudo e tanto ficou para trás na doce lembrança a que chamavam de verdes anos e do que por aqui se passava...as bailarinas do são carlos, a malta das belas artes, os poisares de intelectuais ao fim da tarde na bertrand e na sá da costa, as costureirinhas rumando a casa depois dum dia de trabalho...puxa! como o tempo passa e como as saudades se amontoam e enforcam o nó que sinto na garganta...
pago o café e desando daquela enciclopédia de recordações.
rumo ao meu destino, atento e venerando a minha atenção.
esta cidade desgasta-me a lembrança, mas vivo-a a cada momento. afinal foi nela que nasci e nela que me fiz homem, apesar de ter sido um menino de liberdades limitadas pelo regime opressor.
é nela que me visito e me amo a cada esquina. sim porque ter nascido aqui e viver a intensidade da sua luz, do seu calor, do seu sol, não é mais do que, narcisamente, amar-nos a nós próprios.
vou em frente. finalmente o meu destino, o ponto de encontro. olho o relógio e...como sempre estou adiantado.
espero. esvazio os olhos de saudades e guardo outras.
ambas guardarei para sempre até que um dia chegado corte a raíz ao pensamento e eu fique, para sempre, no mundo do silêncio, do pó, da cinza e...do nada!
João Videira Santos
Com registo na SPA
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Biografia: João Videira Santos, nasceu em Lisboa, Portugal.
A arte desde sempre o atraíu, convivendo, desde muito jovem, com algumas das mais proeminentes figuras da cultura Portuguesa.
Desenvolve a sua criatividade na poesia, nas artes plásticas e na musica.
Alguns dos jovens interpretes da canção Portuguesa das décadas de 60 e 70, interpretaram composições de sua autoria, sendo que muitas delas tiveram gravação comercial e edição internacional.
Colaborou com diversos programas de rádio em Portugal e no estrangeiro, escrevendo poesia, crónicas e textos de opinião.
A sua poesia encontra-se publicada em jornais, revistas, páginas da web e em livro
No campo das artes plásticas, tem participado em diversas exposições individuais e colectivas..
Alguns dos seus trabalhos fazem parte de colecções particulares em Portugal,
Espanha, França, Roménia e Brasil.
Foi fundador e membro das primeiras direcções da Apoiarte / Casa do Artista, em Lisboa, Portugal.
Bibliografia
“Meio tom”– Janeiro 1971 – Edição Autor - Lisboa, Portugal
"Telhados de vidro" - Novembro 2004 - Edição privada - Brasilia, Brasil
“Esquinas do tempo”– Março 2005 – Thesaurus Editora - Brasília, Brasil
“Laberintos de sentimientos”– Junho 2006 – Centro Poético - Madrid, Espanha
"Antologia Poética do Guará" - Novembro 2011 - Edição Guararte - Brasilia - Brasil
"IN confidências" - Novembro 2011 - Edições Camara Borges - Lisboa - Portugal
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