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A Casa da Bruxa
Gustavo de Mello

Resumo:
Quem espreita no interior da mata? Que perigos podem haver em locais desolados e antigos? Deuses antigos precisam saciar sua fome e os irmãos Vitor e Miguel descobrirão isso da pior forma possível.

Era uma manhã fria de sábado. Miguel e Vitor brincavam sobre uma grande montanha de sal mineral que o pai usava para alimentar os animais da fazenda. Miguel, no alto da grande duna de sal, levantou um pedaço de pau, que fingia tratar-se de um sabre, e disse a Vitor: – Suba aqui se você for homem! – Vitor olhou para o grande monte branco a sua frente, que devia ter uns três metros de altura, mas, aos seus olhos de criança, parecia ser tão alto quanto o Monte Everest e suou frio. Vitor tinha medo de lugares altos e Miguel sabia disso.
     – Eu não vou a lugar nenhum seu cuzão! – Respondeu Vitor enfurecido e acrescentou: – Seu cuzão de merda. – Os dois garotos então se entreolharam e deram boas gargalhadas. Vitor tinha acabado de dizer duas palavras proibidas: “cuzão” e “merda”, e isto sempre os faziam rir. Foi Miriam, a mãe dos garotos que disse a eles uma vez que haviam dois tipos de palavras, as chamadas “palavras boas” e as “palavras más”. Miriam também disse que se os pegassem falando as palavras más ou proibidas lavaria as bocas dos meninos com sabão. Era por isso que eles achavam tão excitante dizer estas palavras, pois sempre existia a possibilidade de que algum adulto estivesse por perto e eles se metessem em encrenca.
     Vitor e Miguel não eram irmãos comuns, eles eram gêmeos. Foi Pedro, o pai dos garotos que lhes explicaram certa vez ¬“vocês são gêmeos univitelinos, isto é, foram desenvolvidos a partir do mesmo óvulo, por isso são tão parecidos”. Na verdade, Pedro não sabia exatamente se havia relação entre a semelhança dos garotos e o fato de terem sido desenvolvidos a partir do mesmo óvulo, todavia, na ocasião, foi o bastante para que os garotos parassem perguntar a respeito da incrível semelhança entre eles e porque não eram diferentes como os outros garotos. Mas isso foi antes, agora eles se sentiam normais e, ademais, sabiam que, pelo fato de terem dividido o mesmo óvulo, existia um elo entre eles que as outras pessoas nunca poderiam ter. Sim, este elo era tão forte que muitas vezes um podia realmente sentir o que o outro sentia, mesmo que estivessem a quilômetros de distância um do outro. Isso ficou muito claro para os garotos numa tarde ensolarada de janeiro, na época eles tinham uns cinco ou seis anos de idade, Miguel foi sozinho até uma pequena represa que tinha aos fundos da casa da fazenda e caiu. Vitor, que estava com a mãe na cozinha, pouco antes da queda de Miguel, passou a chorar, chamando-a para que o levasse para fora da casa. Miriam acabou consentindo, com intuito de acalmar o garoto, ocasião em que encontrou Miguel que havia acabado de cair na água escura da represa. Vitor não se recordava se ela havia pulado nas águas enlameadas da represa ou simplesmente erguido o braço e apanhado Miguel, mas a partir daquele dia não havia mais dúvida – existia algo místico entre eles que ninguém poderia explicar. Isso havia ocorrido outras vezes, com menos intensidade e emoção, mas aconteceu.
     Naquela manhã, por outro lado, os garotos estavam tendo um típico dia de meninos de onze anos, estavam brincando antes que o pai ou a mãe os chamassem para auxiliá-los em algum dos afazeres domésticos.
     Foi Vitor quem disse a Miguel, depois que pararam de rir das “palavras proibidas”:
     – Se você é mesmo um homem então vamos ver se tem coragem de entrar na Casa da Bruxa.
     – Você sabe que já entrei lá muitas vezes. Você é que é um cagão. ¬– Respondeu Miguel enquanto descia suavemente pela duna de sal mineral.
     – Entrou com o papai e durante o dia. Quero ver se tem coragem de ir lá SOZINHO e a NOITE.
     – Você vai ver só, seu franguinho de merda. – Disse, por fim, Miguel, enquanto pegava seu canivete que, momentos antes, havia enfincado em uma viga de madeira, e o coloca na pequena bainha presa ao cinto.
     Em uma manhã fria e ao mesmo tempo ensolarada de junho, a ideia de ir até a “Casa da Bruxa” parecia ser tranquila como um passeio na praça. Todavia, quando a noite caísse e o sol se escondesse em algum lugar entre a Austrália e o Japão, a velha casinha de ferragem, que ficava numa mata fechada a mais ou menos três quilômetros da sede da fazenda, casinha esta que os garotos costumavam chamar simplesmente de “Casa da Bruxa”, parecer-se-ia com algo extremamente aterrorizante e desolador. Todavia, naquele momento, Miguel não queria parecer um “frangote”, não senhor, todo mundo sabe que os “frangos” e os “nerds” não têm colhões e é por isso que sempre se dão mal na escola. Vitor era medroso, todo mundo sabia disso, mas Miguel não. Miguel era valente e astucioso, com certeza não era tão bom quanto Vitor em matemática ou português, mas jogava futebol muito melhor e era mais forte. Vitor sabia disso, e sabia também que os outros garotos só não “destruíam a sua cara” na escola, como faziam com os outros “nerds”, porque tinham medo de Miguel. “Isso não importa”, pensava Vitor, “só não quero que eles me batam. Não ligo se pensam que sou um “franguinho” ou uma “mulherzinha”, desde que não me batam por causa disso.” Miguel, por sua vez, era o extremo oposto do irmão, e simplesmente não podia conceber a ideia de ser associado a um “nerd” ou um “medroso de calças cagadas”. Por tudo isto não restava qualquer dúvida, naquela noite Miguel realmente iria até a Casa da Bruxa.

     O resto do dia foi como qualquer outro, os garotos ajudaram o pai a consertar um antigo trator Valmet 85 que estava com vazamento de óleo, almoçaram, auxiliaram a mãe a guardar as louças limpas do almoço, assistiram TV, jantaram e foram para a cama. Assim que a noite caiu na fazenda e o breu noturno tornou tudo intensamente negro, Miguel percebeu como foi leviano em aceitar aquele desafio idiota.
     – Você vai mesmo até a Casa da Bruxa? – Perguntou Vitor, desejando sinceramente que o irmão dissesse que não ou inventasse alguma desculpa.
     – É uma casinha antiga de ferragem, não tem nada demais lá. – Respondeu Miguel, como se quisesse convencer a si mesmo com aquelas palavras. Então se levantou da cama, tentando evitar fazer qualquer barulho e acordar os pais que, possivelmente, já estavam dormindo, colocou suas calças jeans, apanhou seu canivete, uma lanterna e perguntou ao irmão:
     – Você não vem?
     – Eu? Mas foi você quem se comprometeu a ir e não eu. – Respondeu Vitor, ainda de pijamas.
     – Você pode até não entrar na Casa da Bruxa, mas terá que ir comigo até lá, caso contrário quem vai testemunhar o meu feito? – Então acrescentou: – Se você não vier comigo pode esquecer a minha ajuda quando Alex ou Tiago quiserem bater em você na escola.
     Tiago e Alex eram dois brutamontes que tinham como hobby ameaçar e agredir os “nerds” e os “frangotes” da escola estadual onde estudavam. Em uma ocasião, ambos os garotos pegaram um menino deslocado, chamado Ricardo e, em seguida, viraram-no de ponta cabeça e o enfiaram dentro de um grande barril usado para colocar lixo. Todos os garotos da escola ficaram em volta rindo, enquanto o pobre menino chorava e se chocalhava, tentando sair dali.
     Sem escolha, Vitor acabou se levantando da cama, trocando de roupa e, por fim, disse ao irmão:
     – Tudo bem, mas eu ficarei do lado de fora e, se alguma coisa acontecer, vou sair correndo. – Disse isso enquanto testava as pilhas de sua lanterna Philips, de luz verde.
     Miguel assentiu e então os garotos abriram a janela do quarto e, de forma sorrateira, saíram para o lado de fora da casa.
     Fazia muito frio e uma pequena garoa começou a se formar enquanto Miguel e Vitor passava pela cerca que separava a sede da fazenda do grande canavial que se estendia até a densa floresta, onde ficava a antiga casinha de ferragens ou, se preferir, “A Casa da Bruxa”. Eles passavam por um tortuoso carreador de cana, Miguel caminhava um pouco a frente, segurando firmemente a lanterna, e prestando bastante atenção, pois sempre havia o risco de encontrarem cobras ou outros animais perigosos como lobos e onças, afinal, era um local desolado. Vitor, por sua vez, andava um pouco atrás, também bastante atento, pois sabia os perigos que existiam naquele lugar. Durante o caminho Vitor só conseguia pensar como fora precipitado em desafiar Miguel. Ele devia saber que Miguel não iria se acovardar e pior, ele acabaria tendo que se meter com ele naquela “furada”.
     – Vamos voltar, Miguel. Está tudo bem, você ganhou, eu sei que você não é um covarde, mas este lugar me dá arrepios durante a noite.
     – Deixe de ser tão “mariquinhas”. Papai não tem medo de andar durante a noite no campo. Você quer ser um covarde para sempre?
     Nem bem terminou de dizer a última palavra, passaram a ouvir um animal ou alguma coisa caminhando sobre o mato. Miguel fez um sinal para que Vitor se afastasse e se aproximasse dele. – É é é u-ma on-ça – disse Vitor gaguejando de medo. Miguel apanhou seu canivete, abriu-o e ficou com o instrumento a sua frente, em riste. Vitor olhou para o irmão e pensou como aquele canivete seria absolutamente inútil contra o animal, porém não pôde deixar de admirá-lo por sua coragem. Então puderam ver dois círculos prateados brilhando e flutuando no meio da escuridão. Vitor apoiou a mão nos ombros de Miguel para que eles corressem, todavia, para a surpresa e alívio dos garotos, quando a luz da lanterna alcançou os círculos prateados, perceberam que era Bárbaro, o cão vira-latas da fazenda.
     – Bárbaro, menino! – Disse Miguel, deixando transparecer a felicidade ao ver o cãozinho, e completou: – viu só, é apenas Bárbaro, não há o que temer... – Nisso Vitor foi até próximo do cão e o afagou aliviado. O cãozinho, em resposta, abanou o rabo com alegria e os três continuaram o percurso.
     A chuva havia aumentado quando os garotos e o cão cruzavam a cerca de arame farpado que separava o canavial da reserva legal. Vitor pisou no arame e levantou com as palmas das mãos o segundo fio do arame, enquanto Miguel passava pelo meio dos fios esticados. Em seguida, já do outro lado, Miguel fez a mesma coisa, deixando a área livre para Vitor. O menino passou com cuidado, todavia, uma das farpas se prendeu nas costas da camiseta de Vitor, fazendo um profundo e dolorido corte em suas costas. A dor fez com que ele se lembrasse dos perigos daquela missão idiota e como estavam extremamente vulneráveis ali. Bárbaro, o cãozinho, passou sem dificuldade por debaixo do último fio do arame, abaixando-se com destreza.
     A floresta era um amontoado denso de árvores, umas tão próximas às outras que, à primeira vista, parecia ser impossível passar ali sem ficar preso em meio aos arbustos e arvoredos. Os garotos, todavia, sabiam que a esquerda da cerca, caminhando no sentido do córrego, havia uma abertura ligeira na mata que permitia ter acesso a um estreito e antigo caminho que levava até a uma cachoeira, completamente escondida e pouco conhecida pelos vizinhos próximos dali. Por outro lado, se um pouco antes do declive que chegava à mencionada cachoeira, você pegasse um outro caminho à direita, este quase imperceptível para olhos menos treinados, você chegaria até uma antiga casinha de ferragens, construída Deus sabe por quem e há quanto tempo atrás.
     Enquanto penetravam na mata fechada, iluminada apenas pela luz tênue das duas lanternas, Miguel começou a sentir a respiração ofegante e o suor descer frio pela coluna até a racha da bunda. Por um instante o garoto passou a entender a estupidez que estavam fazendo, porém, era como se suas pernas caminhassem sozinhas, era como se ele não tivesse mais o mínimo de controle da situação. Não podia dizer com certeza, mas tinha a mesma impressão sobre Miguel, achava que ele não estava o seguindo pois realmente queria, mas tão somente porque havia algo, alguma energia ou coisa assim que guiava os garotos pelas veias finas e apertadas das artérias daquela velha mata. Ah sim, aquela velha mata, aquela mata anciã assoviava na escuridão e chamava pelos garotos há muito tempo e agora eles enfim estavam a obedecendo. Então, uma frase surgiu no ouvido de Miguel, era delicada como a voz de uma mulher e poderosa como de um deus antigo, ela dizia: “Venha dançar, venha dançar aqui embaixo. Aqui a música nunca acaba e nunca é hora de partir”. Assustado, Miguel olhou para Vitor, todavia, como não havia alteração alguma no semblante do irmão, o menino pensou que era algo de sua mente e tentou expulsar aquele pensamento. Mas o pensamento não foi embora, ele voltava cada vez mais alto e poderoso.
     Um pouco atrás de Miguel, Vitor caminhava ao lado do cão. O vento soprava frio, fazendo pequenos cortes na pele de seu rosto. “É como se fosse um sonho”, pensou o menino enquanto caminhava pelas raízes altas de um velho salgueiro-chorão que possivelmente foi plantado ali por algum antigo morador da fazenda.
     Estavam a menos de cinquenta metros do destino quando Vitor pôde ouvir uma risada cheia de um tuberculoso, seguida da frase “venha dançar aqui embaixo. Aqui a música nunca acaba.” Assustado, o garoto perguntou ao irmão:
     – Você ouviu isso?
     – Sim. – respondeu Miguel, e continuou – estou ouvindo essas vozes já há algum tempo, mas acho que não posso voltar atrás.
     – Como assim “não posso voltar atrás” vamos embora daqui agora, Miguel.
     – Eu iria, já tentei inclusive, mas simplesmente não posso. Se você conseguir vá. Vá e peça socorro, por favor.
     Vitor viu os desesperos nos olhos de Miguel. Ele estava chorando, pela primeira vez em muitos anos via Miguel chorando e não podia acreditar. Por fim, respondeu aterrorizado:
     – Eu também não posso. – Os olhos do garoto expressavam todo terror e angústia de ter que caminhar em direção aquele abismo sórdido. Miguel pôde ver o sofrimento nos olhos do irmão e isso o fez se sentir ainda mais triste e impotente.

     Chovia torrencialmente quando os garotos e o cão chegaram de fronte à “casa da bruxa”. Através da luz tênue das lanternas, os garotos puderam ver uma grande árvore coberta de folhas e, ao fundo, o antigo casebre coberto de limo e a porta caída sobre uma pequena soleira de madeira.
     – Vamos lá, dever haver alguma forma de resolvermos isso – disse Miguel.
Vitor deu de ombros e passaram a caminhar em direção ao casebre. Estavam a poucos passos de distância do destino, quando Bárbaro passou a uivar loucamente, como se pressentisse o perigo eminente.
     – Fique calmo, garoto! – Exclamou Miguel, e continuou – Vai ficar tudo bem. – “Pelo menos espero que fique”, pensou ele enquanto caminhava sob a chuva e o frio intenso daquela noite de julho.
     Houve um forte relâmpago que, por poucos segundos, tornou a noite dia e permitiu que os garotos pudessem ver com nitidez, no interior do casebre, uma velha completamente enrugada com um grande e diabólico sorriso nos lábios.
     – Venham dançar aqui embaixo, meus garotos. Venham dançar. – Disse a velha e, em seguida, gargalhou. O som da gargalhada era metálico e sujo. Na verdade, a palavra mais correta para aquela risada seria “imoral”. Um adulto, com toda certeza, enlouqueceria facilmente com aquela cena tenebrosa, todavia, a mente das crianças é mais forte por natureza. Elas, isto é, as crianças, não entendem completamente a diferença do real e da fantasia e, por esse motivo, suas mentes são mais abertas a fatos incompreensíveis.
     Desta vez, todos ficaram paralisados observando a velha se movendo lentamente na penumbra. Ela usava uma grande capa preta que cobria todo o seu corpo e seus passos eram irregulares. Miguel pensou já ter visto movimentos como o da bruxa em filmes de terror “B”, o que o deixou ainda mais assustado.
Já do lado de fora do casebre, sobre a pequena soleira, sob a luz pálida das lanternas, a bruxa se revelou aos pequenos e indefesos garotos. Ela era enorme para uma mulher, tinha aproximadamente um metro e noventa de altura, era corcunda, sua pele asquerosa, cheia de feridas, rugas e verrugas. Era parcialmente calva, mas tinha mechas de cabelos prateados que lhe desciam até a cintura. Uma estranha e abominável maquiagem lhe cobria todo o rosto, deixando-a ainda mais aterrorizante. O pior de tudo não era a aparência do demônio, mas o seu cheiro. Ela fedia como um esgoto aberto de uma cidade grande do terceiro mundo misturado com um odor ainda mais denso de naftalina.
     – Venham dançar aqui, meus meninos! – Repetiu a velha mais uma vez com um estranho sorriso, e acrescentou: – Tenho chocolates e jujubas, vocês podem pegar à vontade se quiserem.
     – Nós não queremos nada disso, seu demônio asqueroso! – Disse Miguel de forma impulsiva, surpreendendo a todos com sua coragem, inclusive a bruxa.
     – Vocês não podem escapar. Há tempos que eu os chamo para minha morada e vocês enfim escutaram o meu chamado. Nós vamos ficar aqui para sempre e logo vocês vão ser parte disso também. Veja como é bela essa mata, ela nos acolhe e nos dá a vida.
     – Que vida? Você parece morta para mim! ¬– Exclamou o jovem Miguel.
     – É preciso morrer para viver. – Respondeu a velha, agora de forma séria, sem o sorriso no rosto.
     – Eu não quero viver nesse pântano imundo com você, sua velha maldita! – Disse Miguel, segurando o canivete nas mãos e revelando a pequena arma à bruxa.
     Vitor, que observava tudo sem dizer nada, percebeu que Miguel começava a flutuar a poucos centímetros do chão. Quando subiu seu olhar para o rosto do irmão, percebeu que um arco vermelho se formava em sua garganta, como um mágica. Então, os braços de Miguel se afrouxaram e o canivete caiu de suas mãozinhas indefesas.
“Pegue o canivete”, pensou Vitor, mas suas pernas tremiam como nunca e ele se sentia como se fosse desmaiar com o menor esforço que fizesse. “Que bunda mole você é, que bunda mole miserável você é. Seu irmão está quase morrendo e você sendo um marica como sempre”, disse uma voz no interior de sua cabeça. “Quero sair daqui, quero acordar desse pesadelo”, respondeu Vitor para a vozinha dentro dele, mas não obteve nenhuma resposta a não ser o silêncio.
     Sem coragem suficiente para pegar o canivete, Vitor fez o que lhe pareceu mais sensato naquele momento ¬– gritou por socorro e começou a chorar freneticamente. Bárbaro, por sua vez, em um impulso de valentia e insensatez, próprio de cachorros, correu em direção à bruxa e lhe mordeu a perna com ferocidade.
     Surpreendido pela dor, o demônio soltou Miguel, que caiu como um cacho de bananas no chão. Vitor, percebendo a oportunidade e com um impulso inesperado de coragem (quase sobrenatural), apanhou o canivete do irmão do chão, correu em direção à bruxa, que no momento tinha o olhar inteiramente concentrado em Bárbaro, e cravou o objeto cortante na barriga do monstro.
     Um estridente e abominável grito ecoou pela floresta. Corujas e pássaros que repousavam sobre os galhos das árvores fugiram abruptamente. No local onde o canivete fora introduzido, um espesso e negro fluído descia lentamente. A velha então se virou para Vitor, encarando-o com cólera e surpresa:
     – Como você ousa, seu pirralho de merda? Eu vou matá-lo e comer até o último de seus ossos!
Bárbaro, que estava próximo da bruxa, pressentindo o perigo iminente, mais uma vez abocanhou a perna da velha, sobre o mesmo local de antes, fazendo com que ela urrasse de dor e ódio.
     Por alguma razão, enquanto tudo isso acontecia, Miguel sentiu que aquela era a oportunidade para que eles fugissem dali, e que o feitiço que fora jogado contra eles não tinha mais força (pelo menos não naquele momento). Diante disso, o garoto foi mancando até Vitor, que olhava boquiaberto o ato de bravura do cãozinho Bárbaro, e disse:
     – Vamos dar o fora daqui!
     – Vamos! – Respondeu, Vitor enquanto ajudava o irmão a se apoiar em seu ombro e rapidamente se embreavam na mata fechada. Durante o percurso pelo antigo caminho, encharcados pela chuva e sentindo-se exaustos, podiam ouvir os latidos de Bárbaro e os gritos de fúria da bruxa, que pareciam vir de um local muito, muito distante, como uma outra dimensão.
     – O Bárbaro vai morrer, Miguel... – disse Vitor, com desconforto, e continuou – ... talvez devêssemos voltar lá.¬
     – Não diga besteiras. Não era para a gente nem mesmo estar aqui. Enquanto “aquilo” me fez flutuar e me “segurou” pelo pescoço, percebi o quanto somos impotentes contra “ele”. Você não entenderia, mas “ele” me fez sentir o seu poder e me fez sentir medo, me fez sentir medo de verdade. – Miguel foi omisso. Não quis dizer ao irmão que, por alguma razão, sabia que aquele ser que eles se referiam como “bruxa”, na verdade tratava-se de uma entidade ancestral, tão antiga como a própria terra em que pisavam. Ela descendia de seres maiores e infinitamente superiores a ela. Seres que reinaram por milênios de anos, mas que adormeceram, esperando o momento certo para voltarem e subjugarem todos nós.
     Já era quase dia quando os garotos cruzaram a última cerca em direção à sede da fazenda. Sentiam-se ofegantes com o coração batendo pesado no peito. A chuva havia cessado, mas uma densa neblina os impediam de ver com clareza o caminho a frete. De repente, puderam ouvir passos delicados e rápidos. Era Bárbaro. Ele caminhava com a pata da frente encolhida, com a língua para fora e os olhos cansados. Estava vivo, graças a Deus o cãozinho estava vivo.
     Diante do estado das roupas (sujas e rasgadas), os garotos livraram-se delas, ficando apenas de cueca e com os sapatos. Entraram pela mesma janela pela qual saíram, colocaram seus pijamas e deitaram-se. Sozinhos, no quarto, enquanto tentavam dormir, podiam ouvir claramente: “Venha dançar, venha dançar aqui embaixo. Aqui a música nunca acaba e nunca é hora de partir”, seguido de uma terrível gargalhada “rá-rá-rá-rá...”

FIM.


Biografia:
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Outros títulos do mesmo autor

Contos A Casa da Bruxa Gustavo de Mello
Contos A Cripta Gustavo de Mello
Contos Pesadelo no Deserto Gustavo de Mello


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