São José do Vale do Rio Preto, Rio de Janeiro. A família de Seu Raimundo aguardava a chuva passar. Mesmo com todas as portas e janelas fechadas, era possível ouvir a forte enxurrada lá fora.
− Papai, estou com medo — Emily, encolhida sobre o sofá da sala, tentava não chorar e pedia a proteção dos braços do pai.
Seu Raimundo e a esposa, no centro da sala, olharam um para o outro, apreensivos.
− Eu sei, querida. Não fique com medo, logo a chuva vai passar e poderemos sair.
Seu Raimundo, motorista de profissão e pedreiro nas horas vagas, tentou não exteriorizar seu medo, tentou parecer verdadeiro, mas era tarefa difícil. Abraçou sua filha com carinho. Era apenas uma criança.
Após quatro dias de chuva, as faces internas das paredes da casa do motorista já estavam úmidas. D. Izabel distribuíra panelas, bacias e cumbucas por toda a casa, protegendo os móveis e o piso. Os períodos de chuva naquela região eram sempre complicados. O enfrentamento de enchentes não era algo novo por ali, mas jamais a natureza os atingira com tanta violência.
Lá fora, o vento forte fazia as telhas vibrarem. Janelas e portas de ferro também reclamavam irritantemente. Um trovão reverberou nas paredes da casa, fazendo-as tremer. Victor começou a chorar: sempre teve medo dos trovões. Correu para junto da mãe, que procurou acalmá-lo em seus braços. Ela costumava chamá-lo de “rapaizinho”, mas agora, sentindo-o tremendo em seus braços, viu que ele era só uma criança de dez anos com medo daquela força que tentava entrar em sua casa.
A enxurrada no quintal passou a levar mais do que objetos pequenos. Levou a casinha do cachorro e derrubou os postes, onde D. Izabel, cozinheira de mão cheia como diziam lá na escola onde trabalhava, arrumava seus varais. A água negra, espessa e fedorenta cobriu todo o piso. O nível e a força daquele rio de desespero subiam rapidamente.
Seu Raimundo e sua família se mantinham calados a maior parte do tempo. O medo, quase palpável, enchia a sala como um grande balão de gás. As últimas noites haviam sido bem longas, vigiando a chuva e o ribombar dos trovões. O casal estava cansado, com profundas covas sob os olhos. Sentaram-se no sofá e encolheram-se. A temperatura caíra com o anoitecer. Trovões, cada vez mais comuns, com clarões assustadores, pareciam querer derrubar as paredes, fazendo-as vibrar fortemente.
Quando as águas iniciaram sua invasão, primeiro pela porta dos fundos, depois pela porta da cozinha, na lateral da casa, o motorista e a cozinheira sentiram a coração bater mais forte. A irrupção logo tomou todo o piso da sala, levando panelas, bacias e cumbucas. Um caldo negro lançou-se sobre tudo, rugindo, jogando os objetos uns contra os outros. Barulho. Barulho infernal.
Seu Raimundo levantou-se de súbito, gritando ordens:
− Izabel, me ajude a catar as coisas do chão e colocá-las sobre o sofá. Rápido! — Izabel já estava de pé, e também começou a falar:
− Victor, cuide de sua irmã. Não ponha os pés na água e não saia de cima do sofá, entendeu?
O garoto olhava para a mãe, assustado. Não foi capaz de responder, mas o medo em seu semblante já dizia tudo. Não iria sair dali, de jeito nenhum.
O casal começou a correr pela casa, erguendo móveis e objetos, salvando o que era possível da água lamacenta que tentava expulsá-los de sua casa.
- Rai, que chuva é essa, pelo amor de Deus! — disse D. Izabel.
- Não sei nega, não sei — disse Seu Raimundo — vamos, me ajude.
- Nunca vi tanta água assim, Rai… quatro dias de chuva direto! — A água já tomara o meio das canelas de D. Izabel. — O que vamos fa…
- Me ajude aqui, nega! — Seu Raimundo deu as costas para mulher, seguindo pelo corredor.
Correram para cozinha e conseguiram erguer a pequena geladeira, pousando-a sobre a mesa. O fogão teve lugar sobre as cadeiras. Quando chegaram ao quarto, o guarda-roupas já estava com os pés submersos em quinze centímetros de água e lama. Retiraram as peças de roupa da parte mais baixa e espalharam sobre a cama. Tudo o que eles possuíam estava prestes a se perder.
O barulho do temporal aumentara a níveis ensurdecedores. O casal permanecia calado enquanto corria de um lado a outro da casa. Também aumentara o desespero da família. Da sala, onde as crianças se encontravam ilhadas sobre o sofá, veio um estrondo, seguido dos gritos dos pequenos. D. Izabel correu e encontrou a porta da frente escancarada. Um mar de lama e lixo penetrava aos montes pela entrada principal da casa. Sofá, cadeiras, estante e tudo o que estava no chão foi empurrado de encontro às paredes. “Senhor, Pai, o que é isso!” Lá fora, a enchente já levava carros, motos, pedaços de móveis e… pessoas.
- Rai! — D. Izabel gritou.
Com as crianças nos braços, o casal correu para os fundos da casa e se abrigou dentro de um pequeno banheiro. Por lá ficaram, apavorados, ouvindo a enchente levar tudo… destruir tudo. Do alto do morro, um novo estrondo chegou à casa de Seu Raimundo e, da pequena janela do banheiro, ele viu uma imensa tromba d’água descendo a ladeira. Aquele oceano carregava tudo que surgia em sua frente, sem piedade. Senhor, proteja minha família!
− Nós temos que sair daqui, agora! — disse o motorista. Levantou-se e, agarrado aos filhos, correu para a porta dos fundos. A lama dificultava as passadas, mas conseguiu sair minutos antes de sua casa ser atingida pela tromba d’água. Correu contra a correnteza, Emilly pendurada no ombro esquerdo, Victor no direito.
– Vamos… VAMOS!
Com água já pela cintura, Seu Raimundo lutou para não ser arrastado morro abaixo. Antes de conseguir chegar a um lugar mais seguro, ainda teve que enfrentar uma forte onda, que lhe cobriu até a altura do pescoço. Perdeu o equilíbrio… perdeu as forças, foi carregado alguns metros até ser jogado de encontro ao que sobrara da parede de uma casa. Exausto, com os braços fortemente amarrados aos filhos, percebeu que D. Izabel já não estava mais com eles.
− Izabeeel! — Gritou — Izabel, cadê você? “Meu Deus, não… por favor, não! — Izabeel! — Gritou novamente. Não houve resposta. Izabel havia sido levada pela correnteza. Emilly e Victor choraram junto ao pai.
Seu Raimundo e as crianças alcançaram um lugar mais alto e lá permaneceram. Cobertos pela lama, tremendo de frio sob a chuva que caía sem parar, aguardaram a chegada do socorro. Do alto, conseguiam ver o que sobrara de sua casa: o telhado havia sido levado pelo vento e as paredes derrubadas pela tromba d’água que desceu do morro. Um grande rio de lama e lixo carregava tudo o que via pela frente. Também viam vários de seus vizinhos, em situação semelhante à deles, ilhados em lugares onde a correnteza não era tão forte, aguardando que alguém viesse salvá-los.
Já era início de noite quando tudo começou, e, naquele momento, com a noite alta no céu, a escuridão tornava tudo ainda mais desesperador. Durante a madrugada, a chuva começou a diminuir, até parar por completo. A correnteza foi perdendo volume e o nível da enxurrada foi baixando.
Seu Raimundo e seus filhos ouviram o barulho do helicóptero sobrevoando a área. Foram resgatados algumas horas depois do início daquele pesadelo e levados ao abrigo improvisado pelo governo. Lá conseguiram banho, roupas limpas, comida e atendimento médico. As crianças estavam fisicamente bem, apesar das longas horas sob a chuva e sem comer. Contudo, a tristeza por ter perdido a mãe, de forma tão severa, era grande demais para que pudessem expressar sua gratidão a Deus. O homem que as salvara chorava copiosamente. Tudo pelo qual trabalhara a vida inteira para conseguir havia sido levado pela chuva. Sua esposa: jóia rara, mulher dedicada, boa mãe, havia sido levada pelas águas selvagens. D. Izabel. Izabel. “Minha Izabel”.
Sentados no catre improvisado, Seu Raimundo e as crianças olhavam o movimento do abrigo. A todo o momento, mais e mais pessoas eram trazidas pelos helicópteros. A maioria estava ferida, suja, desesperada. Médicos e enfermeiros corriam para lá e para cá, procurando aliviar as dores físicas. As dores na alma, naquele momento, só Deus poderia aliviar. Os sobreviventes também andavam de um lado para o outro, acompanhando as macas e padiolas que entravam a todo o momento pela porta principal. Procuravam reencontrar um parente, um amigo, um conhecido que fosse. Choro, tristeza, expectativa, bocas escancaradas em “por quês” repetidos aos gritos.
Em meio a todo este oceano de desesperança e lamúria, Seu Raimundo — o bravo Seu Raimundo — aninhava seus filhos, em silêncio, sobre o catre improvisado. Em sua cabeça, também havia vários “por quês” se acotovelando, todos querendo, exigindo, uma resposta.
De onde estavam, era possível ver a porta de entrada do abrigo, de onde entravam as macas e padiolas com as vítimas. Sempre que o resgate entrava com algum ferido deitado na maca, eram acometidos pela vontade de ver se não era D. Izabel. Logo desistiam. Izabel não sabia nadar e não havia possibilidade de ter sobrevivido àquela correnteza.
− Senhor! — alguém gritou. — Senhor, aqui! − Seu Raimundo olhou para dentro de uma das salas e viu um dos médicos a chamá-lo.
− Sim, doutor — disse, sem levantar.
− Preciso da sua ajuda, pode entrar aqui um minuto?
Seu Raimundo levantou-se devagar. Olhou para o filho e agarrou seu braço.
− Victor, não saia daqui. Cuide para que Emilly também não saia — o garoto o olhava fixamente, prestando atenção a cada letra que saía da boca do pai — Estarei naquela sala ali — apontou na direção do homem que o chamara.
Na sala havia quatro macas ocupadas e um colchão, estendido no chão. Sobre o colchão, uma das vítimas era atendida pelo médico.
− Preciso que o senhor segure esta bolsa de soro — disse o médico, colocando a bolsa na mão de Seu Raimundo — Cuide para que a agulha não saia do braço da paciente — indicou com o dedo o local onde a agulha fora inserida. O motorista acompanhou as indicações do médico com atenção — Irei à outra sala, pegar algumas luvas e agulhas novas e volto logo. O senhor pode fazer isto? — O homem de jaleco branco saiu antes que Seu Raimundo pudesse protestar.
A mulher no colchão estava muito ferida, com os braços cobertos por bandagens. A cabeça havia sido raspada, expondo um grande curativo. Seu rosto, inchado e ferido como se tivesse sido brutalmente espancado, não permitia qualquer identificação. Só era possível ver que se tratava de uma mulher por que ainda conservava o esmalte nas unhas dos pés. Seu Raimundo não queria olhar para seu rosto. Sentou na cadeira, com a bolsa de soro erguida, e procurou não pensar na mulher ferida à sua frente. Seus pensamentos voaram direto para sua antiga casa. Para os momentos em família, que trouxeram tanta alegria para sua vida. Voaram de encontro à imagem de Izabel. Lágrimas brotaram em seus olhos, fazendo-os brilhar.
Seu Raimundo assustou-se quando o médico tocou seu ombro, trazendo-o de volta à realidade.
− Obrigado, senhor. Pode me dar o soro.
− Ah… sim… claro! — Devolveu a bolsa de soro ao médico. Dr. Renato era seu nome. Seu Raimundo lera em seu crachá. Voltou-se para a porta e, ao tocar no batente, ouviu a mulher do colchão balbuciar:
− Rai… é você? — a voz era fraca, mas as palavras alcançaram seus ouvidos com clareza suficiente para serem entendidas.
Seu Raimundo ficou paralisado. O coração acelerou e ele virou-se devagar, sentindo um frio percorrendo o corpo. Só havia uma pessoa neste mundo que o chamava de Rai: D. Izabel. A sua Izabel.
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