Um dia hospedei o ódio...
Tarde da noite bateu em minha porta
e se dizendo sem abrigo pediu
para entrar...
Se instalou na poltrona da sala
e quando lhe ofereci
o quarto de hóspedes para descansar
disse que tinha vindo para ficar...
Sem saber o que fazer lhe mostrei
onde era a cozinha e ele,
sem se importar com o que eu dizia,
abriu a garrafa de whisky e a bebeu
quase de um gole...
Na manhã seguinte,
depois de quase não dormir,
encontrei-o lendo o jornal
e comentando as notícias:
esse Obama é um bunda;
devia encher de porrada o Irã,
mandar matar o Baghdadi,
califa do Estado Islâmico,
derrubar o Maduro, mandar a Dilma
para a escuridão,
depois comer a Merkel
e mandar o mundo se foder...
Saí de casa e a casa não saiu de mim,
o ódio veio comigo e levei anos
para compreender que não estava
indo a lugar algum, a não ser
o bom e velho abismo que chama
os que não tem para onde ir...
Ressabiado por tudo o que passei,
abri a porta
e lá estava a desconfiança,
acesa, olhar febril,
pediu para entrar e eu,
que não sei dizer não,
deixei que entrasse e se instalasse...
Confortavelmente se pôs a discursar
sobre as coisas da minha vida
como se me conhecesse alongo tempo,
era como se conhecesse todos
os carrapatos de um cavalo,
lhe disse que ia sair e ela me disse
que eu não devia,
o mundo lá fora estava uma porcaria,
as pessoas eram horríveis,
era preciso perguntar sobre
as intenções de todo mundo,
como teríamos certeza sobre
os rumos da política econômica,
ninguém sabia o que estava fazendo,
o governo afundava
por ter pessoas sem confiança,
o país iria à bancarrota,
adeus segurança, adeus fronteiras
bem guardadas,
ninguém merecia um voto de confiança,
nem ela, nem eu...
Saí de casa o mais depressa que pude
e ela veio comigo,
me deu o braço e me apertava,
desconfiada do que eu iria fazer,
andamos pela cidade e quando
encontramos uma multidão
que protestava diante do palácio
do governo por melhores salários,
discretamente me afastei e sumi
sem que ela pudesse me achar...
Hoje, quando me lembro dela,
me ajeito com minha confiança
e me sinto tranquilo e seguro...
Certa noite, em que a eletricidade
havia sumido dos fios,
três batidas na porta me assustaram,
me deixaram apavorado,
pensei que fosse começar tudo de novo, hesitei antes de abrir,
mas a boa educação me fez abrir
o trinco e...não havia ninguém...
Olhei a rua, os lados da casa,
nada havia ali, apenas uma certa brisa
que me fez arrepiar como se um frio vindo do sul me tocasse...
A luz voltou, apanhei meu casaco,
saí para ir até o bar tomar um café;
Preferi um chocolate quente,
xícara das grandes, fumegante...
No bar quase vazio um cara tocava
seu violão de maneira tranquila,
cantava uma canção que falava
de garotas perdidas
que encontravam o amor em seu braços,
as cordas de aço uivavam como lobos
numa montanha,
o clima me apanhou,
resolvi ficar mais um pouco,
alguém entrou no bar, uma mulher
dos seus trinta e poucos anos,
peguntou ao dono onde ficava
tal endereço e ele, me olhando,
disse a ela, é aquele,
é ele quem mora nesse tal endereço,...
Ela veio em minha direção
olhando em meus olhos,
sentou-se sem pedir licença,
quando começou a falar
percebi que já conhecia aquela voz,
era familiar,
como se fosse eu a porta
tocou em mim três vezes,
disse-me suavemente que me procurava
há muito tempo,
quer finalmente havia me encontrado,
ainda bem, disse ela,
só então compreendi
o que estava acontecendo,
algo havia mudado repentinamente em mim,
foi como se rompessem todos os diques
que há em nós
quando murmurou que quem
a havia mandado até mim, doce voz,
num sussurro que quase me incendeia
de tanto calor,
era ele, o senhor de todas as coisas,
o amor...
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