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Contos de Falken
Redfieldz

Resumo:
O destino é inexorável, Historia Reiss uma, jóvem demonóloga, encontra-se forçada a deixar sua vila. Na busca por um recomeço ela se depara com uma poderosa e obscura ceita que mudará sua vida.

Cap. 1 – A Viagem

E tudo começou na taverna. Ou pelo menos é isso que esperam que eu diga. Por que não? Toda boa estória começa em uma taverna, então por que não essa também? Porém essas estórias de tavernas são apenas isso: estórias. Contadas por guerreiros bêbados, ouvidas por bardos ainda mais bêbados, que por fim contam para pessoas completamente bêbadas. Valem tanto quanto aquela cerveja barata vendida no Hotel das Pulgas. Mas minha história não é simplesmente uma estória. É a realidade. Não só minha, mas de todo um continente. Eu tive a oportunidade, fui abençoada com a chance de acompanhar tudo bem de perto. Por isso que minha história não começa em uma taverna, mas sim em uma carroça.
Meu nome é Historia, Historia Reiss. Coincidência ou não aqui estou eu, Historia contando uma história. Eu nasci no norte, no extremo norte de Falkenlid, a capital do reino. Eu cresci em um pequeno vilarejo conhecido como Pasroe, que apesar de pequena era muito importante porque ficava aos pés do monastério dos monges de Falken.
Se eu dei a impressão que o monastério fica próximo da vila me expressei mal, ela era a última parada antes do Caminho do Peregrino, um percurso de no mínimo quatro dias sobre tempestades de neve em uma montanha íngreme conhecida por suas avalanches.
Minha vila é responsável pela entrega dos suprimentos ao monastério, suprimentos esses que vem de todo o reino. O que eu nunca entendi é porque os monges tinham banquetes espetaculares, que fariam até um rei sentir inveja e nossa vila não. Não me entenda mal, nós não passávamos fome, mas nem de perto comíamos bem. Alguns dias eram fartos, peixes, amoras de gelo, pão, muito pão, porco e javali, e quando estávamos com sorte um cervo das neves, mas outros podiam ser pobres, com apenas pão velho e duro acompanhado por mingau de trigo.
Os homens eram exímios caçadores, porém todos os cervos são do rei e apenas ele tem permissão de caçá-los. As crianças acordavam cedo porque todos tinham obrigações. Os mais jovens deviam espantar os corvos da plantação, enquanto os mais velhos ficavam responsáveis pelo plantio, pela colheita, pela caça e por todas as outras atividades da vila. Porém existia algo que todos faziam e isso era pegar lenha. Quando se vive tão ao norte assim, lenha não é uma opção, é uma necessidade. Mas logo depois das primeiras horas da manhã os corvos desistiam e então era possível brincar na floresta.
Porém, antes de continuar eu preciso explicar uma coisa. É algo sobre os Falkenes. Nós amamos nossa Terra e somos orgulhosos dela. É uma terra fria onde neva durante nove meses do ano e nos outros três o sol finge que aparece. Então cultivar é difícil, criar animais também, porém se esquentar é o verdadeiro desafio. Eu gosto do frio, adoro na verdade, porém ele pode ser mortal. Mesmo assim eu amo o inverno. Muito provavelmente devido ao Yule, nosso festival de inverno.
O festival acontece durante o solstício de inverno quando a noite é mais longa e também é meu aniversário. Nessa época a colheita já foi feita e está guardada nos depósitos, a maioria dos animais foram mortos e suas carnes salgadas, apenas alguns são deixados para procriar na primavera. Não podemos plantar e precisamos guardar todo o alimento para sobreviver ao nosso longo inverno. A maioria então pensaria que essa seria uma festa repleta de tristeza e falsas esperanças, mas não é. Nós comemos, bebemos, cantamos e brincamos, celebramos com prazer essa data porque o inverno pode ser longo, mas a primavera vai chegar.
Tudo começa enfeitando a cidade, as mulheres costuram laços gigantes e os pintam com cores fortes e expressivas, simbolizando a união do nosso povo. Os ferreiros fazem pequenos sinos que espalhamos pela cidade, para cantarem junto com o vento a canção do Grande Falcão. E o povo faz fogueiras nos jardins de suas casas, para iluminar a longa noite e aquecer nossos corações com a esperança de uma nova primavera.
Porém a maior celebração ocorre ao redor da estátua de Rana, Deusa das Águas. Nossa vila é a única vila de Falkenlid a adorar um dos imortais. É proibido pelos monges e eles não os chamam de imortais e sim demônios. Felizmente a única exceção a essa regra é Rana, pois ela é a guardiã dos oceanos, protetora dos navegadores a Dama da Água.
Nessa noite trazemos oferendas para a estátua e colocamos pequenos barcos de madeira, feito à mão, com nossos pedidos aos seus pés e deixamos até o amanhecer quando os mandamos para o oceano. E claro nos reunimos lá também para dançar, cantar, brincar, comer e beber, esse último muito!
Isso tudo foi para mostrar quem são os Falkenes. Um povo alegre e orgulhoso que ama sua terra. Eu quis deixar isso bem claro porque agora vem a parte difícil. Nosso lar é afetado por uma maldição. Ninguém sabe como começou, mas em uma noite simplesmente os mortos levantaram e nos atacaram. Foi uma loucura, ninguém sabia o que fazer ou o que estava acontecendo, mas mesmo assim conseguimos sobreviver. Porém na noite seguinte eles se levantaram novamente, e na outra também, e na outra e na outra. Toda a noite os mortos se levantam e tentam destruir nossa terra, por isso lutamos até o amanhecer quando eles finalmente desistem, mas sabemos que voltarão.
Então é aqui que voltamos para a minha história. No fim do inverno do ano 700 eu deixei minha terra natal e fui para o sul, para Erengard. Subi na carroça com nada mais que a roupa do corpo e uma mochila com um grimório, alguns reagentes e as poucas moedas que eu tinha.
- Tem certeza que quer fazer isso? – perguntou-me Lawrence o mercador dono da carroça.
- Claro que sim - respondi insegura.
Mas na verdade eu não tinha escolha. Eu fui exilada do norte pelos monges e já tinha estendido até o limite máximo minha permanência. De modo que só me restava ir para Erengard.
- Pois bem, então se já pegou tudo, se arrume no seu lugar e vamos começar a viagem, já perdi tempo demais aqui e preciso fazer minhas entregas dentro do prazo ou então serei penalizado e claro que vou cobrar de você – falou Lawrence com um tom apressado.
Ele é um mercador da Associação Cenariana, a guilda de mercadores de Erengard e para eles não existe nada mais valioso que tempo. Eles correm com suas mercadorias por todo o continente sem ficar nem um segundo a mais que o necessário para vendê-las e já partem para a próxima viagem.
Os cavalos responderam ao seu comando e começaram a puxar a carroça. Seguimos pela estrada local que era um pouco esburacada fazendo com que a carroça não pudesse ir muito rápido, porém menos de duas horas depois já estávamos na estrada real que leva até a capital, onde depois iremos pegar a estrada imperial direto para Erengard. O continente é divido por três reinos: Falken, Erengard e Aghatas. Três reinos distintos e independentes, porém Erengard começou uma guerra e conquistou os outros dois tornando-se um império. Falken e Aghatas ainda são reinos e possuem seus próprios governantes, mas são subalternos ao império.
- Você teve muita sorte por ter me encontrado tão ao norte, normalmente eu não passo de Falkenlid, mas não pude perder a oportunidade de vender minhas mercadorias aos monges quando soube que era disso que eles estavam desesperados por – disse Lawrence enquanto pegava uma obsidiana com a mão.
- E pagaram bem por elas, muito bem.
- Com isso finalmente vou poder abrir minha própria loja em Erengard, não serei mais um viajante e poderei contratar homens para fazer as viagens por mim enquanto faço meus negócios sem ter que sair da cidade.
- Se você diz... – respondi sem muito ânimo.
Eu tinha sido caçada, capturada, aterrorizada e por fim exilada de minha terra natal, e enquanto tentava processar todas as coisas que tinham acontecido ainda tinha que aturar um mercador tagarela que não parava de se gabar, mas eu precisava dele. Era o único jeito que tinha para sair do norte e já que ele tinha me oferecido a viagem de graça eu deveria suportá-lo, pois se fosse andando levaria semanas para sair do reino e com toda a certeza a paciência dos monges teria se esgotado e eles teriam me caçado novamente só que dessa vez iriam me executar.
Eu sou, segundo eles, uma Demonologista. Pratico a magia ensinada pelos “demônios” e por isso fui banida de Falkenlid. A questão que para mim eles não são demônios, mas sim seres imortais, deuses, que representam cada elemento do nosso mundo e que assim como os deuses reconhecidos oferecem sua benção a aqueles que os adoram. Eu confesso que os rituais são um pouco complexos e algumas vezes é necessário fazer algumas coisas que... bem, não são muito bem vistas, mas isso depende mais do bruxo do que do imortal. Tudo tem um preço, se pedimos algo simples então não será muito caro, mas se pedimos por algo raro, por algo importante, é claro que temos que pagar com a mesma moeda.
Essa é a base da magia dos imortais. Em troca do poder, pagamos um preço. Só que isso difere da magia rúnica usada pelos monges. Nela eles acumulam poder em cristais que por fim são usados no momento em que desejam liberar o feitiço. É um modo de usar a magia, não um modo que goste muito, mas ainda sim funciona e é bem poderosa. Só que agora eles inventaram que é a única maneira correta de usar magia, pois ela foi ensinada pelos deuses e são livres da corrupção, enquanto a magia ensinada pelos imortais pode ser tentada e acaba por corromper a alma do bruxo.
De todo modo aqui estou eu, com 15 anos de idade indo para Erengard numa carroça de um mercador que não para de falar. Só que eu ainda tinha algo mais a me preocupar. Ouvir falar que os erengardianos eram bem abertos com os outros povos e que se misturavam facilmente, mas não sabia quanto daquilo era verdade e para piorar a situação a relação entre Falkenlid e Erengard não andava muito bem.
Devido ao ataque dos mortos o reino do norte agora se encontrava em guerra, por isso precisava de todos os recursos e homens disponíveis, coisa que incomoda o Império. E isso me preocupava porque não sabia como a população iria reagir a uma falkene indo morar em sua capital.
Meus pais eram falkenes, assim como os pais deles e os pais deles, minha linhagem por inteira é falkene, de modo que eu nunca conseguiria me passar por uma erengardiana. Com 15 anos já tinha o corpo bem desenvolvido, era relativamente alta até para minha região, porque já media cerca de 1,75m de altura. Porém o que me destaca são meus cabelos vermelhos. Nascida sobre a sombra de uma lua de sangue é o que dizem.
Eles são de um tom ruivo escuro com um brilho cobre, lisos e com leves ondulações nas pontas. Além disso, meus olhos são de um azul céu raro até mesmo entre os falkenes que geralmente possuem olhos azuis escuros.
Já em Erengard as mulheres são mais baixas, raramente chegam a 1,70m e por mais que existissem famílias misturadas entre os dois povos o tom vermelho do cabelo é único dos falkenes de puro sangue. Então não, não existia possibilidade de me passar por um deles, porém eu não tinha outra escolha.
Lawrence continuou a se gabar por toda a viagem, não sei o que ele queria com isso, se era me impressionar ou se simplesmente seu ego era tão grande assim, mas por sorte ele não quis parar em Falkenlid, sabia um caminho que contornava a capital e saia direto na estrada real e isso iria nos poupar tempo e iria, felizmente, diminuir o nosso tempo juntos.
– Sou um dos poucos que conhece esse caminho, se tivéssemos que parar na capital teríamos que esperar horas pela inspeção da mercadoria, mais algumas outras para cruzar a cidade e provavelmente só na manhã seguinte que estaríamos de volta ao caminho – falava ele com tom de superioridade.
Pelos imortais ele não para de falar... nunca cansa. Seja dizendo que conhece todos as vantagens para os mercadores, ou que conhece alguém importante que deve favores a ele, ou seja, lá mais o que ele resmunga pra si próprio. Porém confesso que gostei da ideia de evitar Falken, gostei até ver o começo do atalho. Não parecia uma boa ideia, muito escuro, cercado por uma floresta alta e densa, onde cinquenta bandidos poderiam se esconder a três metros da estrada e seria impossível vê-los antes que fosse tarde demais, infelizmente não podia falar nada, afinal já estava ali de graça.
Pouco mais de uma hora depois de pegarmos o atalho começou a nevar forte, por mais que ainda não fosse uma nevasca deixava mais difícil ainda enxergar alguma coisa. Essa floresta era conhecida por ter algumas fontes termais, e quando a neve caia sobre elas uma neblina espessa subia.
Agora ele estava com medo, não disse nada mais pude sentir. Finalmente estava calado, segurando firme as rédeas dos cavalos com uma mão e com a outra checava constantemente um punhal que eu sabia que escondia na cintura. O problema era que ele estava certo em ter medo.
Logo que a neblina subiu começamos a ouvir passos na floresta. Passos rápidos que pareciam nos acompanhar. Imediatamente Lawrence fez os cavalos irem mais depressa. Eu tentei dizer que era uma má ideia, mas foi tarde demais, pois de fato havia bandidos nos perseguindo e eles tinham derrubado uma árvore no meio da estrada.
Foi rápido, bem rápido. A árvore estava logo depois de uma curva, de modo que com a neblina era impossível saber que ela estava lá. Lawrence gritou e puxou as rédeas tentando desviar a carroça, mas levou os cavalos em direção a floresta densa e se chocaram com as árvores.
Eu consegui pular um pouco antes do impacto de modo que caí com força no chão, mas estava bem e rapidamente fiquei de pé, Lawrence não teve tanta sorte. Os cavalos pararam, mas a carroça empurrou eles fazendo tudo se chocar contra as árvores. Eu pude vê-lo sendo lançado e acertando em cheio uma pedra grande mais a frente. Ele estava vivo, mas tinha sangue escorrendo no rosto e parecia bem atordoado.
Foi aí que eles atacaram. Saíram da floresta uivando como lobos sentindo o cheiro de sangue. Estavam bem perto do mercador e ele logo foi controlado. Um cavalo tinha se ferido gravemente porque no choque um galho tinha perfurado sua barriga e o deixado preso empalado entre uma árvore e a carroça. Ele fazia um barulho terrível e dava coices sem parar. Bastava que pegasse de raspão no rosto de um homem e acredite, ele não ia se levantar mais.
Eu vi os bandidos evitando o cavalo machucado, dominarem o outro que estava bem, e vindo na minha direção. Eu poderia correr, mas não iria muito longe. Eles conheciam a floresta, eu não, além do mais podia haver mais homens nos cercando e eu não queria provocá-los ainda mais. Assim apenas fiquei quieta. Dois deles me cercaram apontando lanças para mim.
- Vejam só que dia de sorte - disse o bandido mais velhos que estava perto de mim. Eu mal podia ver seu rosto porque tinha uma barba grande, farta e bem grisalha e usava um capuz meio rasgado que cobria ainda mais sua face, mas podia sentir seu bafo. Dava para saber que ele tinha bebido bastante, talvez para dar coragem porque na verdade não eram tantos assim.
O medo fez a maior parte do trabalho. Os passos nos fez pensar que eram muitos e a armadilha estava tão bem posicionada que só bandidos experientes poderiam ter feito isso, porem esse não era o caso. Enquanto era cercada vi que na verdade a árvore não tinha marcas de machado, ela parecia ter simplesmente caído ali por puro azar e os homens pareciam muito nervosos.
Eram quatro, o mais velho na minha frente com a lança parecia aliviado, mas o que estava dominando Lawrence e o outro que segurava o cavalo não.
– Ele tem um punhal - gritou o homem que segurava o mercador, e então tentou, desajeitadamente tomá-lo, porém Lawrence agora tinha se recuperado do choque e viu uma oportunidade.
Mordeu a mão do bandido que o segurava e já estava sacando o punhal. Eu tenho que confessar que ele foi muito rápido. Sacou o punhal e enfiou na barriga do bandido e depois o puxou pra cima abrindo um corte do umbigo até o pescoço. Fiquei surpresa, ele não era muito alto, mas seu corpo era robusto e seus braços eram tão largos como troncos. O golpe foi tão forte e feroz que pude ouvir as costelas do bandido se partindo enquanto o punhal abria caminho até seu pescoço.
O sangue jorrou do ferimento e cobriu o rosto de Lawrence que gritava enquanto ia se levantando. O homem que segurava o cavalo estava chocado e não se mexia, os outros dois esqueceram de mim por um momento e se preparavam para investir contra Lawrence... grande erro.
Eu tinha ficado quieta desde o começo, não me mexia, mas estava murmurando algumas palavras, encantos para minha magia.
– Espíritos me emprestem seu poder, eu sou a serva da Deusa das águas e os invoco para me ajudar.
- Maledixit sanguis. Duratus inimicis meis - e minhas mãos estavam frias, muito mais que frias estavam congelando, e quando os bandidos viraram as costas para mim eu envolvi as duas mãos no pescoço do mais velho.
O outro não viu e correu em direção ao mercador, mas o mais velho estava morto. Eu não sou tão poderosa a ponto de matar um homem tão rápido assim, mas ele não prestou atenção em mim e era lento. Por isso consegui colocar minhas mãos em seu pescoço e o congelei. Ele se engasgou no começo e até se debateu, mas morreu tão rápido que o único movimento que fez foi desabar sem vida no chão. Seu rosto estava com uma expressão de surpresa e seus olhos já estavam sem brilho.
Nesse momento Lawrence já estava de pé completamente ensanguentado e de frente para os últimos dois homens. O que segurava o cavalo olhou para trás e viu seu companheiro avançando em direção ao mercador, mas também viu o outro no chão e ficou completamente aterrorizado. Um tinha sido estripado e o outro estava misteriosamente morto, por isso ele fugiu se virou e correu sem olhar pra trás. O último que sobrou percebeu que estava sozinho e parou a alguns passos de Lawrence que o encarava com um olhar lupino.
Havia muito ódio ali. Aqueles bandidos haviam destruído sua carroça e por consequência sua preciosa carga. Agora ele não teria mais lucro, não abriria mais sua loja na cidade e continuaria fazendo essas viagens. Ele agora estava tomado pela raiva caminhava lentamente na direção do último bandido.   
Enquanto ele decidia se corria ou lutava Lawrence saltou para frente e deu um grito alto e forte, no susto o bandido pulou para trás e morreu. Eu tinha pego a lança do homem que acabara de matar e estava preparada atrás do último com ela apontada para sua coluna e quando ele saltou eu estoquei. Senti a lança perfurar pele, carne e atingir o osso. Ele gemeu e eu torci a lança fazendo-o gritar.
Aquela não foi a primeira vez que matei alguém, mas foi a primeira vez consciente. É difícil, as pessoas se agarram a vida desesperadamente e não querem largar, demoram para morrer e quando estão nas mãos de alguém inexperiente como eu é pior ainda. Eu sabia que se cravasse a lança no seu coração ele não iria se mexer mais, porém na hora é tudo confuso. Só existe medo, sangue e gritos de dor, por isso não consegui raciocinar.
Ele se contorceu desesperado e caiu no chão me levando junto. Ainda estava segurando a lança e a usei como apoio para não cair por cima dele. Empurrei-a mais fundo fazendo ela o atravessar e cravando-a no chão. Mas ainda assim ele não estava morto. Claro que ia morrer, mas se contorcia e gemia e eu não sabia mais o que fazer para matá-lo, até que Lawrence enfiou seu punhal na sua nuca e ele finalmente morreu.
Pareceu fácil, mas não foi tanto assim. Minha memória também não é perfeita. Provavelmente estava tremendo e por mais que tenha dito que estava quieta não tenho certeza. Mas lembro que estava com medo, que recitei o encanto e matei aqueles dois homens.
- Filhos da puta... – falou Lawrence enquanto limpava o sangue do rosto.
Ele também estava chocado. Olhou para as mãos e depois para o resto do corpo e se viu coberto de sangue. A maioria era do bandido que tinha estripado, mas ele tinha um grande corte na cabeça que continuava sangrando. Olhamos em volta para compreender tudo que tinha acontecido. A carroça estava quebrada, uma das rodas da frente tinha se partido e uma das hastes que cercavam os cavalos estava enfiada em um dos animais que agora estava morto.
As mercadorias tinham se espalhado e muitas estavam quebradas. Eram poções que ele havia trocado com os monges. Os líquidos coloridos e viscosos se misturavam no chão. Todas eram poções brancas, voltadas para ajudar as pessoas, algumas de cura outras tornavam as pessoas mais fortes, mais rápidas ou permitiam que enxergassem no escuro. Das oito caixas apenas duas tinham sobrevivido ao impacto.
- Filhos da puta... – falou Lawrence novamente.
Tinha tido muito lucro na negociação com os monges e agora quase tudo estava perdido.
- O que você está fazendo? – ele perguntou quando me viu me aproximando de uma das caixas que não estava quebrada.
- Procuro uma poção cicatrizante, ou você prefere sangrar até a morte? – falei enquanto apontava para o corte em sua cabeça.
- Não vou gastar o pouco que me sobrou com isso, essas poções foram às únicas que sobraram e a Associação espera que eu entregue lucros.
Ele usou o punhal para rasgar uma tira da camisa de um dos mortos e estava para usar como uma bandagem básica.
- Espere – eu disse.
Olhei em volta procurando uma erva. Nunca estive nesse bosque antes, mas a ginseng branca é bastante comum em Falken. Como imaginei consegui encontrar algumas plantas e as arranquei com cuidado para preservar a raiz. Peguei um porrete que estava com um dos bandidos, coloquei a bandagem improvisada em cima de uma das tábuas que tinham se soltado da carroça e comecei a moer a raiz em cima. Essa erva tem propriedades cicatrizantes é na verdade um dos ingredientes da poção dos monges e logo ela liberou um líquido viscoso que deixei encharcar a bandagem e depois a envolvi ao redor da cabeça do mercador.
Ele agradeceu e logo se levantou para começar a arrumar as coisas. Acabamos de sobreviver a uma emboscada e ele não queria ficar para a próxima, nem eu, mas então escutamos algo. Eram aplausos, e aquilo foi muito estranho, pois era a última coisa que esperava ouvir, mas subitamente a floresta ecoava com aplausos, e então mais homens apareceram.
- Bravo, bravo! – ouvimos.
- Nunca imaginei que algo assim iria acontecer, porém todo dia é normal até que algo excitante acontece – falou um homem grande que tinha acabado de passar pelas árvores.
Usava uma armadura completa, um casaco de couro com uma cota de malha por cima. Suas botas eram reforçadas com tiras de metal e na sua cintura pendia uma espada e um machado. Sua expressão era de zombaria, estava rindo de braços abertos. O elmo de metal que tinha cobria parte do seu rosto, mas como as placas faciais estavam abertas era possível ver seus olhos azuis e o nariz arrebentado. Ele aplaudiu novamente.
- Parabéns!
- Eles escolheram o lugar certo, mas fizeram todo o resto errado – falava enquanto apontava para os bandidos mortos
- E agora estão mortos – ele parou a alguns metros de nós, não tinha sacado suas armas, mas devido a seu tamanho tinha uma presença ameaçadora.
Outros homens surgiram da floresta, mas nenhum deles estava tão bem equipado como o grandalhão.
- Merda – resmungou Lawrence.
Eu olhei para ele e vi o desespero. Acho que ele estava em dúvida se atacava e torcia por uma morte rápida, ou se aceitava ser levado como prisioneiro, porém antes dele poder decidir algo uma flecha se cravou apenas centímetros ao lado do seu pé.
- Vocês foram bem, mas agora acabou.
- Guarde essa faca de estripar peixe e aceite seu destino – falou o brutamontes encarando Lawrence.
- E você mocinha largue a lança e não tente nada com essas mãos – disse com um tom de zombaria.
Não podíamos fazer nada então largamos as armas, mas um dia como aquele que começou com matança, se tornava ainda mais estranho. Não fomos amarrados, eles meramente tomaram nossas armas, mas nenhum fez a menção de nos prender
- Lucius o Frio, é como eu sou chamado e sou o líder desses homens.
- Essa floresta é nossa e tudo e todos que entram nela também, mas por hora vocês são nossos convidados – terminou ele estendendo a mão em minha direção.
Fiquei parada por alguns segundos, estava confusa e ainda processava tudo que tinha acontecido, mas tomei sua mão e Lawrence em silêncio nos seguiu.
- Qual o seu nome? – me perguntou Lucius e só agora percebi quão rouca era sua voz.
Eu ainda não tinha me recuperado da surpresa, e só agora do lado dele que prestava atenção aos detalhes. Além de enorme ele era forte, muito forte, por cima da armadura os seus braços estavam repletos de braceletes de prata usados por guerreiros falkenes. Sua armadura estava em boa condição, mas era possível ver alguns remendos e seu elmo tinha uma mossa no lado direito. Seus olhos eram azuis e seus cabelos num tom loiro bem claro, mas agora que estava bem perto pude ver uma cicatriz enorme no seu pescoço, por isso a voz rouca imaginei.
- Me chamo Historia Reiss – tentei responder com firmeza
- Para onde estão nos levando? – ele bateu levemente na minha mão.
- Tudo a seu tempo querida...
- Então Historia Reiss conte-me sua... história – ele falou achando graça.
- Como conseguiu derrubar aquele homem? – não quis falar a verdade, mas seus olhos me diziam que ele entendia alguma coisa do que tinha acontecido, por isso fui franca.
- Sou uma demonologista, ou pelo menos é assim que os monges me chamam – falei lentamente tentando parecer calma.
- Conheço algumas magias e através delas fui capaz de congelar o pescoço daquele homem, mas devo avisar que outras coisas congelam ao me tocar – tentei usar o tom mais ameaçador o possível e até que funcionou em alguns homens, mas não com Lucius que gargalhou alto.
- Eu gosto de você História, uma jovem moça que não tem altura suficiente para chegar aos meus ombros, mas que não teme na hora de usar um tom ameaçador.
- Não se preocupe que ninguém irá tocá-la, pelo menos até eu decidir o que farei com você.
Foi aí que ele me surpreendeu novamente. Não imaginei que um homem daquele tamanho pudesse ser tão rápido, mas ele se virou como um raio e me agarrou pelo pescoço com uma das mãos me levantando do chão. Eu tentei me livrar, mas nada que eu fazia parecia importar então ele me trouxe para perto e me olhou bem nos olhos. Foi aí que entendi o nome dele. Lucius o Frio... o seu olhar congelou meu sangue e minha alma, ele parecia um demônio, algo que seria capaz de me trucidar em um segundo sem sentir qualquer remorso.
- Lhe avisarei apenas uma vez – falou ele calmamente.
- Tente qualquer coisa e eu prometo lhe mostrar um mundo de dor. Eu estriparei você, mas não antes de arrancar a pele em volta de seu abdômen e puxar até o topo da cabeça fazendo um casulo onde deixarei você sufocar dentro, só que antes de você morrer eu lhe rasgo ao meio com minhas próprias mãos – eu acreditei em cada palavra e bastou apenas ele olhar rapidamente para Lawrence para ele acreditar também.
Ele me soltou, caí de joelhos e levei as mãos ao pescoço enquanto tossia. Ele me ajudou a levantar e tinha voltado para o olhar debochado de antes.
- Vocês hoje ganharam a honra de jantar comigo, por isso podem ficar tranquilos, não morrerão hoje, mas como o futuro é um mistério sugiro que vocês comam, bebam e dancem como se não houvesse amanhã.

Cap. 2 – Dama da Noite

Caminhamos por algumas horas pela floresta até chegar numa clareira. Era o acampamento daqueles homens e sinceramente fiquei surpresa. Era enorme com tendas bem feitas e bem organizadas, divididas por tamanho com pequenas ruas entre elas. No centro do acampamento havia uma tenda maior que eu assumi ser de Lucius e em frente a ela um círculo formado por troncos que assumi ser o local de reunião, porém o mais surpreendente era que o acampamento tinha uma paliçada. Era de madeira, mas era bem feita, tinha alguns trechos com espaço para arqueiros e pequenas torres de observação nas quatro direções. O portão também era de madeira e tinha espigões para cravá-lo no chão e mantê-lo fechado quando necessário.
Lucius acenou para os homens dentro da fortaleza e eles logo abriram o caminho. Lá dentro fomos levados para o centro do acampamento onde logo as pessoas tomavam seus lugares. O que também me impressionou foi que não havia apenas homens, mas mulheres, crianças e idosos. Um vilarejo cercado escondido no meio de uma densa floresta, liderado por um homem assustador, mas que quando em frente ao seu povo logo abriu um sorriso contagiante e trazia felicidade para todos ali a sua volta.
Aquele era um homem fácil de gostar. Não me leve a mal, eu ainda morria de medo dele, mas naquele momento olhava para uma pessoa que não pensaria duas vezes antes de querer sua amizade. Depois de um momento barulhento enquanto Lucius cumprimentava todos, ele levantou sua mão e fez menção para que todos ficassem em silêncio. No meio de tudo estava eu, Lawrence e o bandido que tinha fugido.
- Hoje como vocês sabem testamos a capacidade do grupo que encontramos perambulando em nossa floresta, porém eles provaram que não são nada mais que meros assaltantes que não tem coragem e capacidade de fazer um trabalho bem feito – ele falava alto com os braços abertos olhando para cada homem a sua volta.
O sobrevivente estava acuado, com os ombros e cabeça baixa e era possível ver algumas lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Lucius se voltou para ele e o observou. Novamente vi aquele olhar frio e soube o destino daquele rapaz. Ele agarrou sua cabeça, e o suspendeu por ela. Ele gritou implorando por misericórdia, mas eu acredito que Lucius nunca soube o significado disso.
- Eu não preciso de fracos aqui! - ele gritava agora.
- Nosso povo é forte e nós continuamos aqui por causa disso e ninguém pode se livrar de nós!
- Essa terra é nossa e nós a tomamos porque podemos! – o público gritava com cada palavra dele.
- Por isso seu verme, você não merece ser um de nós – Ele simplesmente girou a cabeça do rapaz quebrando seu pescoço e então deixou o corpo sem vida cair no chão.
As pessoas foram ao delírio gritando aprovações a Lucius.
- Tirem esse verme da minha presença – falou ele apontando para o corpo.
- E agora eu apresento a vocês, esses dois – ele se virou e apontou para nós.
- História Reiss, a garota capaz de matar um homem com o seu toque, e... – ele fez um meneio com a cabeça para Lawrence.
- Craft Lawrence – respondeu Lawrence sem muita vontade.
- Um mercador que saber cortar um homem tão bem como vender sua mercadoria! - Todos estavam rindo, ninguém estava impressionado conosco, mas acredito que também não era essa a intenção de Lucius, porém foi o suficiente para que ninguém nos importunasse.
Logo trouxeram comida. Desde frutas selvagens a carne de javali e até de cervo. Comemos bem e a cerveja era muito bem feita. Eu decidi me entregar e comi e bebi o que pude, afinal não sabia se viveria para o amanhã, mas Lawrence se resumiu a comer e beber apenas o suficiente para que Lucius não se incomodasse.
A noite passou rápido, eu não estava bêbada, mas já estava tonta e se não estivesse me segurando estaria falando besteira. Eu fiquei observando o povo e como aqueles bandidos tinham desenvolvido sua vila. Eu ainda os observava quando notei uma pessoa. Ela se erguia no meio da multidão. Usava um manto negro, porém o mais estranho foi que não lembrava de tê-la visto antes. Aos poucos as pessoas ao seu redor a perceberam e começaram a abrir espaço e se ajoelhar perante ela.
Lentamente ela caminhou na nossa direção, nesse momento todos tinham notado sua presença, até Lucius que inclusive se levantou de sua cadeira e se ajoelhou sobre um joelho.
- Dama da Noite – ele falou suavemente.
Eu também tinha me ajoelhado, camponeses sabem que nunca devem faltar com respeito a um nobre e nesse caso se Lucius, que eu considerava ser o maior poder nesse lugar, se ajoelhou eu deveria fazer o mesmo.
- Lucius meu querido amigo, não precisa disso, levante-se por favor - só agora que ela estava bem perto que percebi que era uma mulher.
Alta e esbelta tinha cabelos e olhos negros semelhantes ao seu manto. Ela tinha tirado seu capuz quando se aproximou de nós e eu pude ver que usava brincos de pratas em um formato familiar, mas que não lembrava o significado. Seu rosto era fino com olhos e nariz afiados e por mais que sua voz desse uma impressão de alguém mais madura não havia rugas no seu rosto. Porém sua característica mais marcante era a força de seu olhar, mesmo Lucius tinha o cuidado para não encará-la desnecessariamente.
- Eu venho hoje porque tenho um pedido a lhe fazer, um favor, poderia dizer – falou ela com o sorriso leve, mas com um tom que sugeria que ela não aceitaria ser negada.
- Minha cara Dama da Noite, não existe nada que me deixe mais feliz nesse mundo do que poder servi-la, diga o que precisa e se estiver em meu poder será seu – Lucius respondeu ainda de joelhos.
Seu tom era suave e educado, aquele homem tão espalhafatoso com seu povo e teu aterrorizador aos meus olhos aparentava agora um comportamento completamente submisso.
Ela sorriu levemente, mas mesmo com tamanha educação dos dois lados era possível sentir uma tensão.
- Jaken, eu preciso da ajuda dele – ela falou e deixou suas palavras no ar por alguns segundos.
- Apenas por algumas semanas e depois prometo que o devolvo.
- Seu desejo é uma ordem minha senhora.
Ele não precisou falar mais nada e um homem surgiu por trás de nós. Ele andou até ela e se ajoelhou.
- Dama da Noite, é uma honra poder servi-la.
Eu não o tinha visto até agora, era um homem moreno, com os cabelos pretos e um físico magro, porém forte. Não tive tempo de observá-lo direito porque Lucius falou apressadamente.
- Ele é todo seu por quanto tempo precisar minha dama, porém eu tenho um pedido a lhe fazer – ele agora estava se levantando e toda aquela pompa e educação tinha ido embora.
Ele tinha assumido uma postura mais forte agora e isso me fez compreender que a tensão que sentia antes não era pela submissão e sim que aquilo tinha sido estranho para ela. Ainda sim acredito que ele não tinha interesse em contrariá-la, mas tenho certeza que ele também não se enxergava como um subalterno.
- Independente de sua decisão saiba que Jaken estar a sua disposição, mas se a senhora encontrar a benevolência de me fazer esse favor eu seria muito mais do que grato – as palavras educadas eram ditas agora com um tom de zombaria.
Ela o olhou por alguns segundos avaliando sua postura. Não me pareceu muito satisfeita, mas decidiu deixá-lo terminar fazendo um maneio com a cabeça.
- Esta é Historia Reiss - disse ele apontando para mim.
- Uma demonologista que encontramos na nossa floresta, gostaria de lhe pedir, se possível, que a aceite como sua aprendiz.
Eu fique sem palavras. Nunca a tinha visto antes, mas já tinha ouvido seu nome. Dama da Noite, a mais poderosa e perseguida demonologista do Império. Já estava surpresa pelo fato de tê-la encontrado aqui, mas depois da sugestão de Lucius não sabia nem o que pensar.
Ela o encarou por alguns segundos depois virou seu olhar para mim e senti meu fôlego indo embora. Ela me encarou por alguns segundos me avaliando.
- A quem você serve jovem?
Demorei alguns segundos para responder porque estava recuperando o fôlego.
- À Rana minha senhora - e então hesitei.
Havia um segundo nome que eu teria que dizer, porém não queria dizê-lo. Por um piscar de olhos eu interrompi minha fala e então ela se aproximou. Subitamente ela tinha vindo na minha direção e parado a menos de um passo de mim, mas ela estava diferente, parecia maior, tinha uma aura negra estranha ao seu redor, sua pele estava mais pálida e seus olhos mais ferozes. Então eu vi sua mão, só que seus dedos não eram dedos e sim garras e ela as usou para perfurar meu abdômen. Seu braço me atravessando e eu pude senti-la contorcer minhas entranhas.
A dor foi excruciante. Eu não podia gritar simplesmente porque não existia mais força no meu corpo. Ela continuou me olhando friamente enquanto a vida dos meus olhos ia desaparecendo. E com mais um piscar de olhos tudo tinha voltado ao normal. Ela estava novamente na frente de Lucius olhando pra mim, todos em volta pareciam normal e nada tinha acontecido comigo, porém eu senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto.
- E Iphitriz... – falei quase sussurrando.
Eu não sabia direito o que tinha acontecido. Fora um sonho, a bebida, minha imaginação... Seja o que for eu preferi não arriscar e decidi falar a verdade.
- Não – ela respondeu.
- Não tenho tempo para isso agora, uma aprendiz dá muito trabalho.
- Ainda mais, ela iria morrer como todas as outras.
- Eu peço, por favor, que a senhora reconsidere meu pedido, ela poderá lhe ser útil – Lucius começou a falar mais foi interrompido por ela.
- Útil!?
- Como essa criança poderia me ser útil!? – havia raiva agora em sua voz.
- Ela não passa de uma jovem camponesa que provavelmente nunca saiu de seu vilarejo antes.
- Não conhece nada do mundo e não pode me oferecer nada que eu já não tenha, então me diga como, meu querido Lucius, como essa garota estúpida me poderia ser útil – ela não tinha elevado sua voz, mas era perceptível o desprezo em suas palavras.
Ele estava em silêncio, provavelmente procurando um argumento para convencê-la, mas eu não lhe dei uma chance.
- Sim eu sou inútil - eu disse simplesmente.
- Muito jovem e muito inexperiente, nunca saí do meu vilarejo antes e não sei nada que a senhora já não saiba, porém eu acredito sim que posso lhe oferecer alguma coisa.
Ela apenas me observava, ficou em silêncio esperando o que tinha para dizer.
- Minha lealdade absoluta – disse com firmeza.
- Eu agora não tenho serventia nenhuma, mas se a senhora me oferecer apenas a oportunidade de ser alguma coisa eu lhe prometo que sempre lhe servirei.
- Apenas peço que me dê uma chance, não precisa me ensinar passo a passo basta me mostrar o caminho que seguirei com minhas próprias pernas – eu falava com toda a convicção do mundo pois eu sentia que essa era a minha chance, minha chance de conseguir algo melhor para mim.
- Por que? – ela me perguntou.
- Por que você quer isso?
Eu fiquei alguns segundos em silêncio, mas já sabia o que tinha ia dizer.
- Estou cansada...
- Cansada de deixar os outros controlarem o meu destino. Os monges fizeram isso quando me exilaram do meu lar. Lucius fez o mesmo quando me capturou, e mesmo se tivesse chegado a Universidade de Erengard provavelmente alguém teria feito isso também.
Ela continuava me encarando avaliando minhas palavras, me observando de cima abaixo medindo meu potencial acredito.
- Você diz que não quer ninguém controlando seu destino, mas se me oferecer sua lealdade absoluta eu serei a senhora do seu, para sempre estarei no comando da sua vida.
- Melhor alguém da minha escolha que deixar outro tomá-lo novamente – respondi.
Novamente ela ficou em silêncio apenas me observando. O peso do seu olhar era enorme, me fazia querer evitá-lo e apenas me encolher no meu lugar, mas decidir sustentá-lo. Eu tinha que provar a ela que merecia ser sua aprendiz.
- Não – ela respondeu friamente.
- Você não sobreviveria, não vale a pena desperdiçar meu tempo com você – ela se virou para Lucius quando terminou.
- Jaken vem comigo e ela fica com você.
- Use-a enquanto é jovem e depois deixe-a aos lobos, ela não tem serventia além disso.
- Não – ele falou para o meu choque, mas não foi Lucius que disse isso e sim Jaken, ele tinha se levantado e agora a encarava.
- Eu dou a ela meu voto de confiança – disse ele para a minha surpresa.
- Sim eu concordo que agora ela não tem muita serventia, mas eu acredito que ela pode se tornar algo útil no futuro.
A Dama da Noite ficou apenas em silêncio. Fitou Jaken por alguns segundos depois virou para mim.
- Por que você dá a ela o seu voto?
- Lucius é o que gosta das garotinhas...
- O que lhe atraiu nessa – ela perguntou com desprezo fazendo Lucius soltar um risinho.
Ele se virou para mim. Seus olhos castanhos me encaravam com frieza.
- Nós a emboscamos, nossos homens a surpreenderam e tinham dominado seu companheiro.
- Tudo que ela tinha estava perdido e eu imagino que para uma linda jovem ficar à mercê de bandidos deva ser algo assustador, mas ela manteve a calma.
- Fez com que eles não a vissem como uma ameaça e foi aí que ela agiu, matou o primeiro deles congelando o seu pescoço com as próprias mãos, em silêncio para não alertar os outros.
- Em seguida se posicionou para tirar a vida do segundo, e durante todo o tempo não houve um segundo de hesitação, ela sabia o que deveria fazer e como deveria fazer para subjugar seus inimigos e executou seu plano perfeitamente.
- É raro alguém nascer com esse dom.
O silêncio pairou no ar. Lucius alternava o olhar entre Jaken e a Dama da Noite e os dois me encaravam. Eu não conseguia sentir emoção alguma no olhar de Jaken, eram apenas olhos frios que não traiam o que ele pensava. A Dama da Noite por outro lado mostrava que estava ponderando os argumentos. Ela se aproximou de mim e começou a andar em minha volta. Ela passou as mãos pelos meus cabelos, tocou meu rosto e para minha surpresa parou na minha frente e me deu um beijo.
Eu continuava em choque, mas fechei os olhos. Seus lábios eram macios, mas eram frios. Suas mãos encontraram meu rosto e o seguraram gentilmente. Seus lábios se moviam suavemente acariciando os meus até que ela mordiscou o meu lábio inferior apenas o suficiente para fazer um pequeno corte e lambeu o sangue que escorreu.
- Eu a aceito como minha aprendiz Historia Reiss, porém eu vou lembrá-la de suas palavras – falou isso e levantou três dedos.
- Eu não lhe ensinarei passo a passo, eu não me responsabilizarei por sua vida, eu apenas vou lhe mostrar o caminho e você deve seguir – falou baixando um dedo de cada vez.
- Se você for forte o suficiente será capaz de traçá-lo, se não morrerá e eu não perderei um segundo enterrando-a, deixarei que os corvos se alimentem dos seus olhos e os vermes de sua carne, eu não lhe ofereço nada mais do que apenas lhe mostrar um caminho e você deverá segui-lo aceitando todo o risco.
- Eu aceito minha senhora, aceito e estou eternamente grata por essa oportunidade – falei humildemente.
- Prometo que minha lealdade será sua por toda minha vida e depois – terminei essas últimas palavras me ajoelhando.
- Pois bem, já demoramos demais por aqui – Disse ela mudando para um tom mais simpático.
- Jaken traga ela com você, sabe onde me encontrar.
- Lucius – ela respirou fundo quando disse o seu nome.
- Ela é minha agora, você tem o direito de no futuro cobrar a ela esse favor, mas só sobre a minha autorização.
- Eu não peço nada mais que isso minha senhora – disse ele humildemente.
- Claro que não – ela sorria enquanto olhava para ele.
- Meu tempo aqui já se esgotou, eu os aguardo, não me deixem esperando – então ela simplesmente passou por nós, andou em frente e desapareceu nas sombras.
Todos estavam olhando para mim inclusive Jaken. Eu estava atordoada ainda processando a informação até que Lucius quebrou o silêncio.
- O que está esperando?
- Vá com ele! – ele gritou e apontou para Jaken.
Ele me deu um sorriso enquanto eu partia. Pouco sabia que aquele favor ia cobrar um preço caro no futuro. Muitas vezes eu me pego pensando nisso, se tivesse apenas um vislumbre de como as coisas iriam acabar eu poderia ter evitado tanto...
Nessa época eu era apenas uma criança tola sendo jogada de um lado para outro, dependendo dos outros e não fazia ideia de como isso iria me perseguir.
De todo modo não adianta pensar nisso agora, o que foi já foi, e eu fui atrás de Jaken. Paramos perto de uma tenda que eu assumi ser dele. Com poucas palavras ele me mandou esperar enquanto entrava. Não demorou muito até que ele estivesse de volta com duas bolsas, uma colocou atrás das costas e a outra jogou para mim.
- Vista-se e partimos – falava com a mais fria expressão de todas.
Falar com Jaken era como falar com uma pedra, não havia sentimentos, não existia reações, ele simplesmente dizia o que fazer ou respondia de maneira bem simplória.
Eu olhei dentro da bolsa e vi uma calça, um colete de couro e um par de botas de caçador. Sem muito onde me trocar fui para trás da cabana num canto escuro que encontrei, tirei meu vestido e coloquei aquelas roupas. Surpreendentemente elas couberam bem, foram feitas para mulheres e por algum motivo fiquei surpresa por ele ter isso guardado.
Quando saí do meu esconderijo ele já estava caminhando, eu acelerei um pouco o passo até chegar nele e fui recepcionada com a maior frase que ele iria dizer a mim pelos próximos anos.
- Partimos agora, só paramos duas vezes ao dia para comer, beber e descansar algumas poucas horas.
- Não fique para trás, não me atrase e não me pergunte para onde estamos indo, apenas me siga e em quatro dias chegaremos ao ponto de encontro.
- De lá eu não sei qual será seu destino - de novo uma pedra, não existia nenhuma emoção em suas palavras, elas simplesmente representavam alguma coisa por ter significado, mas fora isso não traíam mais nada do que ele pensava.
Eu simplesmente acenei concordando com a cabeça, mas tinha uma pergunta a fazer.
- Por que... Por que você me ajudou?
Ele continuou andando em silêncio, não sei se não tinha me escutado ou se não se importava com minha pergunta, mas depois de alguns segundos ele deu de ombros e respondeu:
- Por que quis – eu esperei por um tempo acreditando que ele diria algo a mais, mas estava errada.
- Bem...
- De todo modo obrigada - e foi a primeira vez que vi alguma emoção nos seus olhos.
Ele se virou para mim abruptamente e me encarou. Eu podia sentir raiva, mas por algum motivo também sentir pena. Ele me encarou por um momento até que resolveu falar.
- Nunca me agradeça, não agradeça a nenhum de nós, você não tem ideia do que lhe damos, mas assim que perceber onde se meteu vai ter desejado que ela tivesse tirado a sua vida ali mesmo, rapidamente, sem dor ou humilhação – e foram todas as palavras que trocamos durante todo o caminho.
Eu fiquei pasma, não sabia o que responder a isso, para dizer a verdade na época não sabia nem entender aquilo, jovem demais, ingênua demais.
Os dias se passaram rapidamente. Nós andamos e como ele disse só paramos duas vezes por dia para beber, comer e descansar não mais que duas horas. Meus pés calejaram rapidamente e eu não podia ver, mas achava que sangravam também. Eu até pensava em falar com ele, não sei perguntá-lo algo, mas não tinha energia. Se andasse não falava e se falasse não andava e como ele deixou bem claro no começo que eu não deveria parar de andar eu não parei.
Seguimos para sudoeste e logo o ambiente mudou. De altos pinheiros e um aspecto de constante geada tudo ia se transformando em uma floresta densa, de clima mais quente e úmido. Antes era fácil seguir o caminho devido ao espaço entre as árvores, mas agora arbustos, cipós e todo tipo de planta se emaranhava na nossa frente. Aquilo tudo apenas me deixou mais cansada, nos movíamos mais devagar e com mais esforço, mas o pior era o clima. A geada deu espaço para a chuva, constante e pesada. Nuvens carregadas tinham tomado todo o horizonte e agora o caminho era molhado e pesado.
No fim do quarto dia eu já estava completamente exausta. Não fazia ideia de onde estava, mas não acreditava que aquele lugar pertencia a Falkenlid. Naquela noite Jaken estava caminhando mais devagar, parecia procurar por algo, algo que acredito que encontrei primeiro. Era uma ruína, no começo não tinha percebido pois suas muralhas de pedra estavam cobertas de heras, mas ela estava lá. Não era mais alta que as árvores, mas a coloração e o formato chamavam atenção. Logo depois Jaken também a viu, ele apontou para ela e eu o segui em silêncio.
- Sente e descanse enquanto pode.
Eu não tive dúvida alguma em aceitar, apenas me sentei no chão, encostei-me na muralha e adormeci. Não lembro o que sonhei, mas lembro que foi um pesadelo. Lembro de sombras vindo na minha direção e do medo, e lembro que aquilo me fez acordar em um pulo. A lua estava cheia e nos oferecia uma leve iluminação. Eu pude observar melhor as ruínas agora. Não era um forte, estava mais para uma torre de observação, daquelas que ficam nas estradas e tem uma guarita para os guardas ao lado, ou o que tinha sobrado dela, pois estava quase que completamente desmoronada assim como o topo da torre. Na verdade apenas uma parede subia nas alturas das árvores, as outras ou tinham caído completamente ou não tinham mais que um metro.
Foi aí que eu me lembrei de Jaken, não o tinha visto. Tinha olhado em volta analisando as ruínas, mas em nenhum momento meus olhos o encontraram. Todas as outras vezes que adormeci assim que acordava ele estava lá, no mesmo lugar de antes, mas dessa vez não o encontrava. Um frio na barriga começou a me deixar ainda mais nervosa. Não que eu gostasse de sua companhia, mas tê-lo ao meu lado dava uma sensação de propósito e surpreendentemente também me fazia sentir segura. Tentei me acalmar pensando que ele apenas tinha ido se aliviar ou algo do gênero e foi aí que ouvir vozes.
Eu não a reconheci imediatamente até que me aproximei de onde o som vinha e percebi que era a voz da Dama da Noite. Andei mais um pouco e pude vê-la, alta e esguia estava com o mesmo manto negro só que agora eu conseguia ver a barra do vestido por baixo dele. Era bordado com fios de prata que faziam um tipo de desenho que subia e estava escondido da minha vista. Percebi também seu longo cabelo negro, não sei como não reparei antes, pois ele escapava do capuz e escorria pelo seu corpo quase até sua cintura.
Ela estava na parte de dentro da torre em frente à Jaken. Assim que apareci ela se virou pra mim, o que me deu um susto.
- Historia, aí está você! – ela falava com uma voz alegre, até parecia que éramos amigas.
Ela deixou Jaken e veio na minha direção. Quando chegou perto de mim abriu um sorriso, muito bonito, mas que me deixou desconfiada, então puxou minhas mãos e as envolveu com as suas.
- Eu sei que parece estranho, mas estou feliz que você tenha conseguido chegar aqui, ter uma aprendiz com certeza dá trabalho e muito provavelmente eu não terei tempo de lhe ensinar tudo, mas por algum motivo eu sempre fico contente quando tenho alguém como você ao meu lado – sorriu novamente, mas agora era um sorriso mais familiar, mais sarcástico, soltou minhas mãos e olhou bem nos meus olhos.
- É... isso nunca vai acontecer – ria enquanto falava.
- Você é mais um estorvo que qualquer outra coisa, mas eu fiz um acordo e vou cumprir minha parte.
- Eu já expliquei a Jaken o que preciso dele, agora é sua vez.
- Você sabe a quem eu sirvo?
Ela era mais alta do que eu e usava isso para me pressionar. Estava perto, tão perto que o vento fazia seu manto tocar em mim. Me olhava de cima para baixo como se me pressionasse contra o chão.
- Eu ouvi que a senhora tinha pacto com vários imortais... – respondi quase sussurrando.
- Não seja tola garota! – ela rompeu em fúria.
- Eu perguntei se você sabia quantos pactos eu tinha!?
- Quantos demônios eu conheço!?
- Com quantos eu durmo!?
- Eu lhe perguntei a quem eu sirvo!
- É uma pergunta bem simples então qual a sua dificuldade em responder!? – ela era pura fúria agora, gritava e eu podia ver seus dedos se contorcerem, eu achava que logo ela iria arrancar meus olhos com suas unhas. Ela começou diminuir a distância entre nós e fez isso até que eu dei de costas com uma parede.
- Vamos! A Q-U-E-M E-U S-I-R-V-O!? – falou pausadamente cada letra.
- Asan... – respondi com a voz trêmula.
Estava assustada. Sinceramente era o que eu me sentia a maior parte do tempo, principalmente na presença dela.
- Muito bem minha cara – agora ela falava calmamente como se nada tivesse acontecido.
- E quem é Asan? – soava se ensinasse a uma criança.
- Asan é também conhecido como Asan o Profano e foi o primeiro imperador de Erengard.
- Então me diga querida, a quem você acha que você também deve servir? – ainda estava calma, mas eu podia ver que a qualquer momento ela poderia explodir novamente.
- Asan...
- Duas perguntas dois acertos – ela levantou dois dedos quando respondeu.
- Então por fim me diga, o que você deve fazer agora?
- Me tornar uma discípula de Asan? – eu mais perguntei do que respondi.
Em troca ela pressionou seus dois dedos na minha testa, minha cabeça bateu contra a parede atrás de mim e eu pude sentir que suas unhas tinham encravado de leve na minha pele. Logo eu pude ver um pouco de sangue escorrendo pelo meu rosto.
- Quando eu lhe fizer uma pergunta responda, nem mais nem menos, apenas me dê uma maldita resposta – ela não gritou dessa vez, mas também não foi preciso, a raiva estava clara em sua voz.
Tirou os dedos da minha testa e voltou a me encarar.
- E então?
- Devo me tornar discípula de Asan – e dessa fez afirmei com toda a força que tinha.
- Muito bem! – ela bateu palmas como se parabenizasse um cachorrinho por ter aprendido a sentar.
- Como você sabe querida – começou a andar de um lado para o outro na minha frente enquanto falava.
- Eu não posso lhe ensinar o que precisa saber, porém – levantou um dedo quando falou isso.
- Eu conheço o lugar perfeito onde você pode aprender.
- Jaken vai levá-la até os Máscaras Cinzentas e lá você deve... persuadi-los a aceitá-la como discípula – essa pausa que ela fez me deu calafrios.
Eu não sabia muito sobre eles, mas o sorriso sádico em seu rosto sugeria que ela antecipava problemas para mim.
- Você pode citar meu nome, pode dizer a eles que fui eu que a enviei, apesar de acreditar que isso não vai fazer muita diferença, mas como combinamos eu mostro o caminho e você segue – ela terminou essas palavras apontando para Jaken.
- Nesse caso, você segue ele.
Quando for a hora certa eu irei encontrá-la novamente.
Ela então acenou para Jaken, piscou para mim e foi embora, assim que passou pela primeira árvore eu não pude mais vê-la.
Eu me encostei na parede e escorreguei até me sentar. Passei a mão pela minha testa limpando o sangue e sentido o corte. Era superficial, mas tinha me assustado bastante.
- Vamos – falou Jaken que já estava ao meu lado.
Ele não estendeu a mão para mim, eu simplesmente por pura coincidência, estava na direção que deveríamos ir, e foi exatamente como antes. Andamos o dia todo, paramos duas vezes por dia para comer, beber e descansar e depois continuávamos a andar e durante todo esse tempo eu pensava no que tinha que fazer e não gostava nada da ideia.
Asan o Profano. Tem um motivo para ele ter esse nome. Ele foi rei de Erengard quando Erengard era apenas um reino, porém foi ele quem deu início a guerra da conquista e construiu o império. Isso quer dizer que ele lutou contra Falken e Aghatas e os subjugou através da força e da brutalidade, mas nem todo o terror que ele causou na guerra foi o que lhe deu aquele nome.
Como eu falei existem basicamente dois tipos de magias, as ensinadas pelos imortais e a ensinada pelos deuses, porém a Mesum é a exceção. Mesum é a magia criada por Asan, que na verdade é considerada como uma maldição. A magia transforma e manipula a energia dos elementos, Mesum faz isso com a força vital dos seres vivos, ela distorce e corrompe a energia que flui dentro das pessoas. E como Asan foi capaz de fazer isso?
Os erengardianos acreditam que seus reis são descendentes dos deuses, eles acreditam no panteão dos quatro deuses primordiais, Susanoo da Justiça, Morrigan da Coragem, Ogmios da Sabedoria e Éris da Fertilidade e que todos os seus reis são descendentes diretos de um deles, o que supostamente torna o sangue deles divinos. Bem de todos os reis Asan foi único consagrado como realmente um Deus, pelo menos nos primeiros anos do Império.
Eu não sei como, mas ele criou a Mesum e começou a ensiná-la para os seus seguidores criando a ordem dos Mesumbeiros. A questão é que usar magia é muito difícil, você precisa ter o conhecimento, ser naturalmente capaz de manipular a energia do mundo e fazer um pacto com um imortal, mas Asan mudou isso. Com o tempo ele foi capaz de ensinar suas maldições a basicamente todos e foi o primeiro a militarizar a magia. Foi isso que garantiu a ele a vantagem na guerra e fez com que ele fosse capaz de subjugar dois reinos.
O problema foi que suas ambições não pararam na construção do império, supostamente ele continuou a conduzir seus experimentos mesmo após a guerra, só que esses experimentos precisavam de espécimes humanos. Durante a guerra prisioneiros eram as vítimas, mas quando ela acabou ele começou a abduzir pessoas de todos os três reinos, ou seja, os próprios erengardianos estavam sofrendo em suas mãos. Isso levou a guerra civil, quando o seu irmão mais novo, apoiado por parte da nobreza e quase a totalidade da plebe levantou armas contra o imperador.
A guerra civil se estendeu por anos e terminou com Asan sendo acuado para sua última fortaleza e maior laboratório de Mesum. Lá foi travada a última batalha que terminou na sua morte, e na do seu irmão. Desde então os seus ensinamentos foram banidos, os asanitas, como eram chamados os seguidores de Asan, foram considerados traidores e são até hoje perseguidos. Mesmo assim Erengard não quis se desfazer da Mesum pois conhecia o seu poder, por isso criaram o Círculo de Shimoria, o único lugar no Império que é permitido experimentar as maldições, porém eles são constantemente vigiados pelos Vigilantes Eternos.
Tudo isso para mim se tornava na verdade um grande problema. Eu agora deveria cultuar, não somente aprender a usar maldições, mas adorar Asan e deveria aprender isso com uma ordem renegada por Erengard, ou seja, eu seria caçada pelo Império.
Durante a viagem eu vinha pensando nisso e vinha gostando cada vez menos da ideia, porém não tinha muita escolha eu tinha que seguir o caminho que a Dama da Noite tinha traçado para mim, por isso continuei a seguir Jaken.
Dessa vez foi mais rápido, no fim do primeiro dia chegamos a um pequeno vilarejo. Nem sei se podia chamar disso porque na verdade eram apenas três casas. Estavam na beira do rio e uma delas na verdade não era uma casa, era apenas uma construção com um telhado que abrigava alguns barcos.
Jaken me mandou ir para lá enquanto ele foi até uma das casas que parecia ter alguém dentro. Não pude ver com quem ele falou, mas logo ele estava de volta, me disse para entrar em um dos barcos, pegou uma vara e começou a remar.
Sinceramente foi um alívio. Sempre gostei de barcos, a noite estava tranquila sem nuvens no céu e nós descemos o rio lentamente. Eu adormeci. Foi fácil, estava cansada e o movimento do pequeno barco junto com o barulho da água parecia uma canção de ninar. Quando acordei já passava do meio dia. O sol brilhava no topo do céu e Jaken estava exatamente no mesmo lugar de antes, apenas guiando levemente o barco.
O cenário agora era outro, o rio era largo, a água era escura e tinha uma correnteza suave. As margens mostravam uma nova paisagem, uma floresta menos densa que a anterior, o céu já não estava tão carregado como antes e agora apresentava um horizonte limpo e azul. A floresta que antes era tão silenciosa ruía com o som das aves.
Jaken me olhou e foi a segunda vez que traiu suas emoções. Havia pena novamente em seus olhos.
- Quando chegarmos você está por si só.
- Entre e os convença a lhe aceitar como discípula.
- E onde é esse lugar?
Ele não me deu nenhuma resposta. Para falar a verdade foi a última vez que trocou palavras comigo até chegarmos ao nosso destino. Os dias passavam rápidos e sinceramente, foram bons dias. Nós usamos o rio para nos locomover e apenas atracamos uma vez por dia quando Jaken acendia uma fogueira, cozinhava alguns peixes e usava a fumaça para defumar outros. Logo depois estávamos de volta no barco.
Dias em silêncio absoluto. Ele não falava nada, apenas me indicava com a cabeça ou com o dedo o que devia fazer. Eu me acostumei a isso e simplesmente segui o exemplo, também tinha muito que pensar de modo que minha mente estava bem ocupada.
Aos poucos o rio e a floresta ao nosso redor foram mudando. A água do rio passou a ter uma coloração mais verde e mais lamacenta, as árvores também haviam mudado, eram mais baixas com formas retorcidas dando uma aparência mórbida àquele ambiente. Estávamos entrando em um pântano.
A comida era escassa agora e nem de perto tão boa quanto antes. Alimentávamo-nos de enguias e algumas aves que Jaken capturava. O rio tinha ficado mais largo e as margens agora eram pequenas ilhas que algumas vezes se conectavam e outras não. O céu assumiu um constante tom de cinza que não representava chuvas o dia inteiro, mas que caia por boa parte do dia. E isso continuou até chegarmos a uma ilha gigantesca. No começo achei que terra firme, mas o horizonte dava a entender que a água continuava a sua volta.
Fomos direto para ela e atracamos. Quando eu fui pegar minha bolsa Jaken apenas a afastou de mim o que me fez entender que tínhamos chegado onde ele ia me deixar. Não era fácil gostar dele e eu realmente não gostava, mas eu tinha me acostumado a tê-lo ao meu lado e a perspectiva de ficar sozinha me deixou novamente... assustada.
Ele não me deu muito tempo para pensar nisso porque logo começamos a andar. Eu fui atrás dele e fiquei surpresa. A ilha na verdade era um forte. Abandonado, mas ainda sim um forte, ou melhor uma fortaleza. A névoa não tinha me deixado ver antes mais parecia que ele era quase do tamanho da ilha. Muralhas negras e altas cobertas por musgo escuro se erguiam por toda a margem, cercando e tornando aquele lugar impenetrável, ou pelo menos essa era a intenção, porém o tempo tinha cobrado seu preço e havia pontos de desmoronamento por toda a volta.
A visão era bem aterrorizadora. O céu continuava cinzento e a chuva caia de leve, a névoa cercava todo o lugar e criava uma camada no chão que tornava impossível ver em o que pisávamos. Havia poucas árvores, ou melhor, poucos restos de árvores, todas mortas só com troncos brancos que pareciam esqueletos. Não havia sinal algum de animais, não havia sinal algum de vida na verdade, o que era estranho em um lugar tão grande.
A ilha se estendia e quanto mais nos aproximávamos do centro percebia que ela ia se elevando, não era uma montanha, mas um pequeno monte e a muralha que a envolvia serpenteava por ele. Demos uma grande volta até encontrar uma abertura que na verdade era o portão da fortaleza e foi aí que percebi os vestígios de uma grande batalha. Restos de catapultas, pedras gigantes por toda a volta, era possível identificar os pontos na muralha que tinham cedido devido ao choque das rochas. Mas o que realmente mostrou que tinha sido uma grande batalha foi o que estava no chão.
A névoa me impediu de ver até que pisei em uma coisa estranha e investiguei o que era. Meu pé tinha quebrado algo e se afundou naquilo e quando eu empurrei a névoa em volta descobri que o que tinha quebrado foi o tórax de um esqueleto e que meu pé estava dentro dele.
Dei um salto para trás apenas para pisar em mais ossos e percebi que dali em diante todo o chão estava coberto por eles. Estavam mortos a centenas de anos, não existia nenhum vestígio de carne ou pele apenas ossos velhos, armaduras espadas e lanças por todo lugar, o que era bem estranho, pois geralmente no fim de uma batalha o vencedor coletava seus espólios, ou pelo menos era isso que meus livros me diziam, então alguma coisa tinha que ter acontecido para ter feito o vencedor sair dali sem ligar para os mortos ou para os tesouros.
Porém o barulho era o pior. A sensação de andar por aquele tapete de ossos era terrível, era um desrespeito aos mortos, mas não existia outro caminho. Mesmo com a calça de couro eu podia sentir cortes nas minhas canelas quando algum osso raspava nela. Isso foi minando minha mente, pensar no que eu teria que fazer, sentir a energia daquele lugar, tudo isso ia se acumulando e logo eu estava andando me abraçando e murmurando alguma coisa que não lembro mais.
Em nenhum momento Jaken olhou para trás, não parecia se importar com nada daquilo e apenas continuou a andar. Ele estava frio agora, mais que o normal e talvez fosse esse o modo que ele lidava com aquele ambiente.
Logo toda aquela tensão começou a cobrar seu preço, eu comecei a achar que estava sendo observada, como se mil olhos estivessem sobre mim. Eu olhava constantemente para trás achando que algo estava prestes a saltar sobre mim, porém as vozes eram o pior. Não conseguia entender o que elas diziam, mas eram várias, constantes, sussurravam e gritavam ao mesmo tempo. Eu me abraçava cada vez mais, cada vez com mais força.
O caminho entre a muralha e o centro da fortaleza era enorme e por isso não tinha visto o castelo. Era gigante, se erguia alto até as nuvens, negro como a muralha, mas musgos não cresciam nele. Ele tinha um aspecto fantasmagórico porque suas torres eram pontiagudas com janelas altas e esguias. A névoa formava pequenos redemoinhos em volta delas. Com a paranóia aumentando comecei a ver olhos brilhantes nas janelas, me observando, seguindo cada passo que eu dava.
Agora estava mais difícil respirar. Eu alternava de um estado de paranóia para sonolência, uma hora estava constantemente olhando em volta outra eu simplesmente caminhava me balançando de um lado para outro sem sentido.
- É a maldição – falou Jaken levemente me despertando.
Aquilo foi pior, pois agora tudo que via e ouvia não era apenas coisas da minha cabeça e sim algo real e aquelas palavras que ele pronunciou fez minha mente entrar num turbilhão. Tudo girava as vozes eram altas, os olhos estavam me cercando e em algum momento eu tropecei e caí na cortina de névoa que cobria o chão, só que quando eu acertei ela eu passei direto, não existia nada abaixo dela apenas uma escuridão e eu caia lentamente.
De lá sombras surgiam e começavam a tentar me alcançar, elas se envolviam nos meus braços, nas minhas pernas, no meu corpo e me puxavam para o fundo. Elas tinham uma expressão de dor e tristeza e começavam a passar isso para mim. O sono foi tomando conta e comecei a desistir. Não sei bem o que aconteceu, mas eu me entreguei aquilo e me deixei ser puxada para o fundo, até que algo me fez despertar. Alguma coisa dentro de mim me deu um choque que fez meu corpo tremer e agora eu começava a acordar.
Eu olhava para as sombras e sentia toda a dor delas, mas eu não queria aquilo mais para mim então eu comecei a empurrá-las, eu tentava me livrar delas e me contorcia e empurrava. Isso fez com que elas gritassem mais ainda e tentassem com mais força me alcançar, mas de algum modo eu conseguir me soltar e comecei a nadar para a superfície. Não havia luz acima de mim, mas era menos escuro do que para o outro lado e por isso eu tentei chegar lá, nadei com todas as forças que tinha e podia sentir que as sombras estavam tentando me puxar.
Em um último suspiro eu cheguei à superfície e quando abri os olhos estava deitada no chão com o rosto em cima de esqueletos e a névoa cobrindo meu corpo. Lentamente comecei a me levantar e vi que Jaken tinha parado. Ele estava olhando para mim em silêncio. Acho que observava se eu iria de fato consegui sair daquele estado. Eu finalmente consegui me levantar o que fez ele se virar e seguir o caminho.
Toda aquela energia e aquela sensação pesada continuaram, assim como as vozes só que dessa vez eu não me dei o luxo de adormecer novamente, continuei lutando para seguir em frente. Finalmente chegamos ao castelo e ele cada vez mais parecia imponente. O modo como as paredes se erguiam negras e pontiagudas faziam me sentir inquieta, parecia que ele me observada e que logo iria me devorar. Havia marcas na rocha, rachaduras e buracos da batalha que aconteceu e onde o dano era mais profundo parecia que um líquido negro o inundava.
Não sei se era apenas a água da chuva, mas ele parecia mais viscoso como se fosse o sangue do castelo. Domada pela curiosidade estiquei meu braço para tocá-lo assim que cheguei perto congelei. Algo me dizia para não arriscar e não arrisquei. Procurei por Jaken e quase não consegui vê-lo, ele tinha continuado andando em volta do castelo. Fui atrás e quando o alcancei estávamos de frente a uma abertura. Era pequena e baixa, mas seguia profundamente. Ele simplesmente apontou para lá e eu segui. Tive que dar um pequeno salto porque havia um desnível entre o chão do lado de fora e o chão do lado de dentro.
Assim que entrei ouvi os passos de Jaken se distanciando e soube que ele estava indo embora. Não havia o que fazer por isso contive a vontade de olhar para trás e segui em frente. Era muito escuro, só existia trevas ali, trevas e um vento gelado, a rocha tinha uma aparência úmida e assim que a toquei sentir que ela estava a ponto de congelar. Eu não podia ver, mas podia sentir que o chão era como lá fora, coberto por névoa e por esqueletos. Por sorte o caminho era estreito e então decidir tatear o resto do percurso.
A rocha era fina e afiada e logo começou a fazer pequenos cortes em minhas mãos. Eram incômodos no começo, mas começaram a arder de verdade quando a umidade da rocha começou a passar para as minhas mãos, porém não havia outro modo de seguir se não esse. Continuei pelo caminho por um longo tempo, não sabia quanto porque naquela escuridão total não tinha noção alguma do tempo.
Agora as vozes haviam voltado e com mais força. Estar em um lugar completamente rodeado por trevas aumenta o medo, e agora tudo aquilo tornava-se insuportável. Em um momento eu pensei em voltar, olhei para trás e tentei sentir o caminho de volta, mas esbarrei em algo. Minhas mãos encontraram rocha fechando o caminho atrás de mim. Não fazia sentido porque tinha acabado de passar por ali e não acreditava que era possível ter tido um desmoronamento e eu não ter escutado, porém o que era ainda mais estranho era que a rocha atrás de mim era sólida e não várias empilhadas.
Algo me fez virar rapidamente e jurei que a escuridão parecia avançar sobre mim. Usei os braços para me cobrir, mas nada aconteceu. O caminho parecia diminuir e se tornar mais apertado. Minha respiração novamente ficou pesada, eu podia sentir o peso de todo o castelo no meu peito e o desespero só fazia com que eu tentasse respirar com mais força. Em um impulso eu explodi e comecei a correr. Segui em frente esbarrando nas rochas, tentando tatear por ande andava, gerando apenas mais cortes em minhas mãos.
Em um momento o caminho fez uma curva e eu acertei em cheio a parede, meu ombro foi de encontro com ela e pude sentir que um hematoma se formava ali, mas isso não me fez ir mais devagar. Continuei correndo com as mãos tocando os dois lados da parede só que agora elas iam diminuindo ao meu redor. Olhei para trás e a cada paço que eu dava o caminho se fechava atrás de mim.
Corri desesperadamente o mais rápido que pude até que a abertura se tornou estreita demais. Eu tive que me espremer de lado e algo agarrou minha mão que estava para trás. Eu não podia ver nada além de escuridão, mas algo estava envolvendo meu punho, subindo pelo meu braço chegando mais perto. Com força comecei a me empurrar pelo espaço o qual mal conseguia respirar. Em um último impulso me joguei para frente me livrando do que me segurava e saindo em uma clareira.
Não era bem uma clareira como eu achava era apenas um espaço maior e quando dei o primeiro passo esbarrei em algo, só que não era rocha era madeira, madeira e ferro. Pelo rangido eu reconheci como uma porta e procurei a maçaneta, mas não conseguir encontrá-la. Algo me fez olhar para trás e vi que novamente a escuridão tentava me alcançar e então comecei a bater na porta com os punhos. Batia com força e gritava pedindo para alguém me deixar entrar, mas não tive resposta. Ela já estava em cima de mim novamente e me sufocava e me apertava e me espremia até que sentir uma pancada na cabeça e desmaiei.

Cap. 3 – Fortaleza Negra

Acordei com uma enorme dor de cabeça. Comecei a abrir lentamente os olhos só que dessa vez eu podia enxergar, era fraca mais tinha luz onde eu estava. Foi aí que senti uma dor nos punhos e quando eu tentei puxá-los para frente dos meus olhos eu ouvi as correntes. Eles estavam presos, acorrentados acima da minha cabeça. Meu coração começou a bater mais rápido enquanto eu começava a perceber que estava acorrentada. Minhas mãos e meus pés estavam presos e agora eu tinha percebido que não estava sozinha.
Ainda estava muito escuro e não tinha percebido no começo porque eles não se moviam, mas havia duas figuras encapuzadas bem na minha frente. Minha reação foi saltar para trás, mas as correntes e a parede atrás de mim impediram isso.
Eles estavam perto, a menos de um metro de distância. Havia apenas uma pequena tocha por trás deles e graças ao capuz não podia ver os seus rostos, mas percebi que o que estava a esquerda tinha uma barba que se prolongava para fora do capuz e foi aí que ele se aproximou.
Andou dois passos e chegou bem perto. Se inclinou na minha direção, o suficiente para que eu pudesse ver em parte seu rosto e seus olhos que brilhavam ao me encarar.
- Quem é você? – ele perguntou com uma voz rouca e abafada.
Eu tentei me acalmar o máximo que pude e me lembrar do porque estava ali.
- Meu nome é Historia Reiss, eu sou uma demonologista e vim aqui para me juntar aos Máscaras Cinzas e me tornar uma discípula de Asan – falei com a maior calma que consegui.
Houve um momento de silêncio e não tive certeza, mas por algum motivo acreditei que o homem perto de mim reagiu ao meu nome, e assim que percebi isso senti o primeiro golpe.
Ele havia me batido. Usou as costas das mãos e acertou em cheio meu rosto. A dor foi intensa e eu senti que havia cortado meu lábio. O sangue escorria de leve e assim que voltei a olhar para ele senti seu punho em meu estomago. Ele havia me golpeado novamente e dessa vez fez com que perdesse completamente meu fôlego, eu teria caído no chão, mas as correntes impediram isso.
Tossi descontroladamente e me curvei para frente com a dor até que ele enfiou sua mão nos meus cabeços e ergueu minha cabeça até o seu olhar. Ele estava mais perto agora e podia ver seus dentes amarelos e sentir seu bafo.
- Quem é você? – ele perguntou novamente com a mesma voz só que agora havia mais ferocidade nela.
Ele me soltou e imediatamente eu comecei a falar.
- Meu nome é Historia Reiss e por ordens da Dama da Noite vim aqui para me tornar uma discípula de Asan – ele me bateu novamente, usou a parede dessa vez, apenas empurrou minha cabeça pra trás e ela se chocou com força contra a parede.
A pancada foi forte e não sei como não desmaiei, mas enquanto recuperava os sentidos pude sentir o sangue escorrendo pela minha cabeça.
- Por fa... – outra pancada.
Ele acertou meu rosto em cheio com sua mão. O golpe me fez sacudir inteira para o lado forçando ainda mais meus pulsos contra as correntes. Novamente eu teria caído no chão não fosse elas. Meu rosto inchou e eu sentir as lágrimas começando a escorrer.
Ele deu um passo para trás e perguntou novamente.
- Quem é você? – selvageria e violência pura naquela voz, nunca vou esquecê-la, e aquilo me fez falar tudo.
- Meu nome é Historia Reiss, eu vim do vilarejo de Pasroe no norte aos pés do Monastério dos Monges.
- Eu fui exilada quando descobriram que sou uma demonologista e estava a caminho da Universidade de Erengard quando Lucius o Frio me capturou, no seu acampamento a Dama da Noite apareceu e ele barganhou com ela para me aceitar como sua aprendiz.
- Ela assim o fez e me enviou para cá para aprender a adorar Asan.
- Isso é tudo eu juro, toda a verdade tudo que aconteceu, por favor eu juro.
As lágrimas escorriam pelo meu rosto e minha voz saía trêmula. Eu só queria que ele parasse que ele não me batesse novamente só isso, mas ele fez exatamente o contrário. Dessa vez ele me deu um murro, me acertou em cheio e com tanta força que bati novamente a cabeça contra a parede, logo em seguida sentir mais um soco no estômago que me fez levantar no ar e vomitar o que tinha na barriga.
Ele de novo ergueu minha cabeça puxando meus cabelos só que agora ele sorria.
- Escute aqui sua puta mentirosa.
- Eu não acredito em você e vou tirar a verdade na base da dor.
- Depois vou matá-la lentamente, aproveitando cada segundo, cada gemido de dor que você vai dar, mas antes...
- Antes querida eu vou foder você.
- Eu vou estuprá-la, várias e várias vezes até não sobrar mais nada e depois vou jogá-la aos meus homens e aos meus cães para usarem o que quiserem, só depois disso que você poderá morrer, mas saiba que eu vou estar ao seu lado a cada segundo, a cada grito e gemido que você der.
Eu rompi em lágrimas. Elas escorriam pelo meu rosto desesperado. Eu só conseguia pedir, por favor, que ele não fizesse isso, só repetia essas palavras o que fazia com que ele risse ainda mais. Então ele segurou na gola do meu colete e o puxou com toda a força para baixo, rasgando as amarras e me desnudando.
Eu tentei me cobrir, mas as correntes não deixaram e agora ele me segurava e me apertava e se esfregava em mim e eu gritava e chorava ao mesmo tempo. Implorava para que ele parasse e tentava me afastar, mas sem sucesso. Eu podia sentir ele me apertando cada vez mais, sentindo cada vez mais prazer no meu desespero e não podia fazer nada.
Só que eu estava tremendamente enganada, eu achei que estava com medo que estava desesperada, mas quando ele levou sua mão até minha calça meu coração parou. Todo o meu corpo congelou e parou de se mover. Por um segundo o tempo parou e então ele fez tudo voltar de uma vez só, todo aquele medo e desespero, toda aquela dor a agonia, com um puxão que rasgou completamente minha roupa.
Agora sim, agora eu percebi que eu não estava nem perto do desespero real, não até ele fazer isso. O grito que soltei deve ter ecoado por todo o pântano, eu me debatia e sentia o sangue escorrer pelos meus pulsos e meus pés e ele só fazia rir. Ria e me apertava. Eu tentei mordê-lo, mas foi um grande erro. Na hora que meus dentes chegaram perto de seu nariz ele me deu uma cabeçada que me jogou com toda a força contra a parede.
Não sei como não desmaiei, até gostaria de ter desmaiado, mas apesar de completamente atordoada estava acordada. Ele riu e eu sabia que não havia mais nada que eu pudesse fazer.
Eu estava imóvel agora, pendurada pelas correntes de olhos fechados e podia ouvir e senti-lo tirando o que tinha sobrado das minhas roupas. Em algum momento algo mudou, eu ergui lentamente minha cabeça e vi que as correntes que prendiam minhas mãos estavam geladas, não só geladas estavam quase congeladas.
- Sanguinem mea, Abjecistis victimam meam. Vis vicissimque accipit qui dolorem torrerem faceret me – sussurrei as palavras e para minha sorte ele não as ouviu.
Quando olhou nos meus olhos eu estava o encarando de volta e quando foi me bater eu fui mais rápida e quebrei as correntes. Usei meus braços para puxá-los para perto de mim fazendo ele se chocar comigo.
- Tuum dest enim sanguis meus novi. Anima mea tua sunt. Faciet inimicum meum tuum – meu sangue que escorria pelo meu corpo reagiu.
Todo ele vibrava e rapidamente envolveu aquele homem pressionando-o ainda mais contra mim, só que agora o sangue era fino e começava a perfurar sua pele, entrando no seu corpo como mil agulhas perfurando-o. Ao mesmo tempo eu mordi seu pescoço com toda a força que tinha e sentir a carne e o sangue explodir na minha boca.
Ele gritou e se debateu, mas isso só fez o sangue reagir com mais força. Eu balançava a cabeça de um lado fazendo a mordida ficar pior ainda e pude ouvir sua dor e adorei aquilo. Ele gritava enquanto tentava se libertar e acreditei que não conseguiria que eu iria consumi-lo ali e devolver tudo o que ele tinha feito comigo.
Até que ouvi ele recitar algo, foi baixo e não pude entender, mas uma força o empurrou para longe de mim e eu não consegui mas segurá-lo. Mesmo ele tendo se afastado eu pude ver que estava bem ferido. A mordida por si só tinha arrancado um grande pedaço da carne do seu pescoço e agora como eu ele estava coberto de sangue.
Quando comecei a recitar um novo encanto o outro homem que tinha ficado em silêncio até agora se moveu tapou a minha boca ao mesmo tempo em que chutou o velho para trás. Não pude ver mais nada que isso porque quando tentei me livrar dele fui recompensada com um forte soco no estômago e dessa vez eu apaguei.


Biografia:
Sou um graduando de Administração que tem como hobbie a leitura de diversos livros, principalmente de romances históricos e fictícios e recentemente comecei a escrever um conto próprio.
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