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Engolindo Navalhas
Cena Urbana 1
Anderson F. Morales

A vida é boa, mas tudo passa. Um dia todos iremos morrer, todos morrem um dia. Morreram, e me deixaram aqui, só por causa do meu vício. O que me resta são as roupas do corpo. O que me resta é vagar pela cidade na noite, revirando lixos à procura de algo para comer. Os cães tem mais sorte nisso, tem um faro melhor apura. Sabem se a comida está estragada antes de colocarem na boca. A vontade de chorar é algo que sempre me acompanha. Parece que estou sempre engolindo navalhas que cortam minha garganta. Perdi tudo que tive por causa do vício. Não consigo mendigar, não saberia como o fazer. Tenho uma vida ocupada: tenho que torcer para que chova para poder matar a sede, chegar cedo nas marquises para pegar lugar para dormir, tenho que agüentar a humilhação de ser olhado com nojo e escarrado pelas pessoas na rua. Às vezes, quando já estou debaixo alguma marquise, param kombis com pessoas distribuindo sopas. Eu bebo, forçado, nunca gostei de sopa e é só isso que eles trazem. Será que eles acham que eu não tenho dentes?
Certa vez, junto de outro viciado, encontrei um bloco de vale-refeição num lixo. Foi uma briga feia. Cada um necessitava mais que o outro para alimentar o vício. A briga encerrou-se quando ele cravou suas unhas imundas no meu olho direito. Enquanto eu urrava de dor ele fugiu, levando não só o prêmio, mas também pouco que restava da minha dignidade. O olho vazou e não fiquei só cego, mas também com o rosto deformado. Os dias foram mais difíceis a partir daí. A dor me acompanhou por várias semanas. A humilhação aumentou, não só daqueles que me desprezavam, mas também aqueles q sentiam pena ou não, mas que não podiam evitar de olhar tal deformidade. Até o pessoal das kombis me olham com certo receio. O olho infeccionou e passei muito mal. Tive convulsões, pânico, febre, paradas cardíacas. Senti o frio olor da morte penetrar nas minhas narinas, mas não me deixei levar, tinha que alimentar meu vício. Sentia que meu cérebro estava sendo tomado pela infecção. Delirava pelas ruas da cidade. Fui recolhido a um sanatório e comecei a ser tratado. Alguém dizia que era tarde demais, mas que apesar disso eu era muito resistente. Eu precisava alimentar meu vício, não podia morrer. Segundo os médico tive uma recuperação extraordinária. . Ganhei roupas novas e tomei um banho. Pouco tempo depois voltei as ruas, ainda deformado, mas com saúde 100 %, segundo os médicos. Devo tudo isso ao meu vício.
Continuei minha rotina de sempre, ainda causava asco às pessoas, ainda me preoucpava com a chuva, ainda brigava com outros viciados pelo melhor lugar na marquise. Meu vício ficou mais forte do que nunca. Quando se encara a morte de frente, certas coisas revigoram. Isso alimentou meu vício. Percorria boa parte da cidade durante o dia. Cada noite escolhia uma marquise diferente para dormir. Fiz amizades e inimigos, tudo dentro de uma vida normal. Fui até outra cidades e voltei. Não conseguia abandonar o lar. De vez em quando ganhava um prato de comida. Apesar de ser um viciado, nunca roubei, mas não sei se isso é uma virtude. Em uma de minhas andanças vi o cara que havia arrancado meu olho. Estava encolhido, deitado no chão, próximo a uma para de ônibus. Muita gente estava por ali, mas nem olhava para ele. Pensei em chegar enchendo-lhe de pontapés, mas ele parecia quieto de mais. Aproximei-me e vi que estava morto. Segurava firmemente nas mão bloquinho de vale-refeição. Aposto que tentou comer em algum lugar, mas quem daria refeição a um viciado imundo? Tive dificuldade para tirar o bloco dele, mas consegui. Não sei o que iria fazer com aquilo, já que eu também não passava de um viciado imundo, mas mantive comigo, aquilo me dava esperanças de manter meu vício. Não cosiderei aquilo como um roubo, mas como uma indenização.
Uma marquise no centro da cidade foi o meu último lar. Ali me acomodei solitariamente enquanto algumas pessoas ainda saíam do serviço. Ali fiquei estendido quando um bando de neo-nazistas veio e arrebentou minha cabeça, espalhando meu sangue por toda calçada. Ali uma ambulância chegou, chamada talvez por alguém que compreendesse meu vício.
Ele resiste, apesar do grande dano.
Que horror, não seria melhor ele morrer? isso está horrível.
Quieto, ele pode ouvir.
Bem capaz, olha o estado dele.
Ali eu desisti. Meu vício era viver.


Biografia:
Escritor em nível de formação desde 2000. Estudioso de Borges e partidário deste mestre, tenta, em vão, escrever obras de literatura fantástica na linha borgiana. Além da influência platina, apresenta uma personalidade heterônima, postando contos com outros nomes. Atividades complementares como professor de literatura e técnico em perícias criminais.
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Outros títulos do mesmo autor

Contos Nossa Senhora de Todos os Dias Anderson F. Morales
Contos Engolindo Navalhas Anderson F. Morales
Contos Consciência Anderson F. Morales
Contos Ressurreição S.A. Anderson F. Morales

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