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Ressurreição S.A.
Cada dia, uma nova vida
Anderson F. Morales

Resumo:
Ressurreição S.A. - prestação de serviços de morte.

Aqui estou eu, no meio da escada, esperando a minha vez de ser atendido. Todos na fila, tão parecidos uns com os outros, menos eu. Nunca me senti igual aos outros e não ia ser diferente agora. O primeiro da fila, um jovem, demonstrando vontade de viver. Me perguntaria por que motivo ele estaria aqui, mas não quero pensar nisso agora. Mais uma porção de jovens iguais ao primeiro enfileiram-se esperando a sua vez de serem atendidos. Até nisso eu sou diferente, eu não espero para ser atendido, eu aproveito um pequeno momento de ócio junto de várias pessoas para envelhecer. Todos sentem que o tempo está passando, mas ninguém sente como eu. "Carpe diem" esta frase soa em minha cabeça há anos, como que um mandamento. "Aproveite o dia, este momento nunca voltará a acontecer" uma pessoa me disse uma vez "aproveite todos os momentos, até mesmo os piores, eles nunca voltarão a acontecer do mesmo modo. Arranque uma unha: é uma dor que só tem um jeito de sentir, mas mesmo assim cada unha tirada nos produz uma dor diferente. A primeira doerá de um jeito, mas a segunda será de outro. Aproveite cada unha". Por mais estranho que seja, é uma verdade incontestável. Por isso aproveito o momento de espera na fila o máximo que posso. Nunca mais existirá um momento como esse com as mesmas condições. No caso de se arrancar uma unha, outra poderá crescer, mas será uma unha diferente, comprovando a teoria de que o momento nunca mais será igual, mesmo que se recriem todas condições pré-existentes.

A fila andou e, diferente dos outros, hesitei alguns segundos antes de dar o primeiro passo. A moça atrás de mim parecia nervosa, acho que era a sua primeira vez. Se fosse socialmente aceitável ela teria me empurrado de encontro à parede e tomado meu lugar na fila devido à minha hesitação. Mas não o fez. Confesso que fiquei um pouco decepcionado. Seria uma quebra de regras tão formosamente linda. Uma linda garota, olhos negros, cabelos morenos, pelo físico devia estar em forma, apesar de ter um umbigo um pouco rechonchudo. Ela encostaria sua delicada mão, com unhas recém pintas de roxo, nas minhas costas. Eu pensaria que aquela maravilhosa garota quisesse ter uma pequena conversação comigo, o que denunciaria a vontade dela de conhecer-me melhor para que se prenunciasse uma pequena intimidade, troca de nomes, telefones, para depois, fluidos corporais. Com o toque me viraria com a intenção de olhar nos olhos dela, e então, nesse momento ela colocaria todo o peso de seu corpo nas minhas costas e empurraria todo meu despretensioso corpo fazendo com que meu nariz e depois minha boca se chocassem contra a parede. Uma pequena gota de sangue brotaria de meu nariz, e, enquanto eu tentaria recobrar meus sentidos, as outras pessoas da filas dariam apenas mais um passo à frente como se nada tivesse acontecido. Tudo seria tão lindo.

A fila andou mais um passo. É nisso que estou reduzido agora: um passo. Já fui um número, uma letra, uma digital, agora sou um passo. Se eu não existisse nesse momento, todas as pessoas que estão atrás de mim na fila dariam apenas um passo para frente. Não represento nada para eles. Como sou diferente. Olho para uma pessoa e tento imaginar o que ela está fazendo aqui, o que a trouxe aqui. A moça do atendimento, por exemplo, o que a fez arrumar um emprego destes, passar dias inteiros sentados, em contato com milhares de pessoas diferentes, cada um com uma história diferente. Mas para ela cada um é apenas mais um. Um pedido diferente, uma nota diferente, um rosto sem passado, presente ou futuro, apenas mais um rosto. Ela sorri, é simpática com todos. Não se atém a detalhes de cada um. Apenas pergunta o nome, anota o pedido com todas as especificações, recebe o dinheiro e entrega um bilhete amarelo para o cliente. O cliente dirige-se para uma pequena sala com algumas cadeiras e espera sua vez. Neste momento ele já esqueceu-se de quem o atendeu, deve ter outras coisas para se preocupar.

Faltam três pessoas serem atendidas para chegar a minha vez. Lembro-me de minha primeira entrada aqui. Estava nervoso, gotas de suor escorriam pelo lado de minha cabeça encharcando o colarinho branco e fazendo arder meu pescoço irritado devido o barbear da manhã. Afrouxava a gravata a todo instante, parecia que ela apertava cada vez mais. Os olhos não paravam, não encontrava um lugar onde repousá-los, as mãos mexiam-se sem sentido, colocava-as no bolso, apoiava-me na parede, estalava os dedos. Não tinha certeza se era aquilo que eu queria, pensava em sair correndo e envergonhar-me da decisão que iria tomar, mas continuava em pé, sem mexer-me um milímetro. Até que chegou a minha vez. Não conseguia olhar nos olhos da moça que atendia, aliás a mesma moça que atende hoje. Sentia vergonha de estar ali, deveria ter saído correndo, como muitas vezes fiz em minha vida. Realmente não acreditei que não havia desistido da idéia, pelo menos uma vez na vida. A moça cumprimentou-me, apenas grunhi para ela e fiz o meu pedido, o mais simples possível, peguei a ficha e retirei-me. Fui para a outra sala onde quatro pessoas aguardavam serem atendidas. Não olhava nos olhos delas, olhava-as apenas de canto. Não tinha interesse em saber por que motivo elas estariam, nem que elas soubessem o meu motivo de estar ali. Virei-me e fui em direção à porta, ia embora. Ao chegar na outra sala deparei-me com a fila em que eu estava antes. Todos olharam em minha direção como se uma atração de um freak show tivesse aparecido na porta. Assustado, recuei, sentei-me e esperei a minha vez. Os minutos passaram depressa, as pessoas que haviam chegado na sala antes de mim já havia sumido, o que denunciava que havia chegado a minha vez. "Número 48" um homem vestido de branco gritou. Era o meu número. Pernas cambaleantes, eu parecia um boneco de fios, sentia que estava flutuando. Queria ir embora mas minhas pernas não obedeciam. Entrei na sala 3 - dizia um número preto na porta. Ao ver pela primeira vez a sala meu coração apertou como se tivesse uma mão de ferro segurando-o e depois afrouxou-se como uma granada espalhando seus pedaços por todos os cantos. A sala era toda azul e uma luz branca vindo bem do centro do teto iluminava tudo. Dava uma sensação fria de metal aquela sala, como um bisturi cortando a pele para fazer aquela cirurgia estritamente necessária. Sem notar eu já estava sentado na cadeira com pulsos e pés amarrados. A cabeça firmada no encosto da cadeira por uma tira de couro. Não conseguia articular nenhuma palavra, sentia minhas veias do braço pulsarem chocando-se levemente com o frio metal da cadeira. Suava cada vez mais, sentia minha camisa encharcar-se de suor e colar em minha costas. "Número 48, escolheu enforcamento. Pedido bastante comum." Falou o homem de branco ao colocar um pequeno capacete azul de metal com duas rodelas de metal na frente que se encaixavam-se perfeitamente nas cavidades oculares. Tudo estava escuro, eu comecei a tremer de pavor, queria sair mas não conseguia me mexer nem falar nada. "É sua primeira vez?" Perguntou o homem de branco. Não consegui responder, meus dentes estavam cerrados, achei que ia urinar nas calças. O rapaz de branco posicionou-se em uma pequena máquina no canto da sala e apertou alguns botões. "Pelo visto é sua primeira vez mesmo. Vou colocar o tempo mínimo. Relaxe, a primeira vez é sempre assim. Não se preocupe, algumas pessoas chegam até ao orgasmo com a opção que escolheste. Tudo certo, vou contar até três. Um..dois...

"Próximo" o grito da moça do atendimento tirou-me desta nostalgia. Eu era o próximo. Senti a impaciência da garota atrás de mim, por isso hesitei um pouco antes de dar o primeiro passo. Não senti sua mão nas minhas costas. Mais uma vez decepcionado, caminhei em direção ao balcão de atendimento. "Boa tarde, Sr. Sitrucian. O que vai ser hoje?" A moça do atendimento já me conhece de nome. Nunca tive coragem de perguntar o dela, não queria parecer interessado em nada. "Não sei. Qual é o melhor da lista?" pergunto a ela, embora já esteja projetando-se em minha mente o que quero. "Você sabe, não tem melhor nem pior, depende de cada um." Já sabia que ela responderia isto, ela não parece ter opinião sobre nada. "Então qual o mais estranho desta semana?" Perguntei apenas por curiosidade. "Ratos, teve um pedido de ratos em um beco." Achei aquilo interessante e desisti da minha idéia inicial e resolvi fazer este pedido. Peguei meu bilhete amarelo e dirigi-me à outra sala. Aguardei pacientemente a minha vez enquanto analisava os rostos de cada um que entrava na sala de ressurreição. Alguns pareciam ser tão experientes quanto eu. Já tiveram todas as decepções da vida que morrer a cada dia era o melhor que se podia fazer, depois nós ressuscitaríamos. Alguns rapazes jovens entraram na sala, demonstravam-se alegres e confiantes. Queriam afirmar-se entre os colegas. Cada um com seu motivo, nenhum melhor que o meu. Quero experimentar todos os tipos de morte, para então decidir qual será a verdadeira. Não tenho pressa, esperarei para escolher sabiamente. Para falar a verdade o único motivo de eu estar vivo é saber que posso morrer.

"Número 86" gritou o rapaz de branco. Não era o mesmo das outras vezes, mas não me interessei em saber onde estava o outro. Entrei na sala 7, já havia estado ali outras vezes. Mesmas paredes azuis das outras sala, mesma cadeira de metal, porém havia um cheiro estranho: um leve odor de amoníaco no ar. Acho que o cliente anterior não se agüentou e relaxou demasiadamente. Melhor assim, vai dar mais realidade à minha fantasia. Sentei-me na cadeira, minhas pernas e meus braços foram amarrados. Minha cabeça, presa ao encosto pela fita e meus olhos tapados pelas rodelas de metal. O Provocador - é assim que chamo os rapazes de branco que me atendem - dirigiu-se à máquina. "Qual o tempo que o senhor deseja?". Respondi que queria o máximo possível. O Provocador não respondeu nada, limitou-se a programar o pedido. Pude ouvir o último barulho das teclas quando fui transportado para um beco imundo. Encontrava-me nu no chão e não conseguia me mover. Um onda de ratos surgiram atrás de meus pés e avançaram sobre meu corpo à procura de alimento. Começaram roendo meus dedos. A dor, minha antiga amiga, sempre a mesma, e mesmo assim cada dia diferente. Podia sentir cada pedaço de carne sendo retirado em pequenas porções. Minhas extremidades foram todas devoradas deixando pequenas partes de ossos à mostra. Depois uma segunda horda de ratos avançou por cima de meu tórax e uma terceira instalou-se sobre meu pescoço. Sentia pequenas unhas tentando abrir caminho para dentro de minha barriga. Provavelmente uma quarta horda de ratos avançou em minhas partes púbica, pois sentia dentes dilacerando meu pênis e rasgando minha bolsa escrotal fazendo com que meus testículos ficassem à mercê de outros roedores. Quando avançaram para meu rosto, tive o ímpeto de fechar meus olhos, mas o primeiro ataque dos ratos rasgou minhas pálpebras e pude visualizar melhor o espetáculo de ter meus olhos devorados. Pude sentir algo mexendo em meus intestinos e imagine que eles já teriam rompido a barreira de carne que os separavam de minhas vísceras. Outro rato conseguiu abrir caminho para minha boca depois de ter devorado meus lábios, senti-o entrando na minha garganta e ficando preso nela impossibilitando que eu pudesse respirar. Era questão de segundos até minha morte. Mas eu posso prender a respiração por muito tempo, sempre tive os pulmões fortes, embora eu já esteja debilitado pelo estripamento. Não agüentei mais que um minuto e meio sem ar e sucumbi à morte. Imediatamente voltei à sala 7. "O senhor demorou mais do que eu esperava" disse o Provocador. "Estava ficando interessante" respondi.

Saí da sala de ressurreição renovado, pronto para enfrentar outro dia de torpor no trabalho. Foi uma morte interessante, uma das melhores. Tentei aproveitar o quanto pude. Acho que amanhã vou pedir ratos de novo. Pena que não vai ser igual.


Biografia:
Escritor em nível de formação desde 2000. Estudioso de Borges e partidário deste mestre, tenta, em vão, escrever obras de literatura fantástica na linha borgiana. Além da influência platina, apresenta uma personalidade heterônima, postando contos com outros nomes. Atividades complementares como professor de literatura e técnico em perícias criminais.
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Contos Engolindo Navalhas Anderson F. Morales
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Publicações de número 11 até 14 de um total de 14.


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