“Vós, porém, não estais na carne” (Rm 8.9,10).
O apóstolo aplica, hipoteticamente, uma verdade geral àqueles a quem está escrevendo, não meramente com o intuito de influenciá-los mais poderosamente, dirigindo seu discurso particularmente a eles, mas também visando a que sua definição, a eles apresentada, os conduzisse à inabalável conclusão de que de fato pertenciam ao número daqueles de quem Cristo removera a maldição procedente da lei. Ao mesmo tempo, contudo, ele os exorta a que cultivassem uma nova vida, explicando que o poder do Espírito de Deus está presente nos eleitos, e que esse poder produz seus frutos.
“Se de fato o Espírito de Deus habita em vós.” O apóstolo adiciona uma correção apropriada a fim de despertá-los para um exame mais detido de si mesmos, para que não se deixassem levar por falsas pretensões em nome de Cristo. A marca mais garantida pela qual os filhos de Deus devem distinguir-se dos filhos deste mundo é a regeneração operada neles pelo Espírito de Deus para sua inocência e santidade. Seu propósito, contudo, não é tanto corrigir a hipocrisia quanto sugerir as razões para gloriar-se contra os absurdos daqueles que são conhecidos como zelosos pela lei, que consideravam a letra morta como sendo de mais importância do que o poder interno do Espírito, o mesmo que comunica vida à lei.
Esta passagem também nos ensina que, pelo termo espírito Paulo não chegou ainda ao ponto de significar a mente ou o entendimento que os advogados do livre-arbítrio denominam como sendo a parte superior da alma, mas, sim, o dom celestial. Ele explica que aqueles a quem Deus governa pelo seu Espírito é que são espirituais, e não aqueles que obedecem à razão seguindo seus próprios impulsos. Não significa, contudo, que vivem eles “segundo o Espírito” por se acharem plenificados com o Espírito de Deus (o que hoje não sucede a ninguém), mas porque possuem o Espírito como habitante neles, mesmo que sejam encontrados neles ainda alguns resíduos da carne. O Espírito, contudo, não pode habitá-los sem exercer soberania sobre suas faculdades. Deve-se notar que o homem é designado desde a parte principal de sua natureza.
“E se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele.” Ele adiciona este elemento com o fim de mostrar quão necessário é que os cristãos neguem a carne. O domínio do Espírito consiste na abolição da carne. Aqueles em quem o Espírito não reina não pertencem a Cristo; portanto, aqueles que servem à carne não são cristãos, pois os que separam Cristo de seu Espírito fazem dele uma imagem morta, ou um cadáver. Devemos ter sempre em mente o conselho do apóstolo, ou seja: que a graciosa remissão de pecados não pode ser desmembrada do Espírito de regeneração. Tal coisa seria o mesmo que fazer Cristo em pedaços.
Se tal coisa é verdadeira, então é estranho que sejamos acusados pelos adversários do evangelho como sendo arrogantes, visto que ousamos confessar que o Espírito de Cristo habita em nós. Na verdade devemos, ou negar a Cristo, ou então confessar que fomos feitos cristãos por intermédio de seu Espírito. É deveras espantoso ouvir que os homens tenham se apartado tanto da Palavra do Senhor, que não só se vangloriam de ser cristãos sem o Espírito de Deus, mas também ridicularizam a fé daqueles que o têm. E a despeito de tudo, esta é precisamente a filosofia dos papistas.
Chamamos a atenção de nossos leitores para que observem aqui o fato de que o Espírito é às vezes referido como o Espírito de Deus o Pai e às vezes como o Espírito de Cristo, sem qualquer distinção. Este fato não se deve apenas porque toda a sua plenitude foi derramada sobre Cristo como nosso Mediador e Cabeça, de maneira que cada um de nós pode agora receber dele sua própria porção, mas também porque o mesmo Espírito é comum ao Pai e ao Filho, o qual é com eles de uma só essência e possui a mesma Deidade eterna. Entretanto, visto não termos comunicação com Deus a não ser por meio de Cristo, o apóstolo sabiamente desce do Pai a Cristo, pelo fato de haver entre o Pai e nós uma grande distância.
“E se Cristo está em vós.” Ele agora aplica a Cristo suas prévias afirmações concernentes ao Espírito, com o fim de significar a maneira como Cristo habita em nós. Pois assim como pelo Espírito ele nos sacraliza como templos particularmente seus, também, pelo mesmo Espírito, ele nos habita. O apóstolo agora explica mais distintamente o que já aludimos, ou seja: que os filhos de Deus não são tidos como espirituais com base em uma perfeição plena e final, mas somente em razão da nova vida que teve início neles. Ele aqui antecipa uma dúvida, que de outra forma poderia causar-nos preocupação, ou seja: embora o Espírito possua parte de nós, não obstante vemos outra parte sendo ainda retida pela morte. Ele responde, dizendo que há no Espírito de Cristo o poder vivificante que é capaz de absorver nossa mortalidade. E conclui deste fato que devemos esperar com paciência até que os resíduos do pecado sejam por fim inteira e finalmente abolidos.
Que os leitores se lembrem de que mencionamos o fato de que o termo Espírito não significa a alma, e, sim, o Espírito de regeneração. O apóstolo diz que este Espírito de regeneração é vida, não só porque ele vive e esplende em nós, mas também porque nos vivifica pelo seu poder, até que destrua nossa carne mortal, e por fim nos renove em plena perfeição. Em contrapartida, também o termo corpo significa a massa bruta ainda não purificada pelo Espírito de Deus daquelas poluições terrenas, as quais satisfazem somente o que é bruto. De outra forma, seria absurdo atribuir ao corpo a culpa pelo pecado. Além disso, a alma está longe de ser vida, pois que nem por si mesma tem vida. Portanto, o que o apóstolo quer dizer é que, embora o pecado nos condene à morte, enquanto que a corrupção de nossa primeira natureza ainda permanece em nós, todavia o Espírito de Deus é vitorioso. Não constitui um obstáculo que apenas as primícias nos tenham sido concedidas, porquanto uma só fagulha do Espírito basta para ser uma semente de vida.
Por João Calvino
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