Com os olhos apertados, circundados por uma infinidade de rugas, Juvêncio esquadrinhava a mata escura e úmida das margens do Caiboaté. Agachado, a Conblaim repousando sobre os joelhos, estava atento a todo o ruído que destoasse da rotina do lugar. O correr da água por entre as pedras da sanga rasa, o martelar do bico de um pica-pau em algum galho podre de árvore, o arrulho de algum pombo-do-mato, o trinado de um canário-da-terra, tudo fazia parte dos ruídos, e não chamavam sua atenção. Pigarreou, a garganta sedenta por um mate. Era fim de tarde, e àquela hora costumava matear com os companheiros no acampamento. As sombras, aos poucos, estendiam-se pela mata, mas os olhos de Juvêncio, acostumados à escuridão, continuavam a busca. Sentiu vontade de acender um crioulo, mas desistiu. Sabia que o cheiro forte do fumo poderia denunciar sua presença. Repentinamente, um leve farfalhar nas folhas secas que cobriam o chão chamou a sua atenção. Prendeu a respiração e cerrou os olhos, tentando concentrar-se em descobrir a origem e direção do barulho ainda longínquo. Eram passos, não havia dúvidas. Hesitantes e furtivos, mas eram passos, e vinham em sua direção. Abriu os olhos, ao mesmo tempo em que seu polegar direito puxou o cão da arma, engatilhando-a sem nenhum ruído. Esquadrinhou mais uma vez a mata, com atenção redobrada, fixando-se na margem contrária da sanga. Lá estava ele. Um par de olhos, assim como os seus, buscavam enxergar alguma coisa nas sombras. Apertou ainda mais os olhos, com medo de que o brilho o denunciasse. Sorriu tristemente. O momento de matar se aproximava, e não tinha prazer algum em fazê-lo. Lentamente, puxou a arma pela culatra com a mão direita, para logo ajeitá-la no ombro, em posição de tiro, o cano encostado no tronco de uma pequena árvore. Fez pontaria e esperou.
Com ar assustado, olhando repetidas vezes de um lado a outro, saiu da mata em direção à sanga um soldado. Quase imberbe, era pouco mais que um menino. Transpirava muito, apesar da fresca da tarde, fazendo com que o lenço branco grudasse as pontas em seu peito. O dólman militar, sujo e desabotoado. Levava a carabina na mão esquerda, um balde na direita. Avançou mais dois passos e estacou, desconfiado, o corpo encurvado, como se aquela posição pudesse protegê-lo de um tiro.
Juvêncio o tinha na mira. Atiraria entre os olhos, para poupar ao guri maiores sofrimentos. Jamais errara um tiro daquela distância.
A imagem do filho lhe veio na mente. Deveria ter mais ou menos a mesma idade do soldado. Não tinha notícias da família há muitos meses, e não sabia do paradeiro do menino. Àquelas alturas, provavelmente estaria engajado em algum piquete maragato. Ergueu a cabeça, tirando o soldado da alça de mira. Uma barbaridade matar o menino. E se fosse o meu filho? — Inimigo não se poupa! — ecoou em sua mente a voz do capitão. Mecanicamente, retomou a pontaria.
O soldado, agora de joelhos, lavava o rosto nas águas límpidas da sanga. Depois, com as mãos em concha, saciou a sede.
Juvêncio lembrou dos tempos de guri, quando após longas campereadas sob o sol inclemente dos verões de Uruguaiana, perto dali, fazia o mesmo nas sangas dos campos que o pai capatazeava. Hesitou mais uma vez. Judiação matar o moço! Aquela guerra estava perdida desde a morte do general Gumercindo. Desde então, os maragatos não faziam mais que fugir dos pica-paus, mantendo apenas algumas escaramuças, enquanto os líderes políticos tentavam estabelecer uma paz honrosa com o inimigo. Segundo se dizia, mais de dez mil cristãos já haviam morrido naquela peleia. Ele mesmo já perdera a conta de quantos mandara desta para uma melhor. Sem esboçar reação, assistiu ao jovem encher o balde, erguer-se e sumir pelo mesmo lugar donde surgira. Esperou alguns momentos e atirou a esmo. Depois, ergueu-se de um salto e correu em direção ao acampamento maragato.
Ao aproximar-se do local onde ficava a sentinela adiantada, assoviou para anunciar sua presença. O acampamento ainda ficava a uns quinhentos metros dali. Por detrás do tronco de um umbu surgiu Zeca, tipo retaco, as feições indiáticas. Ao ver Juvêncio, abriu-lhe o sorriso desdentado.
Juvêncio não gostava dele. Mais de uma vez sentira ganas de espancá-lo, ao vê-lo praticando a degola em prisioneiros inimigos.
— Então! Pelou a chiba de mais um pica-pau de merda? — perguntou-lhe Zeca.
— Não. Errei o tiro. — Respondeu secamente Juvêncio, desviando-lhe o olhar.
Zeca deixou de sorrir, desconfiado. — Estou ficando velho. — Arrematou Juvêncio sorrindo, tentando descontrair.
— Ou covarde! — retrucou o outro.
Juvêncio, num gesto lento, puxou a faca da parte de trás da guaiaca com a mão direita, para em seguida movimentá-la três palmos diante do rosto, num funesto e estranho bailado. Zeca imediatamente imitou-lhe o gesto, e com voz rouquenha, provocou:
— Vou sujar minha faca com sangue de um covarde!
— Vou carnear um chancho! — grunhiu Juvêncio com raiva.
Subitamente, como num pesadelo, viu o maxilar inferior de Zeca descolar-se do resto da face, num ruído que misturou estampido de tiro com moer de ossos. Depois, mais um estampido, uma forte fisgada na coxa direita, seguida de uma forte ardência no local. Sentiu-se fraco, perdeu as forças e caiu.
Ao seu lado, Zeca roncava, nos estertorais da morte. Com a vista embaçada, olhou em torno. Um grupo de homens fardados se aproximava. Um soldado debruçou-se sobre ele para examiná-lo. Reconheceu o rapaz que tocaiara na sanga. Olhava-o assustado, os olhos arregalados.
— Capitão! Este ainda está vivo! — gritou o jovem.
— Acabe com ele! Inimigo não se poupa, soldado!
Sentiu a baioneta penetrando dolorosamente no peito, rasgando as costelas. Sua última visão foi a do guri que a empunhava.
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