Francisco nunca pedira nada ao major Trujilo. Agüentara a campanha até aquele momento como um soldado comum, sem regalias. Já tivera vontade de recorrer ao amigo do pai, para quem fora recomendado, mas achara indigno para alguém que se engajara à causa federalista, por livre e espontânea vontade, de acordo com seus ideais. Mais de uma vez os abusos e maus tratos cometidos contra os soldados, degolas e outros crimes do sargento Jerônimo o haviam revoltado, quase o levando a cometer um desatino, mas sempre conseguira se controlar. Tibúrcio, o amigo, gordo, medroso e desajeitado, desde o início fora a vítima predileta do sargento. Agora, Francisco engolia o orgulho, e cabisbaixo, aguardava o major em frente a sua barraca de campanha. Vinha pedir pela vida do amigo de infância, recrutado à força para fazer parte daquela guerra, da qual desertara três dias antes, junto com mais dois companheiros, levando três Conblain e o mesmo número de cavalos. Os outros desertores eram Pedro, o outrora alegre gaiteiro dos primeiros dias de campanha, que calara seu instrumento após o primeiro combate, e o mulato Chico, tipo de pequena estatura, olhos ariscos e modos grosseiros. Foram apanhados por um piquete formado exclusivamente para este fim, dias depois. Estavam famintos e sem os cavalos. O mulato Chico, ferido mortalmente por um pontaço de lança na virilha. Haviam sido emboscados no primeiro dia de fuga por um grupo arredio de índios Coroado, que lhes roubaram cavalos, armas e comida. Chico morrera antes de chegar ao acampamento, para desgosto do sargento.
Lembrou com afeto o menino de feições indiáticas, grandes olhos negros e opacos, gordo e desajeitado, filho único do bolicheiro mais próspero da região do Espinilho, lugarejo situado no meio do caminho entre Santa Helena e a estância de seu pai. A viagem durava um dia inteiro, e a família costumava parar no local para almoçar e descansar. Tibúrcio saboreava cada um daqueles momentos em que Francisco e sua irmã apareciam para visitá-lo, como gostava de dizer, embevecido. Jogavam bolita, atiravam pião, brincavam de pega-pega. Depois, sob o grande umbu frente ao bolicho, contavam as novidades de Santa Helena, cidade em que o filho do bolicheiro só estivera uma vez e pela qual tinha um respeito e admiração quase religiosos. Francisco lembrava do olhar encantado do menino enquanto sua irmã contava, quase sempre com exagero, os fatos e novidades do comércio da cidade.
Na hora de retomarem o caminho para a estância, Tibúrcio, após se despedir dos meninos com um aperto frouxo da mão gorda, abraçando o pai, rebentava num pranto. O pai sorria, acariciando a cabeça do filho, consolando-o. Tinha orgulho daquela amizade. Quando o destacamento voltou com os desertores, Francisco vira a mesma tristeza e desconsolo no olhar suplicante de menino que o amigo lhe lançara.
O ordenança fez sinal para que entrasse na tenda. Francisco tirou o chapéu e adentrou. O Major achava-se sentado frente a uma pequena mesa, sobre a qual havia diversos documentos, e ignorou sua continência. Ergueu-se para cumprimentá-lo afavelmente, sorrindo, apontando uma cadeira em frente à mesa.
— Como vai indo, Francisco? E teu pai, tem tido notícias? — perguntou Trujilo.
— Agora faz mais de quarenta dias que não sei do pessoal de casa, mas espero que estejam com saúde. E a família, Major, como vai? — respondeu Francisco, enquanto sentava, acomodando o chapéu sobre os joelhos.
Ficou impressionado com a mudança que ocorrera com Trujilo naqueles meses de revolução. Não parecia mais aquele homem elegante e galanteador que freqüentava as festas na casa de seu pai. Parecia velho, triste, acabado. Os olhos azuis que tanto encantavam as mulheres nos saraus, quando, com voz empostada, declamava poemas, pareciam cinzentos. O cabelo, outrora grisalho, tornara-se completamente branco, e as finas feições haviam endurecido.
— Mas em que posso ajudar o amigo? — perguntou, franzindo a testa.
— Major, vim lhe fazer um pedido. O que me traz aqui é a situação de um amigo, o soldado Tibúrcio. É um dos desertores, preso ontem à tarde. Corre no acampamento que vai ser fuzilado. É um rapaz humilde, de boa paz, foi recrutado à força. O sargento tem sido duro com ele. Pela nossa amizade, peço que o senhor interceda nesta questão. — Falou Francisco, que apesar do frio, sentia o suor escorrer pelas costas.
Trujilo tocou as pontas do bigode com o indicador e o polegar da mão direita, enquanto parecia olhar para os papéis sobre a mesa. Ficou calado por alguns instantes. Depois, erguendo o rosto lentamente para o rapaz, respondeu:
— Gostaria muito de ajudar o teu amigo, mas o que estás me pedindo foge ao meu controle. Poupar a vida de um desertor é um mau exemplo para a coluna, incentivaria outros a tentar a fuga. Além do mais, foi decidido pelo comando que o grupo desertor deverá enfrentar o pelotão de fuzilamento. Lamento muito, meu amigo, mas não posso fazer nada para mudar a decisão.
Francisco sentiu um frio no estômago e um nó na garganta. Com dificuldade, articulou palavras de agradecimento pela boa vontade do oficial em recebê-lo.
Deixou a barraca. Sempre soubera que dificilmente poderia salvar Tibúrcio, mas nas duas últimas noites mal dormidas, agarrara-se à ilusão de que o Major poderia ajudá-lo. Agora, sabia que o amigo iria morrer, daquela forma triste e indigna. Ao parar para limpar uma lágrima que lhe escorria no rosto, deparou-se com o sorriso do sargento, encostado em uma árvore a poucos metros dali. Sabia o que fora fazer na tenda do Major, e parecia adivinhar seu fracasso. Veterano da guerra do Paraguai, ainda era um homem rijo, apesar de seus mais de cinqüenta anos. Dono de uma crueldade tão grande quanto sua valentia, durante os combates sempre se destacava, cavalgando com desenvoltura em meio a peleia como se fosse invulnerável, incitando seus homens à luta e não dando trégua ao inimigo. Nestas ocasiões se transfigurava, mantendo durante todo o tempo um esgar de fúria sob o grosso bigode e um brilho assassino no olhar.
Em diversas ocasiões, assistira Francisco ajudando Tibúrcio a sobreviver aos combates, quase a arrastá-lo, protegendo-o como se fosse um menino.
Teve ganas de matá-lo. Pensou em seus vinte anos, no desgosto que causaria ao pai, pois certamente teria o mesmo fim do amigo e se conteve, retomando seu caminho.
Depois do almoço, que como sempre constou de carne assada nas brasas, farinha, café e bolacha, receberam ordem unida. Soube por Juvêncio que seria para escolher os membros do pelotão de fuzilamento. Sentiu a cabeça rodar. Naquele momento teve a certeza de que seria escolhido pelo sádico Jerônimo para executar Tibúrcio.
A coluna foi reunida para assistir a execução. Um tenente leu solene a ordem do dia, que incluía o fuzilamento dos desertores. Os oficiais, lado a lado, encaravam severos seus subordinados, numa ameaça velada. Francisco formava com os outros nove elementos do pelotão. Sentia-se fora do corpo, como se ali não estivesse. Teve vergonha pelo amigo, que diferentemente do gaiteiro, que encarava os executores com altivez, chorava como uma criança, os olhos fixados nos seus. Jerônimo comandava o pelotão com visível satisfação. Ouviu a voz de comando: preparar... apontar... Só se deu conta de que havia atirado quando sentiu frouxo no dedo indicador o gatilho da Comblaim. Tibúrcio jazia poucos metros a sua frente, boca aberta, os olhos assustados, perdidos no céu azul do pampa, grandes e opacos como nunca.
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