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CONTOS DE FÉRIAS
A RUA DO ENCANTO E O SEGREDO DO SENADOR
Erinaldo Ferreira do Carmo

Resumo:
Conto 1. A Rua do Encanto Duas vidas em um conto. Quem disse que paralelas não se encontram? Conto 2. O segredo do senador Uma história curiosa da política nacional no cotidiano de Brasília.

CONTOS DE FÉRIAS: A RUA DO ENCANTO E O SEGREDO DO SENADOR
Autor: Erinaldo Ferreira do Carmo


Conto 1. A Rua do Encanto

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Quando voltei a abrir os olhos, já estava no hospital. A maca em movimento e as luzes do teto passando sobre meus olhos. Ouvia gritos da minha mãe. Sua voz era inequívoca, principalmente quando chamava pelo meu nome.
– Carlos, Carlos, meu filho.
A voz ficava mais distante. Quando a maca parou, percebi uma intensa movimentação de médicos em minha volta. Não sentia mais o corpo, apenas notava que faziam uma incisão no meu peito. Voltei a fechar os olhos e tentar dormir. Quem sabe estaria tudo resolvido quando acordasse. Se acordasse. Mas não consegui adormecer. Aproveitei, então, para repassar minha vida.
– Carlinhos, meu querido, vou levar você para casa. – Anunciava a minha nova mãe. – Finalmente!
– Seja muito feliz, meu filho. E comporte-se. – Recomendava Dona Dolores, supervisora do orfanato, conduzindo o casal de jovens até a área de recreação.
Os jovens me apertavam. Choravam de felicidade.
– Você é lindo. – A moça sussurrou com ar de apaixonada. – Nós vamos cuidar de você, tá? Não tenha medo. Venha cá!
Como se pudesse me aproximar ainda mais, seus braços me envolveram e me contraíram no seu colo. Fui tomado agora pelo rapaz, que me salvou de ser esmagado. O casal se deslumbrava comigo enquanto ouvia as recomendações da Dona Dolores.
A supervisora do orfanato parecia passar as explicações sobre um produto: idade, origem, cuidados básicos de manuseio. Ainda explicou sobre as vacinas tomadas, as brincadeiras prediletas e a alimentação saudável. Ou seria um cãozinho? Eu estava confuso, mas feliz. Desta vez poderia viver em uma casa de verdade, com uma família de verdade.
Olhei para o lado, quando já deixava o espaço de recreação em direção ao escritório da supervisora, e avistei o meu irmão, Beto. Ele estava mais triste que em qualquer outro dia. Olhava para cima, tentando me enxergar entre os braços do rapaz que me conduzia.
Não houve despedida. Nem mesmo uma última palavra. Ele tinha apenas oito anos, três a mais que eu, mas já era considerado velho para adoção. Meus novos pais logo justificaram para mim que nos seus planos não havia espaço para dois, e sim para um único filho.
Deveria me sentir feliz por ter sido o escolhido, mas sentia apenas que preenchia o vazio deles. Eu substituía o filho que perderam em um acidente. Eu tinha a mesma idade, quando fui adotado, que o filho perdido. Por sorte, até o meu nome era o mesmo que o dele. A crise no relacionamento foi resolvida, naquele instante, quando optaram pela minha adoção. Eu era uma alternativa para evitar a separação do casal.
Meus primeiros dias na nova casa foram estranhos. Sentia falta dos meninos do orfanato, com quem brincava e brigava. Tentava me consolar com tantos brinquedos novos. Tudo ali era novo, incluindo os pais, as roupas e a escola.
Quando iniciei a vida escolar conheci muitas outras crianças. Eram tantas da minha idade que descobri outro universo, bem mais divertido que o orfanato. Novas brincadeiras, jogos, festas. As festinhas eram comuns. Por serem muitas crianças, quase toda semana tinha alguém aniversariando. Tive minha primeira festa de aniversário. E se repetiu por todos os anos seguintes.
Em uma dessas comemorações encontrei minha mãe chorando. Foi a primeira vez em que a vi chorar de tristeza. Desta festinha meu pai não participou. Ele apareceu apenas no final, deixou o presente e logo foi embora. Foi quando decidi me comportar como homem, em meus primeiros instantes dos dez anos de idade.
– Mãe, você está bem? Você e o pai brigaram?
Ela não respondeu. Tentou me enganar com um sorriso acanhado.
Agora o caminho da escola havia aumentado. Antes, meu pai me levava a pé até a escolinha na mesma rua de casa. Com minha nova série escolar precisei mudar para um colégio um pouco distante.
A condução do colégio passava na rua sempre às sete horas. Minha mãe a esperava comigo em frente ao portão. Alguns poucos garotos já estavam no ônibus quando eu entrava, outros subiam no caminho. No trajeto que se fazia até a escola, em cada rua entravam alguns colegas, exceto ao longo da Rua do Encanto, a área de baixa renda onde passávamos.
A Favela do Encanto surgiu às margens da rodovia que ligava o meu bairro ao colégio, no terreno de uma antiga fazenda de flores. Era um caminho obrigatório. Em um dia, quando observava os barracos desordenados e seus moradores maltrapilhos, fui surpreendido por Lucinha, a loirinha simpática da série superior.
– Meu pai disse que muitos carros desapareceram aqui, como se se encantassem.
Aproveitei a ocasião para iniciar uma linda amizade. Minha melhor amiga... Quase namorada.
Diversas vezes, neste trajeto, visualizei crianças brincando e jogando futebol nas margens da estrada, tão próximos aos carros, e cheguei a perguntar para Lucinha porque eles não iam à escola, como nós. Fiz este percurso por sete anos, até concluir o Ensino Médio. Algumas vezes via um garoto que me fazia lembrar o meu passado no orfanato. Ele era um pouco maior do que eu e se parecia com o meu irmão.
Uma vez a bola foi lançada para a estrada enquanto a condução passava. Quase ele foi atropelado. Depois de uma freada brusca que nos sacudiu dentro do ônibus, voltei imediatamente para a janela para saber o que tinha ocorrido ao garoto. Ele estava bem, mas assustado, e me fintou até o ônibus desaparecer na curva.
Não podia ser ele. Não imaginava como ele estaria agora, mas certamente não era aquele garoto com espinhas no rosto. Também não queria lembrar nada que me levasse de volta ao passado. Não queria nem mesmo que os meus colegas soubessem da minha origem. Estava adaptado àquela vida porque foi assim que o destino quis. Ainda preso ao passado, eu buscava uma fuga no dia a dia, desesperadamente.
O início da minha vida adulta foi a entrada na faculdade. Isto trouxe uma alegria para casa. Até o meu pai apareceu e me presenteou com um carro. Puxa vida! Isso representava uma liberdade, acompanhada de um pesado sentimento de responsabilidade. Claro! Ser adulto é mesmo muito complicado.
Poucas vezes consegui dar carona para Lucinha. Eu só estudava pela manhã, enquanto ela estudava à tarde e trabalhava à noite, em uma livraria na própria faculdade. Mesmo nos finais de semana estávamos sempre ocupados. Assim, conversávamos mais pela internet do que pessoalmente. Pedi para ela entregar um currículo meu na mesma livraria. Com um pouco de sorte, poderia obter o meu primeiro emprego e, o melhor, trabalhar ali, com ela. Agora uma linda loira.
Mas Lucinha estava propensa a deixar o emprego. Era cansativo e a volta para casa muito arriscada. Ontem mesmo ocorreu um assalto ao ônibus onde ela estava, mais precisamente na Rua do Encanto. Levaram, dentre outros pertences de todos os passageiros, sua bolsa com documentos. Por isso resolvi ir buscá-la no trabalho nesta noite. Faria uma surpresa.
O barulho ensurdecedor do pneu me fez parar o carro imediatamente. Parecia uma explosão. Não havia acostamento, pois os barracos quase invadiram o asfalto. Por isso deixei o carro na estrada com o pisca de alerta ligado.
– Droga! Estourou o pneu. Maldito buraco.
Peguei o celular para chamar o socorro mecânico. Enquanto ouvia a gravação, abri o porta malas para agilizar a retirada do pneu reserva e dos equipamentos necessários para a troca. Foi aí que percebi alguém se aproximando. Talvez para ajudar, mas eu estava na Rua do Encanto.
Voltei-me para traz com a chave de rodas na mão. Seria útil para trocar o pneu ou para assustar o inimigo. O estranho já estava prostrado poucos metros atrás de mim. Na escuridão não consegui identificá-lo de imediato. Quando as luzes do alerta acendiam, conseguia visualizar algo em sua mão, parecia uma arma. Esta subiu até ficar apontada para mim.
Pensei no que poderia dizer para acalmá-lo, mas antes que pronunciasse alguma palavra ouvi o disparo. No clarão do tiro enxerguei o seu rosto amedrontado. O identifiquei, mas a bala já seguia o seu curso.

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Quando bateram a grade nas minhas costas foi que a ficha caiu. Percebi que estava perdido mais uma vez. Aliás, sempre estive. Agora, de volta à prisão, deitado na cama de cimento, posso repassar minha vida, como páginas de um livro.
A morte dos meus pais e o afastamento dos parentes me levaram ao orfanato com o meu irmão. Isto não foi ruim de um todo. Ao menos no orfanato tinha comida e não havia goteiras. Consegui roupas limpas e coleguinhas para brincar. Pena que isto não durou muito.
Quando levaram meu irmão, recebi apenas o consolo da velha Dolores:
– Vai chegar a sua vez, Beto.
Seus olhos mentiam, mas não me importei. Não chorei. Naquele momento já conhecia a solidão, a rejeição e a mentira. Era hora de fugir e conhecer o mundo de fora do orfanato. Além da liberdade, consegui outras maravilhas que o dinheiro podia comprar. O difícil era conseguir o dinheiro, mas aprendi rápido. Questão de sobrevivência na rua.
Fui adotado, informalmente, por uma família que cuidava de tantos outros como eu. Depois de ser surrado por não atingir minha quota diária de esmolas, realizei minha segunda fuga. Consegui abrigo com outros meninos de rua na Favela do Encanto.
Lembro-me da primeira informação passada por um dos novos colegas de rua:
– Sabe de onde vem esse nome da favela? Quem passava por aqui antes da invasão via uma plantação de rosas e ficava encantado.
Como aprendi a duvidar das pessoas, nem acreditei. Acho que a favela ganhou esse nome por causa da estrada que a corta. Quantas favelas têm uma rua asfaltada como esta?
Mas a rodovia, tão importante para os moradores da comunidade e dos bairros vizinhos, também era muito perigosa. Alguns colegas perderam a vida ali. Eu mesmo quase fui atropelado quando tentei apanhar a bola na estrada. Naquele dia, depois do susto, fiquei intrigado com o menino que me olhava da janela do ônibus escolar. Ele me fez lembrar meu irmãozinho.
– O que fizeram dele? – Falei sem que os meus colegas ouvissem. – Tomara que tenha uma sorte melhor que a minha. Ao menos foi levado por uma família bacana.
A rodovia também permitia a chegada rápida da polícia. Na minha primeira prisão, todos correram para se esconder em seus barracos. Como eu não tinha para onde correr, fui preso facilmente. Mais uma vez fugi. Muros nunca impediram minha fuga. Difícil mesmo era fugir do frio, da fome, do medo. Preso ao presente, eu precisava fugir ferozmente da miséria cotidiana.
– Da última vez em que fui preso ainda era menor de idade. Desta vez estou em maus lençóis. E ele? Será que morreu?
Para dificultar a chegada das viaturas policiais e os constantes atropelamentos, resolvi abrir alguns buracos na estrada. Funcionavam como lombadas. A redução de velocidade ainda permitia ganhar a carteira de alguns motoristas. Ontem, em mais uma aventura, tive a maior surpresa da minha vida. Em uma das bolsas roubadas no ônibus, de uma loiraça, encontrei um currículo. Aquela foto chamou a minha atenção. Era um rosto familiar, o nome igual ao do meu irmão e a idade batia. Coincidência?
Resolvi investigar. Só precisava ligar para o número que estava ali escrito. Passei o dia inteiro tentando ganhar um celular. O meu estava sem crédito. Ao anoitecer fui atraído por um barulho na estrada. Percebi aquele carro parado no escuro e achei que pudesse dar o ganho no celular do cara. Talvez a carteira também.
Há poucos metros do carro vi o rapaz se voltar para mim com as mãos ocupadas. Uma segurava o telefone, na outra havia algo que parecia ser uma arma. Então resolvi não arriscar. Precisava atirar primeiro. No clarão do tiro enxerguei o seu rosto amedrontado. O identifiquei, mas a bala já seguia o seu curso.

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Conto 2. O segredo do senador

Dezembro em Brasília. O clima natalino deixa a Capital mais iluminada e colorida. Há um visível esvaziamento da cidade, com menos movimento nos prédios públicos, vagas ociosas nos estacionamentos, rodoviária e aeroporto mais calmos. Diferente de sua agitação típica, a cidade parece fleuma nesta época do ano.
Ao contrário dos demais espaços, na residência do senador Roberto Rodrigues ainda há bastante movimentação política em meio às festinhas privadas, como em qualquer outra época do ano. Os muros altos do casarão, cobertos por gramíneas verdes, escondem as reuniões informais que acontecem lá dentro.
Semanalmente, sempre às sextas-feiras, os restritos convidados, empresários, políticos e gestores públicos do alto escalão, que não saem de Brasília nos finais de semana, ao contrário da grande maioria, disputam um convite para a festinha do senador Rodrigues.
Excelente oportunidade para fazer políticas e negócios, os frequentadores da festa não escondem o interesse em participar dos encontros providenciais. Muitos se oferecem, mas os assessores que organizam as festinhas seguem o rigoroso controle do senador, que sempre dá a palavra final sobre quem deve ou não participar.
O chefe da segurança da residência, homem de confiança do senador, é o discreto Calado, chamado assim não exatamente por ser de poucas palavras e reservado ao seu papel na casa, mas por ser este o seu último nome. José da Silva Calado mora na periferia da Capital e é por lá que arregimenta funcionárias para a residência do senador.
– Você vai trabalhar na limpeza. Nas sextas o expediente se estende por toda a madrugada. Aí você também pode ser requisitada para servir aos convidados. – Calado convida a namorada Dulce a assumir uma vaga na casa do senador. – O importante é não se esquecer de não falar, não ver e não ouvir nada. Tudo o que acontece naquela mansão é sigiloso.
Esta é uma recomendação sempre passada pelo segurança a todos os funcionários. Tudo o que acontece na casa não pode sair dela. A preocupação maior é com algumas garotas contratadas para animar as noites e deixar os convidados à vontade. Elas são convocadas semanalmente pelo chefe da segurança e sempre recebem a mesma recomendação.

Janeiro, o ano político ainda não começou. Nos prédios públicos pouco movimento, assim como nas estradas. À noite a iluminação de Natal ainda dá brilho às largas avenidas da cidade. Na rua onde mora o senador os carros fazem fila na entrada da mansão, onde são identificados pela guarda particular. O esquema de segurança, comandado por José Calado, conta com servidores do Senado que fazem esta atividade extra com remuneração bastante gorda.
Os vidros dos automóveis baixam levemente para que os seguranças identifiquem seus condutores. As placas dos veículos também são checadas. Só entram convidados. Até a meia-noite é assim a movimentação na entrada da mansão. Após isto, o sossego da rua só é quebrado novamente na saída dos convidados, sempre ao amanhecer do sábado.
Dulce percorre o salão com uma bandeja recolhendo taças vazias. Desde o seu primeiro dia de trabalho, não se preocupa em identificar as personalidades ali presentes, exceto o senador, dono da festa, e alguns políticos que ela já vira na propaganda eleitoral, mas nem recorda bem os nomes.
Já de manhã, todos os convidados haviam saído, Dulce recolhe as taças, pontas de cigarro, restos de comidas. Como parte do seu ofício, entra em todos os cômodos da casa para fazer a faxina.
No dormitório do senador encontra, entre outros lixos jogados no chão, um envelope de preservativo. Procura um pouco mais e logo acha embaixo da cama o preservativo usado. Utilizando luvas, e demonstrando certo nojo, recolhe a camisinha e a lança no saco de lixo.
O barulho da porta a assusta. Enrolado em uma toalha, o senador sai do banheiro e também se surpreende com a funcionária. Surpresa ao ver um homem tão importante do meio político nacional em traje tão impróprio, Dulce sussurra apenas um tímido bom dia e deixa o ambiente.
– Ficou maluca? Você não pode entrar no quarto do senador sem ter a certeza de que ele está fora. – Reclama Calado depois de ouvir o relato de Dulce.
Nas sextas-feiras seguintes a funcionária age prudentemente. Transita pelo salão transportando a bandeja e circula entre os figurões como se não existisse. Ninguém a nota ou se importa com sua presença ali. Continuam falando de políticas e negócios, fazendo planos e transações geralmente sórdidas.

Fevereiro, noite de sexta, a movimentação na rua contrasta ainda mais com o deserto da cidade. O Carnaval deixa Brasília ainda mais vazia, mas na rua do senador Rodrigues a movimentação permanece constante. Esta festa é mais descontraída que as anteriores. Pouco se fala em negócios, não há moderação no uso de bebidas, alguns se vestem com cores mais alegres, principalmente as garotas contratadas por Calado, que até reduziram suas roupas.
Na manhã do sábado pós-carnaval, na faxina do quarto principal da casa, o do senador, Dulce encontra outro preservativo, desta vez jogado na lixeira do banheiro. Pensa bastante. Interrompe o trabalho e senta na bacia sanitária. De braços cruzados finta o teto. Continua pensando.
Decide! Corre até a porta do quarto, tranca a fechadura e deita-se na cama. Ainda reflexiva, baixa a roupa íntima e, numa habilidade ensaiada, vira a camisinha pelo avesso introduzindo-a na vagina com o dedo indicador. Assim permanece quieta por alguns minutos.
Aguardava angustiadamente por esta coincidência: estar em período fértil e encontrar uma camisinha do senador. Sentindo-se realizada, para seu serviço na casa e vai embora. Comunica ao namorado que está passando mal depois de trabalhar ininterruptamente por toda a noite e madrugada.

Março. O ano começa realmente na Capital. Por ser um ano eleitoral, as estratégias para o pleito começam a ser planejadas pelo senador, sua equipe e convidados. Nomes de políticos são lançados e descartados a cada instante. Dulce fica surpresa em saber que os primeiros acordos pré-eleitorais nascem em ambientes como este e desta forma. As discussões sempre duram por um longo tempo.

Abril não é diferente. Os debates são tão intensos que as madrugadas se passam mais rapidamente. As horas são insuficientes para os acordos e os participantes deixam continuamente a agenda de discussões para a próxima sexta. Lembram sempre de outros nomes que devem ser convocados para as discussões seguintes. Neste momento a quantidade de frequentadores da casa é bem maior.
Mas, apesar do maior número de homens na casa, as garotas contratadas para animar os encontros formam grupinhos afastados das discussões. É que neste período elas são menos requisitadas. Os homens de políticas e negócios estão mais ocupados.

Maio, o clima ameno da Capital parece diferir do clima da casa do senador. As discussões parecem mais acaloradas. Até mesmo a utilização dos quartos da mansão é reduzida. As cenas de orgia já não são tão comuns. Calado revela para Dulce que neste período economiza contratando menos garotas. Dulce, quando para um instante de servir, contempla as mulheres em seus lindos vestidos, saltos, cabelos e joias.
– Eu não me incomodo com essas garotas de programa. – Comenta a cozinheira da casa, percebendo que Dulce as observa. – Não se preocupe meu bem. Faça o seu trabalho e não ligue para elas.
Dulce continua contemplativa até receber outra bandeja e a indicação de voltar ao salão. Antes de deixar a cozinha ouve a conclusão da colega:
– Acho que é por isso que usamos uniformes. Para não sermos confundidas com elas.
Ao contrário da cozinheira, Dulce não despreza aquelas mulheres, e sim as inveja. Sabe que poderia ser uma delas, diferentemente das demais mulheres que trabalham ali na cozinha e na faxina, que nunca serão confundidas com uma daquelas garotas e jamais serão assediadas por um daqueles homens. Há mais que um uniforme separando as funcionárias da casa e as mulheres esculturais contratadas por Calado e cobiçadas pelos amigos do senador.
A sensação de estar do lado errado, trabalhando numa função menos rentável na casa, deixa Dulce irritada com o seu namorado. Não fosse o fato de namorarem, ela seria contratada para a outra função. Assim, culpa Calado por sua situação de desvantagem na casa e por ira passa a evitá-lo.

Junho. Preocupado com o estado de saúde da namorada, que age de forma esquisita no trabalho há quase um mês, Calado a visita em casa no final da tarde. Fica feliz em saber que ela está bem melhor. Seu rosto feliz o faz sugerir fazerem amor, sendo imediatamente contrariado por ela.
O plano de Calado, de morar definitivamente com Dulce, parece cada vez mais distante. Estão juntos há pouco tempo, desde que se conheceram quando ele começou a frequentar o bairro dela na procura de garotas para o trabalho na casa do senador. Dulce foi uma conquista que Calado quis para si como mulher, por isso não a indicou para o trabalho de atendimento íntimo. Ela despertou nele uma paixão que o levou a pensar em casamento e filhos. Ao menos ele continua pensando assim. Ela sempre se retrai quanto a este assunto.
– Casar só depois de estar estabelecida. Preciso ter uma boa renda, uma casa confortável... – Justifica diante a insistência do namorado. – E não posso ter um filho com você. Não vou ser irresponsável para colocar mais um pobre no mundo.
– Você não se contenta com a pobreza, não é? – Protesta. – Vai ficar esperando um príncipe rico enquanto despreza a vida. Quando perceber, vai ser tarde demais. Nem príncipe, nem vida.
– Que vida! Ficar o dia inteiro na cozinha lavando pratos, passar a madrugada servindo uísque, limpar a casa dos outros enquanto não posso cuidar da minha própria! Você acha que isto é viver?

Julho. A relação entre Dulce e Calado permanece instável. Desde a última discussão não desfrutam de nenhum momento juntos, porque as desculpas de Dulce se modificam a cada encontro numa criatividade atípica para quem dizia gosta de alguém, de forma que Calado a procura cada vez menos. E toda vez que se cruzam no trabalho surge uma nova discussão, de forma que já evitam até mesmo a troca de olhares. Assim, Calado sequer percebe a alteração no corpo de Dulce. Em um desses momentos de bate-boca, ela insiste na recusa de ter uma vida simples ao lado dele.
– Não quero mais.
A decisão de Dulce impressiona Calado, que percebe o clima desfavorável e a deixa em paz. Embora ainda deseje desfrutar de bons momentos com a mulher que ele gosta, resiste aos seus desejos e decide parar. Neste momento esta é a melhor saída, imaginando que terá outros dias mais tranquilos para reconquistá-la. Afinal, com o trabalho na casa do senador estarão sempre mais próximos.
Os dias que seguem a este são calmos aos dois. Calado e Dulce raramente se falam na mansão e não se encontram mais fora do expediente.

Agosto. Verão em Brasília: canteiros secos e asfalto quente nas avenidas do Planalto Central. A poeira vermelha sobre os automóveis estacionados indica a sequidão do local. Verde, apenas no entorno do lago Paranoá, incluindo a mansão do senador Rodrigues, onde o cenário não se altera com o clima.
A campanha para reeleger o senador já está lançada. O material de divulgação se espalha pelas ruas do Distrito Federal com cartazes que pregam a ética na política e nos negócios. Esta é a bandeira central da campanha do senador, aprovada em uma das festas entre políticos corruptos e empresários fraudadores.
As trocas de favores ocorridas durante o seu primeiro mandato em alianças com grandes grupos empresariais, incluindo banqueiros e empreiteiros, garante ao senador recursos suficientes para uma campanha majoritária bem sucedida. Os custos da campanha, definidos por aliados e financiadores, refletem o poder de influência e barganha do senador.

Setembro, o senador vai acompanhar a Parada e os demais funcionários da mansão são dispensados. Dulce e Calado se encontram, inevitavelmente, na casa vazia. O feriado da Independência permite aos dois ficarem sozinhos no trabalho. Dulce reclama do calor insuportável. Calado reclama da falta de uma companhia. Ambos trocam palavras afáveis, bem diferentes do último encontro. Mas nada além.
Percebendo a frieza da mulher e sua recusa em dialogar sobre o motivo do afastamento, Calado resolve pressioná-la com aspereza. Só assim compreende o ocorrido, para sua breve felicidade, acompanhada por uma longa e forte decepção.
– Eu estou grávida.
Com ar de surpresa, ele franje a testa em demonstração de dúvida e certeza. O afastamento e sua falta de atenção não o deixaram identificar a gravidez. O uniforme também dificultou. Volta a fazer o mesmo gesto quanto ela afirma que ainda não sabe quem é o pai.
Após um longo silêncio ele se move, caminhando para traz e fintando-a até alcançar a porta. Desaparece na rua saindo do campo de visão de Dulce, que respira fundo, aliviada por ter contado a primeira parte da notícia. A segunda seria contar de quem está grávida, mas esta seria uma informação a ser contada primeiramente ao senador.
Trabalhando na mansão do Rodrigues, fica fácil conseguir materiais para o teste. Coleta uns fios de cabelo, pontas de cigarro, lenços usados e até mesmo contonetes. Coloca tudo separadamente em envelopes plásticos e guarda-os seguramente consigo até a hora de ir embora. Já havia traçado toda a estratégia: com suas economias pagará por um exame de DNA. De posse do resultado do exame, irá procurar o senador para exigir-lhe a paternidade do filho. A partir desta imposição conseguirá negociar um acordo, incluindo o aborto, se a recompensa for vantajosa. Difícil mesmo será esperar em silêncio até sair o resultado do exame.
Um dia de dois tristes: José Calado chora disfarçadamente cada vez que observa Dulce, aos prantos, nos seus afazeres. Sua meta de formar uma família com aquela mulher declinou. Dulce, por sua vez, chora ostensivamente em todos os cantos da casa. Não reprime a ira desde que recebeu o resultado do exame. Ainda não sabe quem é o homem responsável pela sua gravidez.
O resultado negativo do exame a faz traçar novas rotas e levantar novas investigações para sua causa: a quem pertencia aquele esperma recolhido em uma camisinha encontrada no quarto do senador? Qual frequentador da casa teria tamanha liberdade para levar uma mulher ao quarto do senador? E como encontraria elementos para descobrir o pai e cobrar-lhe dinheiro?
Com a alta rotatividade dos frequentadores da festa, a dúvida de Dulce se multiplica a cada sexta-feira. Passeando no salão ela olha cada rosto, tenta encontrar uma pista. Novos participantes se misturam aos antigos. Alguns são mais constantes, outros aparecem esporadicamente. Não consegue lembrar quem estava na festa no dia em que fez a inseminação. Conversa com outras empregadas para levantar dados, colhe nomes de desconhecidos, pesquisa o grau de relação destes com o dono da festa. Sobre cada suspeito pergunta a ocupação, se é casado, se costuma transar quando está ali. Mas, para estas perguntas, suas colegas de trabalho não sabem as respostas. Nem mesmo as garotas contratadas para divertir os convidados conhecem bem seus clientes.
Nada. Nenhuma pista acalenta Dulce, que já começa a se desesperar. Para deixá-la mais intrigada, ouve de uma companheira de trabalho, mais antiga e experiente, que jamais um casal teria a autorização do senador para usar o seu quarto. Por isso há vários outros quartos na casa. Outra, também mais antiga no trabalho, registra que nunca uma mulher entrara no quarto do senador. Esta até levanta a suspeita de que ele não se envolve com mulheres.
Como uma atividade rotineira, desde o seu primeiro dia de trabalho, Dulce entra no quarto do senador para fazer a faxina. Displicente, pela situação que a envolve, não lembra a recomendação de Calado para não entrar no quarto até ter a certeza de que o senador está fora. Surpresa ao perceber um rapaz deitado na cama, bate a porta e sai apressadamente pelo corredor até a cozinha, cruza com o senador que caminha em direção ao quarto com um copo d’água e, provavelmente, um frasco de medicamento. Já na cozinha, ela pega o casaco, vesti-o sobre o uniforme e caminha para a porta de saída dos empregados. Permanece caminhando apressadamente de cabeça baixa até passar na portaria.
– Dulce, Dulce. Espere.
Ouve a voz do ex-namorado, mas não quer parar. Tenta fugir para não dar explicações. Apenas retém os passos e volta o rosto quando ouve atrás de si a entonação da voz ficar mais grave.
– Dulce. O que houve? – Ele pergunta preocupado. – O que você fez, menina?
Ela, sem entender, apenas sobe os ombros. Pensa que o questionamento tem relação com a gravidez e passa a mão sobre a barriga.
– O Doutor Rodrigues acabou de ligar para a portaria. Pediu para evitar a sua volta e disse que você está demitida. – Suspira para poder continuar. – Falei que você estava grávida. Mesmo assim ele quer você fora daqui. Fala pra mim, Dulce... O que você fez.
– Esqueci. – Lamenta Dulce.
– Esqueceu o que? Fala!
– Esqueci a sua recomendação e entrei novamente no quarto do senador. Tinha outra pessoa lá... Um rapaz. E eu fechei a porta rapidamente... E corri, mas o senador me viu.
Fala pausadamente porque pensa enquanto organiza as frases. Como fará agora, fora da casa, para continuar suas investigações sobre o pai do filho que espera?
Desempregada, Dulce passa os dias sem reação à vida. Recebe diversas visitas do ex-namorado, que tenta uma reconciliação, mas o medo de ter falhado a deixa sem ânimo. Pensa até mesmo em produzir um aborto, mas no fundo ainda alimenta uma esperança de identificar o homem que lhe tiraria da pobreza. Isto a consola. A única certeza que tem é a de que apenas ricos participam das festinhas do senador Rodrigues. Um deles, obviamente, será chantageado mais cedo ou mais tarde.

Outubro, a agitação eleitoral toma conta da Capital, assim como de todo o país, mas parece que em Brasília os efeitos são mais efervescentes. Período eleitoral em Brasília é esquisito: ao mesmo tempo em que todos parecem agitados, tudo parece tão estático. A cidade para enquanto as pessoas correm.
Depressiva em seu sofá, Dulce não tem muita alternativa a não se ver televisão e ler revistas de fofoca. Muitas apresentam mães ricas e perfeitas, no formato dos seus sonhos. A imagem seguinte na TV a faz tirar rapidamente os olhos da revista. É a campanha do senador Roberto Rodrigues, candidato à reeleição. Anunciando novas pesquisas eleitorais, a propaganda afirma que o senador é o franco favorito, tendo sua campanha atingido a aceitação máxima dos eleitores.
Mas é um rosto que aparece em meio ao grupo de apoio ao senador o que chama a atenção de Dulce. O rapaz que está ao fundo da tela, enquanto o candidato faz a entrevista, é familiar. Forçando a memória ela logo se lembra do jovem que estava no quarto do senador no dia de sua demissão.
Desperta, como quem acorda de um sono profundo, Dulce inicia uma busca por qualquer informação sobre aquele rapaz. Rosto jovem, corpo atlético, jeito de garotão aventureiro, aquele perfil não foi esquecido por ela. Lembra-se de tê-lo visto na festa consumindo drogas em um canto do jardim. Certamente é o amante do senador; o alvo de sua gravidez. Liga para as poucas amigas, pesquisa na internet, percorre a cidade procurando em academias. Não consegue nada. Nem sabe o nome dele, o que dificulta a pesquisa. Ninguém consegue dar uma pista favorável. Isto serve para lhe aproximar outra vez de Calado.
O pedido por telefone o faz ir novamente à casa de Dulce. A ex-namorada está mais bonita, reagindo à vida. As roupas largas e estampadas deixam transparecer a saliência da barriga. Os olhares se cruzam enquanto ambos trocam sorrisos. Ele está curioso para saber o porquê do convite.
A verdade contada por Dulce não obtém sua compreensão e ele se recusa a colaborar. Esclarece que o jovem descrito é conhecido, mas nega que o senador tenha relações homossexuais com aquele rapaz. Ainda pede insistentemente para ela esquecer toda essa história, ao menos até passar a eleição, e a fez prometer que não atrapalhará a campanha do senador.
Sem discordar, Dulce se compromete a esquecer o caso e assim o faz soltar mais algumas informações sobre o rapaz, inclusive o seu nome. Isto facilitará sua busca. Descobre que é um estudante universitário, filho de um empresário também frequentador das festinhas. O rapaz, de 17 anos, está contratado para estagiar em uma empresa responsável pelo marketing eleitoral da campanha do senador.
Tino é o nome do procurado. Constantino lembra um bad-boy que não combina o estilo ao nome. Assim ficou conhecido simplesmente como Tino. A mais conturbada notícia da vida daquele jovem é dada em meio a uma reunião de trabalho no comitê do partido. Sem ter agendado a visita, Dulce entra na sala de gestão, aguarda meio minuto paralisada na porta e, indisposta a esperar mais, entra na sala tomando a direção da mesa oval onde sua vítima discute aos gritos com outros homens. Prostra-se ao lado do rapaz, que não percebe sua presença, e lhe passa o bilhete. Sai da mesma forma que entrou, sem ser notada.
“Querido Tino,
Tenho duas notícias bombásticas para lhe dar:
Primeira, sei de sua relação com o senador;
Segunda, estou esperando um filho seu.
O aguardo lá fora.
Dulce.”
Menos de meio minuto esperando e a porta se abre. Tino, com cara de assustado, surge a sua frente.
– Que brincadeira é essa?
– Já perdi muito tempo, garoto. Portanto vou ser direta. Encontrei uma camisinha usada no quarto do senador. Recolhi o esperma e, como você pode ver, estou grávida.
O rapaz amassa o papel com a mão e o lança ao chão, nos pés de Dulce.
– O que você quer, sua vadia?
– Bem sei que você não tem grana. Mas o senador pode pagar um bom valor para a imprensa não tomar conhecimento desse caso. Ligo para você amanhã, quando estiver mais calmo.
Ela se afasta vagarosamente enquanto ele não consegue reagir, apenas a observa. Desorientado, ele apanha o bilhete do chão e o desamassa, para em seguida guardá-lo no bolso e continua a observá-la caminhando como quem triunfa.
Reta final das eleições, a agitação é enlouquecedora na casa do senador. As ruas estão cheias de carros e o entra e sai enlouquece os seguranças. Todos tentam falar com o candidato e não o encontram pela casa. Reservados no escritório, apenas Rodrigues e Tino conversam:
– A vadia acha que está grávida de mim. – Argumenta Tino. – E ela ainda imagina que temos um caso, só por ter me visto no seu quarto. – desabafa. – Pior se ela descobrir que você é quem é o pai, já que o preservativo encontrado só pode ter sido seu.
Tino lembra que foi levado ao quarto naquela noite a pedido do próprio senador depois que foi encontrado desmaiado no jardim por ter consumido drogas em demasia. Os amigos o encontraram e o esconderam para que seu pai não o encontrasse naquele estado.
– Ela pode ter gravado os meus encontros, pode até ter fotos.
– Ela já teria usado essa arma, caso a tivesse. Conclui o rapaz.
– Não quero arriscar. Vamos apelar para a solução definitiva. Peça ao chefe da segurança para adiantar as coisas. Ele é meu funcionário de confiança e vai me ajudar.
– Tem certeza, senador. Podemos negociar. Ela só quer dinheiro. Pagamos e pedimos para ela retirar a criança.
– Sem acordo!
Calado é chamado em uma conversa reservada onde recebe a missão de calar a chantagista.
– Aquela piranha que você trouxe para trabalhar aqui... Lembra? A que demitimos no mês passado? Ela está nos trazendo problemas muito graves. De todas que você nos trouxe, esta foi a pior.
– Vou conversar com ela, doutor Rodrigues.
– Não quero que você converse. Quero que ela não fale mais. – Esbravejou. Depois se conteve, fixou em seus olhos e reforçou: – Não quero que ela fale mais, entendeu?
– Sim senhor. – Quase que sem voz responde ao patrão ainda sem saber que providência tomar. Sabe que não pode decepcioná-lo, nem fazer com a mulher que gosta o jogo sujo que já fizera no seu passado com outros desafetos do patrão como parte de sua função naquela casa. É esta função marginal que dá ao segurança o estado de homem de confiança do senador. Conclui a conversa em uma frase: – Vou providenciar.
Não consegue dormir e vai até a casa de Dulce em plena madrugada. Discute, xinga, ameaça, em um instante de fúria chega a bater em seu rosto. O homem teme trazer de volta o seu passado de bandido diante daquela mulher. Acalma-se.
– Você tem que sair daqui. Vá embora. Você tem parentes em Goiás. O que eu posso fazer é ajudar com a passagem e lhe enviar algum dinheiro.
Calado tenta convencê-la a desaparecer da cidade. Assume que será punido pelo patrão se este desconfiar que ele não executou o serviço encomendado. Além de perder o emprego, correrá o risco de morte, pois outros serão encarregados de eliminar, tanto a mulher que ameaça a reeleição do senador, quanto o mau funcionário que sabe demais e também será visto como uma ameaça.
– Eu pedi para você não fazer nada disso. Mais uma vez você não me ouviu. Eu estou temendo pelo que pode acontecer a nós dois. – Lamentou. – Nós três. – Corrigiu observando a barriga dela.
Depois de muitos gritos, a mulher é convencida de que a melhor solução é deixar a cidade. Enche a mala com as coisas mais necessárias e é conduzida até a rodoviária. O ônibus a levara para Goiânia, onde tomará outro para o interior, uma cidadezinha onde moram seus pais.
Rodrigues percebe que seu homem de confiança trabalha normalmente naquele dia. Não pergunta nada sobre a realização do serviço, pois tem a certeza de que o bom funcionário não falha. Em outros casos, no passado, nem tomava conhecimento das tragédias pelos jornais, porque o serviço era tão bem executado que não havia marcas, nem notícias. Também prefere não saber sobre as formas cruéis de desaparecimento das vítimas por ele indicadas.
Longe do perigo, supostamente, e passando privações, Dulce volta a agir. Decide não desperdiçar esta oportunidade única de conseguir dinheiro. Só precisa tomar cuidado para não revelar ao senador que está viva, nem contrariar seu ex-amante e algoz latente. A gestante volta para Brasília e busca refúgio com um candidato opositor, Eduardo Santos, que aparece na segunda colocação nas pesquisas, mas sem chances de vitória.
– Ainda que pudéssemos mostrar você em nossa propaganda, fazendo acusações deste tipo, não teríamos nada de bombástico que abalasse a campanha de Rodrigues. É só uma garota esperta que quer ferrar o ex-patrão. Deduz um assessor do candidato de oposição. – Vão descobrir que ele é um canalha e isso vai lhe custar a perda de alguns votos femininos, apenas isso. – Externa com descaso. – O que mais você pode nos dizer sobre ele? Algo que nos sirva realmente.
– Ele tem relações com garotos, menores de idade.
Silêncio por alguns instantes, até os poucos presentes desmancharem suas caras de estarrecidos e as transformarem em alucinados, como se descobrissem a salvação para todos os problemas do mundo. Ao menos para o mundo do candidato Santos.
– Isto é verdade?
– Onde ele faz isto?
– Você tem provas?
– Podemos confiar?
– Você presenciou?
– Pode nos passar o contato de algum desses meninos?
– Você não está blefando, está?
Dulce não consegue responder. Não pode dar atenção a um questionador porque o outro logo a chama com outra pergunta. A chuva de questões a mantém sem poder falar. Até que ela pede calma e convida a todos para sentarem-se próximos, no que é atendida prontamente. Os assessores do candidato a cercaram como se vissem nela a última esperança.
O depoimento da mulher desperta muito interesse no grupo, mas inda precisa de uma confirmação, uma prova factível. Diante da novidade que pode inverter a eleição já na reta final, os assessores abreviam a reunião e vão tratar diretamente com o candidato uma nova estratégia de campanha, utilizando esta arma, ainda sem munição.
De volta ao interior de Goiás, Dulce passa os últimos dias que antecedem a eleição na expectativa de que Roberto Rodrigues seja denunciado e punido nas urnas pelos eleitores.
Sem nenhuma alteração no final da campanha, o senador Roberto Rodrigues é reeleito com uma ampla vantagem na contabilização dos votos. O candidato Santos, como apontavam as pesquisas, obtém uma votação inexpressiva.
Dia seguinte às eleições, Dulce resolve ir até o comitê do candidato derrotado. Não quer uma explicação, mas apenas desabafar. É isso o que fez ao entrar na sala. Onde antes havia assessores em reunião, agora ela enxerga apenas papeis no chão e uma imensa mesa vazia. No fundo da sala, apenas o funcionário que a havia recebido no momento em que fez a denúncia.
– Pode me explicar o que aconteceu? Não divulgaram nada contra o Rodrigues. Havia um acordo de cavalheiros entre os candidatos? – Reclama Dulce.
O assessor apenas observa a mulher em pé a sua frente e continua limpando as gavetas de sua mesa.
– Deveriam ter lançado a denuncia na mídia. Poderiam ter mudado o resultado do pleito. Não entendo porque não usaram isto. – Continua reclamando.
Sem dar ouvidos à reclamante, o rapaz continua retirando papeis e objetos das gavetas e enchendo mais uma caixa. Um disco de imagens é localizado entre os cartazes e panfletos e passado para ela.
Sem entender o sentido da ação, Dulce leva um tempo até estender a mão para receber o disco. Faz um movimento com a cabeça para registrar que continua sem entender nada.
– Não encontramos provas do que você nos falou. Implantamos um detetive na cola do Rodrigues. Montamos um comando de espionagem na mesma rua dele. Acompanhamos uma festinha da sexta. Queríamos uma imagem que flagrasse o seu relacionamento com garotos. Só conseguimos isto.
Decepcionada, Dulce o deixa em paz limpando suas gavetas. Guarda o disco na bolsa e sai calmamente da sala.

Novembro. A chuva é convidativa para assistir TV. Dulce toma coragem e do fundo da gaveta desarrumada, sob roupas jogadas, retira o DVD.
O janelão do quarto do senador Rodrigues está aberto, como em cada manhã. Na claridade matinal é possível enxergar a movimentação lá dentro. Nas primeiras cenas apenas ele passa algumas vezes no ângulo alcançado pela câmera. Depois de alguns instantes sem movimento algum, surge a empregada para a limpeza do quarto
Dulce paralisa a reprodução do disco e lembra os dias em que ela fazia aquela atividade de faxina. O sonho de mudar de vida pareceu mais próximo quando encontrou, naquele mesmo quarto, uma camisinha que pensou ter sido usada pelo senador. Agora, numa desilusão grandiosa, ainda sem saber quem é o pai secreto do seu filho, solta a pausa no controle remoto e volta a prestar atenção no vídeo.
Depois de acelerar a reprodução, volta à velocidade normal quando nota uma movimentação na imagem. No escurecer do dia, a luz do quarto ascende e o senador passa do banheiro em direção à cama. Alguém, que acabara de entrar, passa na mesma direção da cama. É um outro homem que, ainda de pé, tira a roupa e se move vagarosamente para o encontro do senador. A luz é apagada e, de costas para a janela, o estranho se desloca para o banheiro. Não dá para identificar quem está no quarto com o senador, mas certamente não é o mesmo rapaz que ela denunciou.
Mais alguns minutos de expectativa e a cena registra mais movimentos do homem estranho. Agora ela assiste à filmagem com mais atenção. De repente, aquela pessoa lhe parece familiar. O homem reaparece seguidamente, mas o seu rosto não se volta para a janela. Os dois continuam no quarto, mas não podem ser identificados.
O choro do bebê a faz paralisar outra vez a reprodução. Ela se afasta até o berço e logo em seguida, movida pela intensa curiosidade de ver na tela a revelação do que tanto a angustia, volta ao sofá com a criança no colo. Solta a pausa.
Mais alguns segundos de espera e Dulce abre bem os olhos e leva a mão à boca. O estranho está identificado. Estarrecida, ela descobre o amante do senador. No instante em que o homem se levanta e, com o rosto soado aparece na janela, a luz externa ilumina um pouco o seu rosto. A imagem não é tão nítida e não permitiria a outra pessoa identificá-lo, mas ela conhece bem aquela face. Paralisada, apenas murmura:
– Calado!


Biografia:
Professor, Cientista Político e Sociólogo e-mail: erinaldocarmo@gmail.com
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Crônicas A crônica de Lala Erinaldo Ferreira do Carmo
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