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Crônica do livro ´´O desmonte de Vênus ``, Ed. Totalidade
Alexandru Solomon

Edivaldo caminha apressadamente. Calor do cão. O envelope debaixo de sua camisa está empapado de suor. Deixá-lo à mostra, nem pensar. É preciso entregar a grana e voltar rapidinho para casa. Precisa chegar depressinha na Avenida Presidente Vargas e entregar a encomenda a um tal de Serafim, que o espera lá, lendo o jornal dos Sports. Disseram-lhe que era para não se atrasar. Faltam menos de quinze minutos e ele já está na Praça XV, movimentada e cheirosa como sempre. Acelera o passo. Quanto antes se livrar daquilo, melhor. Ganhar cem reais não é pouca coisa. Ele sabe que está carregando dinheiro de venda de droga. Quando Zelão o convidou para ganhar uma grana no maior mole, ele foi logo dizendo que não ia mexer com droga. Achava uma roubada.
— Mas dinheiro tu pode, ou vai dar uma de anjinho?
— Que é isso? Grana não tem nada demais. Não tem cheiro.
— Então leve nesse endereço e fique esperto.
— Feito. — Dentro de uns dez minutos estará livre desse pacote... sentiu, nem precisou olhar para trás, que o estavam seguindo. Apertou o passo. Veio o trança-pé. Com o empurrão, estatelou-se no chão.
— Calma, garoto, quer se machucar, olhe por onde anda! — estava cercado por três galalaus —. Passe a bufunfa.
— Do que está falando? — Melhor se nada tivesse dito. O pontapé o atingiu em cheio na barriga e o envelope voou, para mudar de mãos.
— Querendo dar uma de esperto? Quer bancar o herói?
— Não façam isso comigo. Se não entregar, tô ralado.
— Se vire, garoto, ou quer apanhar? — Aparou a tempo, com as mãos um chute no rosto. Os outros se afastam sem pressa.
No chão, passa as costas da mão no nariz. Está sangrando um pouco. Ainda bem que conseguiu amortecer a pancada. Gente em volta. Os comentários de sempre.”Essa molecada não tem jeito”. Ninguém dá muita bola. Uma senhora — até que as pernas dela são bonitas — oferece um lencinho de papel. Agradece. E agora? Lembrou do cara, o Serafim, que deve estar esperando. Melhor contar o que aconteceu...

***
—Sei. Quer que eu acredite nessa história, por causa do seu narizinho sangrando? Tá me achando com cara de trouxa? Esse Zelão trabalha com qualquer um... Assim não dá
— Eram três, o que podia fazer?
— Tinha trinta mil no envelope. Se fosse seu, aposto que teria feito melhor.
— Não é verdade.
—Vou relatar ao chefe. Você seria capaz de reconhecer os caras? Claro que não. Vai me dizer que um era alto, moreno, outro gordinho, com cara de mau, e o terceiro parecia gay. Não se canse. Suma daqui.

***
Em casa, um sobrado miserável em Cascadura, não contou nada. Pensou em ligar para o Zelão e tentar... tentar o quê? Melhor sumir de vez. Claro, iria avisar a mãe e a irmã. O pai sumido faz mais de ano, mora com outra em algum lugar na baixada. A desculpa já está ensaiada. “Vou tentar a vida em São Paulo”. Não iria dizer mais nada. Para que assustar? Mulher não agüenta um tranco desses. Quem sabe, contaria depois? E se denunciasse Zelão? Besteira. Com que provas? Acabaria sobrando para ele. Zelão é café pequeno, os padrinhos dele o livrariam e ele, Valdo, estaria marcado para morrer. Dedo-duro tem vida curta.
Anoitece. A mãe não deve demorar. A irmã acaba de voltar. Essa só fica namorando. Aquele namorado, vou te contar, não passa de um mala. De dia, trabalha de escriturário num banco, de noite estuda e, de vez em quando, mata aula para ficar de bobeira com a Clau. Talvez ele esteja certo. Tomara. Ao menos, não está enroscado como ele.
O celular: Zelão, aos berros:
—Pó, meu, que mancada. O Será me xingou até agora. Como é que você foi ser tão babaca? Não acredito!
—Olha, eram três...
—Gritasse por socorro...
—Ninguém acode, sabe disso.
—Fale a verdade. Pode se abrir comigo. Será melhor para você. — Zelão já parou de gritar. Melhor se continuasse xingando. Ou será que se convenceu? Difícil de acreditar. Pelo sim, pelo não, melhor mostrar firmeza. Afinal, não está inventando nada.
—Juro. Deram porrada e me levaram o envelope. Amanhã te mostro minha camisa, cheia de sangue que pingou do nariz. — Melhor nem lavar a camisa, por enquanto, só esconder da mãe.
—Meu, tá encrencado. Mesmo que seja verdade.
—O que faço agora?
—Espere. Torça para que meu chefe acredite nisso. Nosso negócio é sempre na base da confiança. Nunca trabalhamos com cheque, só dinheiro vivo, e você me faz esse papelão. Vire-se, mano. Vou tentar livrar tua barra, mas vai ser dureza, viu? Tome cuidado. A turma não é de alisar. — Zelão desligou.

***
Doutor Eduardo sorri, enquanto conta o dinheiro do famoso envelope.
—Trabalhou bem. Esse pessoal do Joel vai aprender que é melhor ficar fora desse jogo. Daqui um tempo, quando a coisa se acalmar, você vai trabalhar só para mim. Vai acabar esse seu jogo duplo. Não quero perder você.— Sente-se, ou prefere ficar em pé? — Zelão olha em volta, um pouco intimidado. É a primeira vez que fala com o doutor Eduardo. Bonito escritório aquele. Prédio envidraçado, na praia do Botafogo. O nome ele nem sabe como se pronuncia: Interpart trend hedging. Secretária bonitona, várias salas fechadas. Chão acarpetado, gente engravatada.
—E o Valdo?
—Não me diga que se preocupa com ele.
—É amigo, pôxa.
—Vamos pensar em algo. O que acha que o Joel fará? Aquilo, pelo que me descreveu é a maior bagunça. Ninguém se entende mesmo.
—Verdade, Doutor Eduardo.
—Então, se Joel resolver dar uma prensa no menino, como fará?
—Vai chamar um ou dois capangas e vai mandar dar uma puta surra, quebrar a casa, zonear tudo, essas coisas...
—Não mandará matar?
—Nunca... Isto é, creio que não. O jeito dele não é esse.
—Além de incompetente, é frouxo. Ele já sabe do acontecido?
—Com certeza. O Serafim deve ter falado assim que soube.
—Vejamos. Ele vai querer punir. Certo? Se resolver dar um castigo, vai pedir esse favor para esse, como disse que se chama? Anjinho?
—Serafim, doutor Eduardo.
—Dá na mesma. — O pacote de dinheiro o deixava feliz. Então não vai pedir para o Serafim, vai pedir para outro, que escalará o time. Se, ao chegarem lá, descobrirem que a punição já ocorreu, será motivo de estranheza?
—Acho que não. Já aconteceu. Lembra do Fernandão do Meyer?
— Não sei quem é.
—Um distribuidor que deu mancada. Joel deu ordem para arrebentá-lo e, quando foram ver, o Maneta já tinha acabado de passar por lá.
—E eu vou saber quem é o Maneta?
—Tem razão. Só quis dar um exemplo.
—Entendi. Eles já bateram cabeças no passado. Passe o endereço do rapaz.
—Para quê?
—Vou falar com alguém. Precisamos agir depressa. Direi que é só para dar um susto, quebrar vidros jogar a televisão na rua, sem machucar ninguém. Daí, quando chegarem os outros, imaginarão que foi repeteco do caso “Maneta”. Entendeu?
—Saquei.
—Depois, você que é amigão, dá uma ajuda para ele. Joel não irá se importar, não é, afinal era o dinheiro dele? — Eduardo parecia encantado — Três mil deve dar. E se não der, vamos ver depois. Livramos assim a cara do piloto. Certo?
—Bem bolado.
—Fique aqui. — Eduardo pegou o celular e compôs um número: “Giba, avise o Celso que é para mandar dois garotões fazer um rebu, anote aí o endereço... Olha, nada de violência nos moradores. Nada. Ordem minha. Repita para ver se está claro...Isso mesmo. Podem pegar o Vectra. Não me diga que eles queriam ir de Mercedes” — Acho que vai dar certo. Pode ir agora. Enquanto estiver ainda com os outros, seu contato será Celso. Não se preocupe ele saberá como encontrá-lo. Chamei agora, para poder avaliar você. Para você isso é bom e não é. Bom, porque conhece o chefe e ruim, pela mesma razão. Vá, agora. Ao sair, minha secretária irá lhe entregar um celular pré-pago. Nada de deixar registro de telefonemas dados e recebidos a meu serviço, isso fará bem à sua saúde, Viu. Ciao!

***
—Quem era?
—Fica na tua, Claudinha.
—Tá bem, vou ver televisão. Mas tu tá estranho.
—Cuide da sua vida, mana.
Batidas fortes na porta.
—Corre, mana.— Tarde demais. Os dois brutamontes, de rosto coberto, já entraram. Só lhe resta enfiar-se debaixo da cama. “Tá vendo televisão, boneca?” A televisão espatifa-se no chão. “Quieta aí”.
Ouve, mas não ousa olhar. Ruído de móveis destruídos e louças quebradas. Se estivesse armado, ainda poderia tentar algo, mas assim... Claudinha xinga. “Gracinha, não fale assim”. Do seu esconderijo reza para que ela feche o bico. Que nada. Ela deve estar louca para não perceber o perigo. Ela grita por socorro, quando sabe que nenhum vizinho irá mover uma palha. “Saiam daqui, lazarentos!”
“ Ó, garota, fica na tua”.
“ Até que ela não é de se jogar fora”
“ Celso mandou não tocar”
“ Ela me xingou, mano. Agora, vamos brincar um pouco. Pouquinho só.”
Saíram. Claudinha chora, a roupa rasgada. Debaixo do olho esquerdo uma bola azulada. Ele corre até a janela e vê o Vectra preto saindo em disparada. CXJ, e o número é o ano de seu nascimento.
Volta para a irmã. As lágrimas deles se misturam. Ela apanha a calcinha rasgada e corre para o banheiro. Valdo já decidiu. Arranjou uma arma. Só anda armado. De um jeito ou de outro conseguirá se vingar. Sem ter visto o rosto dos desgraçados, a única pista é o carro deles.

***
—Não é possível, já passa do meio-dia, tenho de encontrar o investidor português, para ver se ele quer aplicar no nosso fundo de recebíveis.
—A reunião é às duas da tarde, doutor Eduardo — informa Renatão, o diretor da área internacional da Interpart — sobra tempo. Renatão deve seu nome à estatura, já jogou basquete no time da PUC.
— Eu sei, mas a Mara agendou uma reunião com John às onze horas, e ele avisou que irá se atrasar. Tem que ser hoje, porque viaja para Buenos Aires às 15 horas, e eu não quero que ele vá lá sem antes falar conosco.
—Doutor Eduardo, minha mulher ia sair da maternidade hoje...
—Já lhe dei os parabéns. Escolheram o nome do garoto?
—Luís.
—Que tenha saúde. Muita saúde. É seu primeiro. Outros virão. Cuide para que não sejam muitos. E trate de tirar um pouco dessa barriga. Falo pelo seu bem.
—Obrigado. Queria lhe dizer que posso ligar para o hospital e agendar a saída da Tânia para amanhã. Melhor ficar mais um dia lá. Teve aquele princípio de hemorragia... Daí, estarei disponível para uma das duas reuniões.
—Ótimo, eu vou encontrar o português e você cuida do John.
—Fechado. Se bem que... acho melhor seria fazer o inverso.
—Como quiser Renatão. Para mim tanto faz. Se se sentir mais confortável com o Oswaldo. Up to you, fica a seu critério.
—É que o sotaque texano do John me mata. Posso entender errado alguma coisa, e ficar pedindo para que repita sempre, pega mal.
—Tem razão. Então, fica assim.
—Detalhe: Meu carro tá na oficina. Vou de táxi.
—Não. Moreira estará no lobby. Ele pode se movimentar de táxi, mas um executivo que quer fechar um negócio de milhões de dólares, não. Pegue um carro da firma. Pegue o Vectra. Depois da reunião você me briefa por fone, e vai ver sua mulher, ou outra, se quiser.
—Não tem outra.

***

Renatâo, está chegando. Acena para Moreira e faz sinal que vai procurar uma vaga. Está num dia de sorte. A menos de meio quarteirão encontra uma tamanho família. Manobra rapidamente, e sai com a pasta debaixo do braço. Verifica se o celular está no bolso. Assim que for possível irá ligar para a maternidade. E se ligasse agora? Discagem abreviada, e pronto... Ocupado. Tentará mais tarde. O que deu no Moreira? Por que esses sinais?
Valdo reconheceu o carro, a chapa com o ano de seu nascimento. Aquele grandalhão será o primeiro a pagar. Três tiros e, na confusão criada, Edivaldo sai correndo entre os carros, no contrafluxo.


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste` e ´Plataforma G` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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