A estrada se espreguiçava à sua frente com indescritível monotonia. O carro engolia placidamente quilômetro após quilômetro havia mais de cinco horas. Incomodava era saber que ainda faltava mais da metade da jornada. Uma espécie de torpor apoderava-se dele. Dirigia automaticamente, sabendo, de experiências passadas, nessa mesma estrada, que logo viria um momento de completo desânimo, típico dessa maratona.
Era quando os reflexos pareciam estar tirando férias, a concentração desertava e a motivação caía vertiginosamente. Sabia também que, uma vez superada essa barreira, que o molestaria por uma hora, o resto da viagem seria tranqüilo. Pagava, de certa forma, um tributo à sua total falta de paciência. Tinha decidido que o maldito trajeto deveria ser completado num só dia. Era algo factível, com toda certeza, dentro das suas possibilidades; logo, não iria admitir parar na metade e, após descansar, concluir no dia seguinte.
Selecionou um outro CD. Desta vez era o concerto para violino de Tchaikovsky. Ao som dos primeiros acordes, a sucessão de painéis publicitários que margeavam a estrada passou a ganhar nova vida. Pareciam render-se ao encanto da música. Os apelos ao consumo haviam deixado de agredi-lo e, submissos, revelavam-se acompanhantes fiéis e discretos.
O primeiro movimento do concerto o havia fascinado sempre. O choro do violino lhe passava uma sensação de encanto, e era o que precisava para superar a fadiga.
A dor de cabeça aproximou-se dele, rastejando como um cachorro amestrado. Foi sendo dominado, sem ter podido opor qualquer resistência. Era uma dor insinuante, monótona, persistente, implacável.
Ao longe, distinguiu um vulto à beira da estrada. Pensou em diminuir a velocidade. Ia acabar levando uma multa originada num desses radares ocultos, que as piscadas de farol dos carros, vindos em sentido oposto, não teriam ajudado a burlar. À medida que se aproximava, notou sucessivamente tratar-se de um ser humano, mulher, bonita. As constatações sucessivas, frutos da aproximação, se sucederam a intervalos de pouquíssimos segundos.
Estranho. Muito estranho mesmo. A mulher incrustada na paisagem, num lugar desértico.
Ela estava acenando e, mesmo que não o tivesse feito, a simples presença naquele trecho de estrada já teria justificado uma parada.
Deteve-se no acostamento, ao lado da desconhecida. Agora era possível afirmar que considerá-la apenas bonita era uma tremenda injustiça com a estranha. Ela estava simplesmente iluminando aquele canto perdido do universo. Jeans, camiseta, tênis, um lenço colorido no pescoço e uma bolsa de respeitáveis proporções no chão. Cabelos castanhos curtos emoldurando um rosto angelical. Um largo sorriso fez a dor de cabeça recuar como o cachorro amestrado faria, se o filme fosse projetado de trás para frente com velocidade maior.
– Bom dia, quer uma carona?
– Vou a São Paulo. Pode me levar?
– Levo até o fim do mundo.
– São Paulo será mais do que suficiente.
Ajudou-a a colocar a bolsa no porta-malas. Ela conservou apenas uma bolsinha minúscula. Entraram no carro. O concerto estava no seu último movimento.
– Adoro este concerto, disse a estranha. Meu nome é Mônica.
– Também adoro. Muito prazer, Francisco.
– Eu sei, eu sei, disse ela e com um sorriso bizarro, apanhou na bolsinha um frasco de perfume, ou algo parecido, e orientou um jato com cheiro estranho em direção ao motorista.
De repente, os traços da Mônica ficaram menos nítidos. Ela mantinha o sorriso, até parecia que estivesse gargalhando, embora nenhum som se fizesse ouvir. Um apito agudo, que fazia lembrar o som de uma broca de dentista, não deixava Francisco fechar os olhos e dormir como era seu desejo. Largou a direção, mas, coisa estranha, o carro tinha parado de correr na estrada. Estava envolto numa nuvem de poeira prateada e parecia flutuar. Juntando as suas forças, Francisco tentava em vão articular palavras em direção à passageira misteriosa. Permanecia paralisado, mas o seu desejo não era se mexer e, sim, poder comunicar-se, protestar ou talvez agradecer pelo que estava se passando.
Mesmo sem enxergar com nitidez o rosto, ele se sentia atraído pela visão turva que, naquele momento, parecia reger-lhe o destino. Imóvel, percebeu que o penteado da Mônica estava se modificando, o cabelo se juntava num coque abrigado por um chapéu de abas largas. A camiseta cedera lugar a um decote cheio de babados e um lindo colar estava dando voltas no pescoço marfim. No lugar da calça, uma saia longa encobria as pernas escondendo até os tornozelos,
Mas será que aquela roupa provinha da bolsa do porta-malas? Como, se ela nem havia saído do lugar, e aquela roupa parecia ter surgido do nada?
– Cavalheiro, estamos em São Paulo. Gostaria de tomar um chá, isto é se for convidada.
– Onde estamos? E logo se espantou com o fato de subitamente ter recobrado a fala.
– Em São Paulo. Talvez devesse perguntar quando estamos, sorriu Mônica.
– E o meu carro. Olha o que aconteceu com ele!
– Que lindo Studebaker! Bem melhor que o seu, em todo caso, bem mais charmoso. Estamos perto do Viaduto do Chá, caso não reconheça.
De fato, o Teatro Municipal estava lá mas, no lugar de alguns dos prédios que ele conhecia, havia casinhas. Recuara uns bons quarenta anos. Iria tomar chá no Mappin. Algo estava errado, pensou. E logo descobriu. Era a roupa dela que seguramente era do início do século. Uma fada anacrônica pensou, igual aos gladiadores de produções descuidadas que, de vez em quando, ostentavam um relógio no pulso.
Adivinhando-lhe o pensamento, ela sorriu:
– É apenas um pretexto para passar umas horas contigo. Minha missão me leva a um passado mais remoto, e nem é para São Paulo que me dirijo. Vou para Paris de 1610, logo depois do assassinato do Henrique IV. Você é apenas uma fração do meu universo. Não tenho nenhuma preocupação de coerência. Além disso, ninguém está nos vendo.
Experimente conversar com alguém. Não lhe responderá. Você é uma sombra, o meu acompanhante, e, enquanto estivermos juntos, nenhum contato com humanos lhe será possível. E vou lhe dizer algo que talvez não lhe agrade, mas uma vez concluído o nosso passeio, não se lembrará de nada. Portanto carpe diem, sabendo que o seu amanhã vai independer deste hoje. E agora, talvez queira ver seus pais ainda crianças?
– Não, senhora Spielberg, já que estamos amarrados por uma eternidade cuja extensão só você conhece, quero realizar um sonho pueril. Dançar uma valsa com você em frente ao Municipal e, depois, poder acordar sentindo no rosto as lágrimas que derramarei por perdê-la. Pois nunca mais nos veremos, não é verdade?
– Saiba uma coisa. Não existe o verdadeiro nunca. Mesmo nas profundezas abissais do desespero, haverá um talvez. E é com esse talvez que você poderá efetuar qualquer travessia. Aceito seu convite, cavalheiro, em vez de chá, uma valsa. Irei me perder em seus braços.
E, de repente, pelas janelas do Municipal, os acordes do Danúbio Azul inundaram a praça.
Enlaçou a criatura diáfana e passaram a rodopiar loucamente entre transeuntes que passavam sem vê-los. Experimentou chocar-se com uma senhora empertigada e descobriu que ele tinha a consistência de uma sombra. A senhora empertigada o atravessou como se ele fosse uma nuvem. No entanto, sentia o contato enlouquecedor de Mônica, a parceira desta valsa inacreditável.
Estavam rodopiando, a música afastou-se dos compassos imponentes para disparar feito um realejo demente.
Os rodopios aceleraram-se a ponto de sentir novamente a mesma sensação que havia experimentado ao ser tocado pelo spray. Os traços de Mônica estavam se apagando, tudo havia escurecido em volta deles, e a música estava se transformando numa espécie de uivo, parecendo uma sirene de ambulância.
– Cuidado com ele. Mas que porrada! E ainda sobrou algo do carro!
– Será que ele está vivo?
– Veja, está se mexendo!
Não estava mais dançando, mas experimentou uma alegria imensa ao descobrir que podia mexer a mão direita. A que havia segurado a mão de Mônica. No rosto, a lágrima.
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