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Sr. Belarmino
Adilson Silva

Outro dia, depois de um longo tempo, estive na casa que pertence a minha avó. Está alugada há vários anos. Passei por lá, a pedido dela, para receber um aluguel do atual morador. Ele me convidou para entrar e em seguida o telefone tocou. Pediu licença e foi atender.

Sentado no sofá, fiquei medindo aquela sala, observando quantas lembranças aquele lugar era capaz de me trazer. O inquilino engatou uma conversa demorada ao telefone. De repente, mirei meus olhos num par de ganchos vazios, já enferrujados, um de cada lado da parede, daqueles usados para dependurar redes. Nesse instante aquela conversa sem fim do homem no cômodo ao lado foi ficando cada vez mais distante... E numa espécie de “sonho”, ouvi o rangido da rede no seu balançar pequeno, e dentro dela, deitado de um modo todo singular, meio enviesado, estava aquele homem miúdo, cabelos grisalho, com o rosto marcado pelo tempo, um rádio próximo ao ouvido. Sim, era ele! O meu avô! Ali, na sua eterna rede, com seu eterno rádio, que por certo, estava sintonizado na Rádio Globo do Rio de Janeiro, no programa humorístico: “Maré mansa”. Olhos semicerrados, não, ele não me via. Seu semblante leve denunciava alegria, é provável que ouvia um dos seus quadros preferido: “A velha surda”.

Senti um nó na garganta. Lembrei das suas histórias, das suas gargalhadas e do bom contador de piada que era, homem capaz de fazer graça da própria desgraça. Sr. Belarmino, homem que na sua simplicidade transmitiu, muitas vezes inconscientemente, valores essenciais para que eu me tornasse um ser humano melhor. Aliás, quando da separação dos meus pais, ele passou a ser minha referência de homem. Suas histórias sempre me fascinaram, sempre fui um ouvinte apaixonado de todas elas! Contadas e recontadas ao logo dos anos. Sim, pois mesmo o repertório sendo grande, a minha avidez por elas era maior. Dentre elas, tinha uma que era minha preferida. Ele sempre dizia: “Todo mundo merece respeito! Até mesmo uma puta!” E, em seguida me contava essa história:

Quando eu vim da Bahia para São Paulo, um pedaço do caminho eu fiz no pé, pois condução não havia. Nessa primeira viagem eu tinha uns treze anos e vim com meu velho pai, só eu e ele, o resto da família ficou. Viemos fugidos da seca. O plano era trabalhar para ganhar o dinheiro suficiente para trazer o restante do pessoal, que não era pouco! Chegando aqui em São Paulo, fomos trabalhar na lavoura de café. O trabalho era duro, e o que eu ganhava na semana entregava ao meu pai. Ele de posse do dinheiro partia para cidade, caia na vadiagem com “mulher da vida”, perambulava de prostíbulo em prostíbulo até não sobrar nenhum tostão furado. Aquele proceder foi me azucrinando. Eu, apesar da minha pouca idade, reclamei do seu comportamento, e argumentei que assim não era possível, como iríamos economizar para viagem do resto da família. Resultado: apanhei. Decidi que daquele dia em diante iria dar um novo rumo na minha vida. Fiz minha trouxa e fugi. Sem nenhuma referência na cidade, perambulei sem destino, já era noite, cansado, encontrei um homem. Começamos a conversar, contei minha história e ele me ofereceu uma refeição na sua casa. O homem trazia consigo alguns pescados e caça silvestre. Chegamos em sua casa, pelos fundos, sem fazer alarde, dando a entender que não pretendia ser visto. Achei aquilo estranho, mas não questionei. A sua mulher aguardava com jantar na mesa. Após a refeição, o homem disse que tinha uma barraca às margens de um rio, e sobrevivia da caça e da pesca e me convidou para empreitada. Diante da falta de opção aceitei. Naquela mesma noite, após o jantar, de posse de alguns mantimentos, partimos para o tal lugar. Embarcamos num pequeno bote a remo e descemos rio abaixo por quilômetros. Depois de longo tempo de viagem o homem sentenciou: é aqui. Ancoramos. O que eu não sabia, e só vim saber muito tempo depois, é que esse homem era fugitivo da justiça, pois tinha cometido um assassinato. Encontrou nesse modo de vida um jeito para burlar a polícia e ao mesmo tempo ganhar o sustento da família. Eu passei a ser o seu ajudante nas empreitadas de caçadas e pescarias. Tudo o que caçávamos e pescávamos, ele levava para a cidade e a sua mulher vendia, e parte do dinheiro voltava em mantimento para o nosso acampamento. Salário eu não tinha, trabalhava em troca do pão. Depois de certo tempo quis sair dali e o homem não deixou. Virei uma espécie de prisioneiro para os serviços mais perigosos. Não demorou muito tempo adoeci, e em vias de morrer, o homem sem ter saída, me deixou em sua casa na cidade. A partir de então passei a receber os cuidados de sua mulher, que nem sequer me levou ao hospital. A doença evoluiu a tal ponto que já não sentia minhas pernas, o fim estava próximo. Mas Deus é grande, e certo dia essa mulher recebeu a visita de uma vizinha que “levava vida fácil”. Ao se deparar comigo naquele estado, disse assustada: -É filho do Pedro! Ela conhecia meu pai, o velho era seu freguês de longa data. Ela se compadeceu por mim, e naquele mesmo dia me internou na Santa Casa. Depois de muito tempo tive alta, totalmente recuperado. Fui salvo por uma puta! –Por uma puta!      

-Perdoe... -Demorei... -O telefonema era importante.

Assustei... Era o inquilino.




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