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Mas será que você não entende?
João Athayde de Paula

Um vento cortante sopra lá fora, varrendo a rua deserta. José Ardósia, em seu estúdio entulhado de quadros terminados e outros por terminar, no segundo andar do edifício Ipanema, observa da janela as luzes mortiças das luminárias elegantes enfeitando o calçadão mergulhado na madrugada avançada. Volta-se para a tela inacabada disposta no cavalete, uma tela imensa onde se vê uma mulher muito nova distendida languidamente numa cama coberta de lençol de cetim de cor acastanhada. A jovem da pintura é muito branca, tem lábios, cabelos e camisolinha vermelhos. Só os lábios e os cabelos estão pintados completamente. A camisolinha apresenta apenas os contornos.
     – Só mais uma seringada – ele pede de costas para sua modelo sentada na cama amarfanhada do lado oposto à tela e que, no momento, está calçando uma das botas de couro marrom, cano longo, com enfeites de rebites prateados. É uma mulher alta, forte, cafuza. Um elmo de cabelos grossos e lisos, perfumados, emoldura-lhe a cabeça.
     – Hoje você me tirou quase meio litro de sangue.
     – Então. Uma seringada a mais ou a menos não vai fazer diferença...
     – Palhaço – ela retruca. Acaba de calçar as botas, levanta-se da cama e estende a mão.
     – Minha grana – exige.
     – Mas será que você não entende? Eu preciso terminar este quadro ainda esta semana!
     – Você vai precisar de muito mais que uma seringada pra terminar a tela. É como eu já te disse, procure outras putas.
     – Temo que elas me achem muito maluco.
     – E daí? Você tá pagando. Pagando bem. É só fazer a oferta.
     – Eu já tentei. Elas ficam com medo.
     – Então não posso te ajudar. Meu dinheiro; dá cá minha grana.
     José Ardósia deposita treze notas de cem reais na mão estendida da garota. Ela guarda o dinheiro na bolsa a tiracolo.
     – Quando você volta? – ele pergunta.
     – Só daqui a uns quinze dias, meu querido – ela responde com um risinho amistoso. E se dirige para a porta. É quando sente o cérebro explodir – e cai ao chão inconsciente. José Ardósia olha assustado para a moldura da pequena tela que tem nas mãos, uma das quinas pingando sangue. Joga o quadro num canto, pega a moça pelas longas pernas e com grande esforço a coloca de volta na cama, distendida. Pega em sua caixa de artefatos para a pintura um bisturi, experimenta seu fio abrindo uma fenda minúscula na coxa morena e bem torneada da garota. A gota de sangue que jorra do pequeno corte o deixa extasiado. Mas, primeiro iria drenar o corpo com seringa, era um trabalho mais lento, porém limpo e eficiente. A retaliação seria o último recurso, quando o corpo já estivesse quase completamente exangue. “Preciso das vasilhas”, diz para si mesmo. E recolhe ali no estúdio as latas de tintas vazias de todos os tamanhos, coloca-as sobre a cama. Pega a seringa imensa e enfia cuidadosamente a agulha na veia jugular da moça. Tinha que ser muito rápido. Em poucos minutos, no máximo dois ou três, enche uma pequena vasilha de tinta. Coloca a tampa e a leva para a cozinha. Abre o refrigerador e ajeita a lata da melhor maneira possível. O que está atrapalhando é o cadáver de uma mulher, totalmente congelado. Não é que ele se esquecera de livrar-se do corpo daquela outra prostituta, abatida há três meses atrás?


Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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