VIDA QUE SEGUE
Quer saber o endereço do inferno? Fica na Rua Paraíso, numero 27. Rua Paraíso! Percebe o senso de humor doentio da vida? Paraíso, 27. É lá que eu moro. É lá que fica a minha prisão domiciliar.
Faz dois anos que estou preso aqui.
O que aconteceu foi o seguinte: há dois anos, quando voltava pra casa depois de um churrasco na casa de uns amigos, sofri um acidente terrível de moto. Reconheço que a culpa foi minha. Havia bebido mais do que devia, e mesmo assim, não dei ouvidos aos apelos de amigos que pediram para eu deixar a moto lá, e ir de carona com eles. Não quis nem saber. Montei na moto e acelerei. Não lembro direito do que aconteceu. A única coisa que me lembro, foi ver um carro vermelho atravessando na minha frente, e eu bater nele com tudo. Saí voando e caí do outro lado da rua. Nem lembro a marca do carro, só da cor. Fiquei em coma, entre a vida e a morte.Depois de uma temporada forçada no hospital, voltei pra casa.
Passei o ano seguinte vegetando numa cama, mexendo apenas os olhos. Hoje, com alguma ajuda, já consigo ficar sentado, mas sem mover voluntariamente um músculo sequer. Não consigo falar, nem responder ao menor estimulo. Estou preso a um corpo que não funciona.
No começo meus amigos vinham me ver quase todos os dias. Mesmo sem eu poder esboçar a menor reação, eles vinham, sentavam do lado da cama e conversavam comigo. Em dia de jogos do meu time, o pessoal vinha ver o jogo aqui comigo.
Hoje ninguém mais vem me visitar. Eu fico jogado num canto, e nem mesmo meus irmãos conversam comigo mais. Eles passam e às vezes nem me notam. Virei um objeto de decoração de mau gosto, uma espécie de samambaia. Mas acho que não posso culpá-los. Se fosse outra pessoa no meu lugar, talvez eu fizesse a mesma coisa. Imagino que não deva ser fácil pra eles me verem nesta situação.
Mas sabe de uma coisa? Até prefiro que seja assim. Não suporto quando alguém vem me ver e fica com aquela cara de “ai coitadinho”. Ou quando vem com aquele discursinho manjado de “o que importa é que você está vivo”. Queria ver se fosse você aqui no meu lugar. É fácil ser filósofo quando é o outro que está fodido.
Sabe uma coisa que sinto muito a falta? Ouvir meus discos dos Beatles. Ultimamente tenho sido torturado sistematicamente pela empregada, que quando vem limpar meu quarto, liga o aparelho de som numa destas rádios populares que só tocam pagode e música sertaneja. Outro dia fiquei com vontade de matar a desgraçada. Foi embora e deixou o som ligado. Demorou umas cinco horas pra minha mãe entrar no quarto. Já estava tendo uma overdose de musica ruim.
Minha mãe é a única que me faz companhia agora. Todos os dias depois do almoço ela entra no meu quarto e liga a tv. Ela gosta de assistir um programa de auditório onde uma velha loira explora a desgraça alheia. Acho que chama Conflitos de Família ou alguma coisa assim. É nessas horas que eu gostaria de estar morto. Sério. Gostaria de poder me levantar e jogar a tv na parede. E depois que acaba esse programa, ainda tem uma seqüência interminável de novelas. Coitadinha da minha mãe. Acho que ela nem imagina o mal que me faz, me obrigando a assistir essas porcarias com ela.
Mas de todas as pessoas que acabaram me abandonando, a ausência mais sentida, a que mais me dói, com certeza é a Priscila. Realmente, eu sinto muita falta daquela mulher. A ausência dela é a presença mais constante na minha vida. Acho que talvez não tenha o direito de sentir ódio,porque no começo ela esteve sempre ao meu lado. Todo dia vinha me ver. Lia o jornal, contava coisas sobre o dia dela, das pessoas que ela encontrava na rua e que torciam e rezavam pela minha recuperação.
Nós já namorávamos há três anos e pretendíamos nos casar no fim do ano. Fazíamos vários planos que acabaram virando fumaça. Acho que deve fazer uns seis meses que ela não aparece por aqui. O pior é que a ultima coisa que fiquei sabendo sobre ela me caiu como um soco no estômago. Outro doía, minha mãe me contou durante o intervalo desse programa horrível que ela me obriga a ver com ela, que a Priscila estava namorando com o Roger. Logo o Roger! Ele era um dos meus melhores amigos. Acho que por conta do peso na consciência, ele também não veio mais me ver. Isso faz um mês mais ou menos. Dá pra acreditar nisso? Quando pensava que minha vida não poderia ficar pior, que tinha atingido o fundo do poço, o destino me prega mais esta peça. Isto me abalou profundamente. Fiquei uma semana com aquele choro sufocado, com um ódio me queimando por dentro, desesperado e impotente. Numa hora dessas é impossível não lembrar um poema que minha mãe lia pra mim quando eu era criança. Era assim:
“ O amor é um punhal com dois gumes fatais: não amar é sofrer, amar é sofrer mais.”
Trágico mas verdadeiro.
Acontece que ontem, a minha mãe entrou no meu quarto aos prantos, com uma expressão de dor, como se uma tragédia tivesse acontecido.
- Meu filho, você não imagina o que aconteceu! A Priscila e o Roger sofreram um acidente terrível de carro. Ela morreu meu filho. Os dois morreram! – e me abraçou num choro sentido, como se quisesse me consolar.
Foi então que aconteceu um pequeno milagre. Depois de dois anos sem conseguir expressar o menor sentimento, sem esboçar a menor reação, quando eu soube desta trágica noticia, os músculos do meu rosto se contraíram, e consegui soltar uma sonora gargalhada!
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