Mais um dia. Sempre mais um dia que se sucede no elo da cadeia intocável do tempo. Na correnteza da lentidão de cada segundo que se torna tão longo como o infinito fio da eternidade que se perde na inexplicável linha do horizonte ou, quem sabe, bem dentro do universo que há dentro de cada simples mortal sobre o eixo da terra.
As horas podem ser marcantes. Cabe, apenas, a cada ser vivente saber apreciar sua intimidade tão irmanadamente secreta com as possibilidades externas ao seu eu profundo num compartilhamento de sensações simbióticas, que versam em mundos paralelos ou cruzam-se em encontros doces... e, por vezes, deságuam em desencontros turvos não relatados aos incautos observadores, sendo apenas relacionados no ambiente das emoções internas.
A página do jornal de outro dia atrás, não sei bem qual, encontra-se no meio da sala. Voou da pilha de jornais de dias passados. Histórias de dias relatados que agora são documentos da vida da cidade e de anônimos visitantes das crônicas com notícias diversas do país e até do mundo. Deveriam estar em alguma biblioteca ou escola. Contudo, nesse exato momento, amontoam-se sobre caixas de livros no canto da sala. Reclamam por vida no ostracismo a que foram submetidos sem qualquer constrangimento por seus leitores insensíveis.
O vento frio do inverno de agosto, no hemisfério sul, entrou sorrateiramente pela janela da sala do primeiro andar e esgueirou-se de mansinho pela escada indo bisbilhotar entre as cadeiras da sala de estar. Passou sobre a pilha de jornais e, deu uma olhada disfarçada, achou uma manchete interessante e lançou precisamente aquela folha sobre o passeio da sala. Há sempre uma mão invisível em conspiração com os acontecimentos. Os céticos sempre culpam o acaso, que nunca se relaciona harmoniosamente com as situações muitas vezes impostas e postas em xeque pelos mundos invisíveis. Na realidade, não gosto nem um pouco de bisbilhotar mundos ocultos, mundos invisíveis, mas interesso-me profundamente por avanços científicos e suas explicações dos fatos e fenômenos praticamente inexplicáveis. O mundo tenta evidenciar o impossível da própria existência. Realidade ou fantasia, a grande dicotomia da humanidade.
Shirley era assinante dos jornais da cidade de Natal, localidade que habitava desde seu nascimento há cinquenta anos dourados de sol. Sua vida comparava-se nesse exato ponto da sua existência a uma maratona: acordar, cuidar da casa, dos filhos, do marido, do trabalho na empresa, retornar a casa, para outra vez dedicar-se aos filhos, marido, dormir. Esse último ato, representava apenas um lapso no cotidiano para o descanso tão necessário a reposição de suas forças. E, num círculo vicioso necessário à sobrevivência, acordar outra vez para mais uma jornada sem fim na teia viciosa da responsabilidade de uma mãe de família. Realmente, não havia tempo para jornais nem para qualquer tipo de leitura em sua tumultuada vida.
Atualização, informação, totalmente fora de qualquer cogitação. Sua filha era a única a beneficiar-se com a leitura dos periódicos informativos.
Logo após ligeiro folhear de páginas, os jornais do outro dia ou aquele, que chegara pela madrugada, jogado pelo muro sobre o piso da varanda da área, caindo ruidosamente sobre o teto do carro em seu cochilo noturno, tinham sempre o mesmo destino inglório, o monte de jornais sobre as caixas de livros no canto da sala. Final nada honroso para responsável missão de informar e atualizar sobre as novidades do mundo através do exercício mental da leitura, ferramenta da evolução intelectual, científica e tecnológica do homem.
A manchete oferecia-se aos seus olhos ávidos por historias interessantes. Porém como se encontrava mergulhada em seus enormes problemas de mulher, mãe e de profissional, não permitia ao seu cérebro divagar em leituras que roubavam seus pensamentos complicados e recheados com estresse das tarefas e horários a serem cumpridos.
Mas a manchete estava lá, já há dias. Implorava pela sua atenção, pois sabia do seu interesse por explicações cientificas sobre o universo e sua relação com Deus.
À medida que arrumava a sala, pensou: - “Esse jornal está fora do seu espaço já há alguns dias e eu não consigo passar por ele e recolhê-lo a sua pilha. Hoje ele não me escapa. É agora ou nunca...”
Baixa-se e recolhe-o. Sem se deter, passa seus olhos automaticamente e rapidamente como qualquer alfabetizado. Sem raciocinar, ler: - “No Rastro de Deus”.
Seu braço que já ia em direção da pilha a fim de depositar a folha, para no ar, talvez algum neurônio muito ativo alerte sua inteligência intelectual e a instigue a deter-se por mais uns segundos que representam o inicio da sua motivação pela matéria.
Esquece seus outros afazeres. O tempo tão exíguo perde sua real importância. Debruça-se sobre o jornal e devora vorazmente todo o sentido contido naquela página que para muitos aparentemente não teve nenhum significado, mas para ela representa resposta a muitas das suas indagações adormecidas desde seus tempos de estudante do ensino médio quando cursava o científico de engenharia e era apaixonada por Física, Química, Matemática e o próprio universo com suas leis, com seus fenômenos com suas congruências e incongruências que giravam sempre para um mesmo e inexplicável ponto. A existência do ser ou não ser.
Seus afazeres ficam a revelia e por alguns instantes muito importantes para seu eu intelectual, ela mergulha no prazer que transcende o trivial deparando-se com conversas textuais universais de indagações e explicações do inexplicável que chegou em suas mãos.
O jornal alegra-se. Sem muito alarde cumpriu seu papel. Venceu a resistência com sua persistência inabalável.
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Biografia: JANIA SOUZA, potiguar da cidade de Natal, bancária da Caixa, economista, contadora, ativista cultural, poeta, escritora, artista plástica. Sócia Fundadora da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA/RN), onde exerceu os cargos de Coordenação Geral; Direção Executiva; Direção de Eventos; atualmente integra o Conselho Fiscal. Organizou as edições da ANTOLOGIA LITERÁRIA da SPVA/RN, volumes 01, 02, 04 e 05, encontra-se a organizar o vol. 06. Participação em várias coletâneas nacionais, inclusive na Komedi e na Nau Literária. Pacifista e voluntária no Projeto Fraldinha, que promove a construção de uma consciência cidadã em crianças a partir dos 04 anos até jovens com mais de 20 através da prática do esporte futebol, xadrez e palestras. Sócia da UBE/RNA; AJEB/RN; Clube dos Escritores de Piracicaba. Afirma que a arma da vida é a leitura. Contato: www.janiasouzaspvarncultural.blogspot.com |