Sabedoria proveniente de outro século
Por John Piper
J. C. Ryle, em seu livro do século XIX, Santidade, Sem a Qual Ninguém Verá o Senhor1, oferece muitos remédios para os problemas do século XX. Por exemplo, considero as seguintes palavras como um antídoto para grande parte da conversa contemporânea sobre a “incondicionalidade do amor de Deus”, no contexto de curar nosso senso de distanciamento e desarmonia com Ele:
Acima de tudo, não entristeça o Espírito Santo. Não apague o Espírito. Não sufoque o Espírito. Não O afaste para longe, por brincar com pequenos hábitos maus e pecadilhos. Pequenas desavenças entre marido e mulher tornam o lar infeliz, e pequenas incoerências, reconhecidas mas permitidas, introduzem uma estranha alienação entre o crente e o Espírito... O homem que anda mais intimamente com Deus, em Cristo Jesus, é aquele que será mantido na paz mais profunda. O crente que segue mais completamente o Senhor e cujo alvo é o mais elevado grau de santidade, esse crente desfrutará geralmente de esperança mais firme e terá a mais clara persuasão de sua salvação (p. 164-165).
Você pode realmente afastar para longe o Espírito de Deus, “por brincar com pequenos hábitos maus”? “Pequenas incoerências... introduzem uma estranha alienação” entre você e o Espírito? A paz mais profunda é realmente desfrutada por aqueles que andam “mais intimamente com Deus”? A esperança mais firme é conhecida daqueles “cujo alvo é o mais elevado grau de santidade”?
Sim, este é o ensino claro das Escrituras. “Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros” (Tiago 4.8).
Isto significa que existe uma preciosa experiência de paz, segurança, harmonia e intimidade que não é incondicional. Depende de não entristecermos o Espírito de Deus. Depende de lançarmos fora os hábitos maus. Depende de descartarmos as pequenas incoerências da nossa vida cristã. Depende de andarmos intimamente com Deus, tendo como alvo o mais elevado grau de santidade.
Se isto é verdade, receio que seguranças infundadas de que o amor de Deus é incondicional podem levar o povo de Deus a parar de fazer aquilo que a Bíblia lhes exige e que lhes proporciona a plena experiência da paz que tanto anelam. Ao tentarmos oferecer a paz por meio da “incondicionalidade”, podemos estar privando as pessoas do próprio remédio que a Bíblia prescreve.
Proclamemos incessantemente as boas-novas de que nossa justificação se fundamenta na dignidade da obediência e do sacrifício de Cristo, e não em nossa dignidade (“Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos” — Romanos 5.19). Declaremos que nossa eleição e nossa chamada são totalmente incondicionais (Romanos 9.11; 11.5-6; Efésios 2.5). Mas declaremos também a verdade bíblica de que o gozo daquela justificação, em seus efeitos sobre a nossa alegria, confiança e poder para crescer em semelhança a Jesus, está condicionado a abandonarmos ativamente os pecados e renunciarmos hábitos maus, mortificando as concupiscências e buscando a intimidade com Cristo, não entristecendo o Espírito.
É verdade que Deus é Aquele que inicia e capacita o satisfazermos essas condições. “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2.12-13). “Trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo” (1 Coríntios 15.10). Sim, isto é verdade. Mas as condições ainda existem, ainda são reais e precisam ser satisfeitas — com a capacitação da parte de Deus. Não contar às pessoas a verdade que Ryle está ensinando é enganá-las com um cristianismo superficial e fraco. De fato, pergunto: a técnica de cura em nossos dias (que enfatiza a “incondicionalidade infundada”) está produzindo pessoas sábias, firmes, constantes, inabaláveis? Ou está ajudando a produzir uma geração de pessoas frágeis cujo vínculo com a realidade é tênue, porque está fundamentado em um entendimento excessivamente simplificado de como devemos nos relacionar com Deus, de modo alegre e resoluto?
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1 Ryle, J. C., Santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor. Editora Fiel, São José dos Campos, SP., 1997.
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