O motoqueiro corta a estrada sentido subúrbio. Traz consigo cansaço e saudade. Saiu de casa ainda de madrugada em correrias de atraso. Trabalhou o dia todo e parte da noite, usou o horário de almoço para uma pequena compra e agora retornava para o seio dos seus. Chove forte.
Respingos e vento adentram o capacete vindos pela pequena folga entre este e a viseira. É, de certa forma, uma sensação de frescor que o ajuda a manter-se acordado. A coluna, dolorida pela posição de labuta diária, doía, e por vezes o forçava a mexer os quadris de um lado para outro na expectativa de aliviar o incômodo. As pernas, também doloridas, por vezes são esticadas para frente, ora para livrar as botas e calça da água de poças ora para aliviar o incômodo de deixá-las inertes por longo período de tempo. Os braços relaxados e o punho direito girando em movimentos suaves indicava o total controle da máquina. Dir-se-ia que moto e homem eram um só.
Breve estaria em casa.
O corpo cansado dava sinais da rotina de quinze horas de trabalho. Havia saído de casa cedo com promessa de voltar com uma surpresa para o filho de cinco anos. A caixa na traseira da moto não deixava mentir: um barulho vindo de lá sinalizava algo no seu interior.
Curva à direita, curva à esquerda, passa cruzamento, viaduto, cruza linha férrea e já avista a última esquina antes do seu bairro. O corpo relaxa. O trajeto de retorno está feito e o descanso do guerreiro o aguarda.
Súbito, quase que do nada, surge um carro. A reação é quase instintual, inconsciente e imediata: freia..., a moto derrapa..., os pés vão ao chão na vã esperança de manter a estabilidade do veículo; a colisão é iminente. A moto acerta o carro na altura da roda dianteira do lado do motorista, bate e gira vindo a ficar paralela ao carro; o condutor deste, por sua vez, tão logo teve consciência do ocorrido arrancou e deixou o local. O motociclista voou por cima do carro e se espatifou em uma sarjeta. O capacete se desprendeu no impacto e agora gira no centro da rua. Com a face virada para a calçada, os pés entrelaçados e a convulsionar o homem agoniza. Logo os espasmos cessam e então fica imóvel.
Silêncio.
O barulho acorda a vizinhança e pessoas se ajuntam, umas para prestar socorro, outras somente para espiar. Agora o moribundo, com a face a sangrar, aponta para a moto e gesticula a pedir algo. Descobre-se que pedia o conteúdo da caixa na traseira da moto: um jipe feito de madeira. Agarra o brinquedo, leva-o ao peito e vê este ser banhado com seu sangue. Perde os sentidos e desmaia.
E é entre burburinhos que a ambulância chega, hospitaliza e leva o motoqueiro. No caminho para o hospital e sob inúmeras tentativas de reanimação do homem, um paramédico balbucia:
― Não adianta. Está morto!
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Longe dali um garoto, encostado ao portão de casa e encharcado pela chuva, discute com a mãe e insiste em esperar o pai do lado de fora. A mãe grita para que entre, o menino replica:
― Vou esperar aqui!. Papai disse que tem uma surpresa pra mim.
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