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O desmonte de Vênus
Alexandru Solomon

Resumo:
Já que o asteróide afastara-se de Marte o suficiente para não mais afetar-lhe a órbita de forma observável, restavam apenas os dados colhidos pelo doutor. De quanto tempo dispunha a humanidade?

Já não havia margem para a mais remota dúvida. Os otimistas, acuados por evidências acachapantes, representavam uma parcela ínfima da comunidade científica. Para o comum dos mortais, restava a aceitação do fato. A menos que algum milagre ocorresse, o aniquilamento da vida na Terra era uma questão de dias, de horas mesmo. O alerta se originou de uma entrevista-bomba, do renomado astrônomo Oliver Shitbul, à rede CNN, na noite de terça-feira 28 de novembro de 2xxx. Com dados fornecidos por um potente telescópio, podendo detectar um comprimento de onda inacessível aos telescópios situados na Terra, e com o auxílio de uma matriz paramétrica relativamente simples, o Dr.O.S. conseguira detectar a aproximação de um asteróide de tamanho incomum, cuja trajetória o levaria a colidir com nosso planeta. Ao concluir seus cálculos, o cientista, transtornado, entrou em contato com seus colegas americanos, e com alguns ilustres astrônomos de outros países, pedindo que, apesar de todos os cuidados de que se cercara antes de chegar à pavorosa conclusão, verificassem seus cálculos — errar é humano, mesmo em se tratando de sumidades —, notificou as autoridades e, sem esperar a definição das mesmas, solicitou telefonicamente, melhor dizendo, impôs aos gritos sua presença numa grande rede de notícias. Conhecido e respeitado por trabalhos anteriores que o fizeram merecedor de um prémio Nobel, seu pleito foi atendido em questão de minutos, deixando um analista das variações climáticas à espera de uma nova oportunidade.
Diante de um interlocutor atônito, ele revelou com voz emocionada, a essência de sua descoberta. Um asteróide de algumas centenas de quilômetros de diâmetro estava em rota de colisão com a Terra. Fato inédito: passara despercebido a todos os observatórios. E continuaria invisível por mais algum tempo, da mesma forma que determinados modelos de aviões desafiam os radares. Como o tinha identificado então? A partir de um comportamento anômalo da trajetória de Marte, cuja órbita sofrera uma alteração por causa da atração provocada pela considerável massa desse inimigo invisível. Com essas informações, fora possível estimar-lhe as dimensões e, mesmo sabendo que o atrito causado pela entrada na atmosfera deveria reduzir-lhe as proporções e a velocidade, ainda sobraria uma bola de fogo de 1500° C que abalroaria a Terra, a mais de 100 quilômetros por segundo, no meio de uma chuva de meteoritos, provenientes da desintegração de sua camada superficial, devida ao brutal efeito da entrada na atmosfera terrestre. O impacto de centenas de petatons seria eqüivalente ao... Peta?— quis saber o entrevistador. Com um sorriso indulgente Dr. O.S. explicou que peta é um prefixo que significa mil tera, que pos sua vez significa mil giga, e giga, como o senhor entrevistador não poderia deixar de saber é o prefixo que designa mil mega. Nesse ponto a verdade aflorou. O mais poderoso artefato nuclear detonado até aquele momento fora de cinqüenta e poucos megatons, no auge da já distante Guerra Fria. A ameaça era uns bilhões de vezes mais poderosa do que aquela bomba. E a possibilidade de ricochetear em contato com as camadas atmosféricas e perder-se no espaço? Infelizmente, nula. A conseqüência? A vida cessaria na Terra, uma vez que o choque desprenderia uma energia inimaginável, “uma espécie de implosão piorada”—conseguiram murmurar entrevistador e entrevistado. De nada adiantariam abrigos subterrâneos? Bem, se alguém se dispusesse a escavar um buraco de algumas centenas de quilômetros, se a Terra não se partisse em pedaços, restaria-lhe a possibilidade de lá mesmo ser aniquilado. E se sobrevivesse? A morte seria uma questão de tempo. O tempo que as reservas – não renováveis – durariam.
À medida que a entrevista se desenrolva, o Instituto Nielsen acusou uma audiência crescente, alcançando um pico jamais registrado. Fenômeno parecido deu-se em outros países. Inúmeras emissoras pediram permissão e entraram em rede com sua congênere, e, em questão de minutos, o mundo globalizado estremeceu. Já que o asteróide afastara-se de Marte o suficiente para não mais afetar-lhe a órbita de forma observável, restavam apenas os dados colhidos pelo doutor. De quanto tempo dispunha a humanidade? A resposta estava ao alcance de qualquer mortal que se dispusesse a fazer uma simples conta de dividir a distância da Terra a Marte pela velocidade do bólido. Sobrariam no máximo uns quinze dias. Reuniões de emergência pipocaram e alertas vermelhos alteraram a rotina do mundo unido pelo medo. Os cálculos foram revistos e analisados por todos os especialistas. Não havia mais o que fazer, a não ser apontar o arsenal nuclear de todas as potências em direção ao invisível cavaleiro do Apocalipse, mesmo sabendo tratar-se de medida inócua. Seria como tentar deter um elefante com um estilingue, com uma diferença: geralmente, um elefante é visível.
Os dias que se seguiram foram caóticos. Com a perspectiva do colapso iminente do planeta, todos os valores materiais e morais experimentaram abalos e questionamentos de proporções jamais imagináveis. Os conceitos de propriedade viraram pó. Os militantes envolvidos em causas ecológicas juntaram-se em volta de mesas de bares, esmagados pela realidade. De repente, a humanidade tomou consciência do seu fim iminente. Diante dessa realidade, qual o sentido de acumular ou distribuir riquezas, já que todas as operações tinham seu prazo de vencimento marcado? De alguma forma, o estoicismo tomou conta de enormes contingentes. Aos seguidores de última hora de Zenon, confrontados com um fenômeno diante do qual a Humanidade reconhecera sua impotência, restava a aceitação resignada —ou até corajosa — do destino. A democratização do pavor nivelava pela primeira vez os humanos. Os conflitos sociais deixaram de ter qualquer significado. Não haveria mais tempo para solucioná-los.
Houve quem procurasse, sem sucesso, apenas movido por uma esperança insensata encontrar alguma possível falha no diagnóstico, que após todos os testes ao alcance da ciência tornara-se universalmente aceito. Os cálculos refeitos de diversas maneiras excluíram qualquer hipótese de escapatória. A inexistência de alternativas era um fato. Se para mentes cartesianas a rejeição de dados concretos, ou apenas seu questionamento, é impossivel, a reação da população cruzou histericamente as fronteiras da racionalidade.
Não há medo sem esperança, assim como não há esperança sem medo. Muitos buscaram um refúgio na religião. Pregadores de ocasião dirigiam vitupérios à humanidade, cuja decadência tinha hora marcada para receber o merecido castigo. Alguns desesperados tentaram encontrar em consultórios psicanalíticos um caminho para livrar-se do insuportável medo; não importava o preço, mesmo porque o dinheiro não tinha mais significado — falava-se muito em evaporação de liquidez—, difícil mesmo era encontrar ainda a postos algum desses dignos provedores de muletas psicológicas. Os estoques de agendas para o ano seguinte não encontravam comprador. Por sinal, era raro encontrar qualquer tipo de vendedores e compradores, salvo para ítens de consumo imediato, no quadro dessa debandada. A palavra de ordem passou a ser: Cancelamento. Tudo era cancelado, quer se tratasse de compromissos, entregas, pagamentos ou festividades. O abandono de emprego era a regra, as presenças dedicadas, a honrosa exceção. Sobraram aqueles determinados a sacudir o torpor e procurar viver intensamente os derradeiros momentos. Para tanto, era preciso resistir ao quadro desolador da evidência e, ao se opor parcialmente à sua admissão, procurar obsessivamente alguma forma de felicidade. Restava saber como, se minguavam manifestações culturais, cruzeiros turísticos ou até a programação televisiva. A grande orquestra disposta a acompanhar com seus acordes o afundamento desse Titanic, estava desertando.
O abalo no edifício definitivamente cambaleante da civilização evidenciou outras chagas, cujo alcance foi reduzido pelo horizonte temporal forçosamente limitado. Nem por isso as implicações eram menos devastadoras. Diante da aplicação compulsória da pena de morte generalizada, os tribunais encerraram suas atividades e a Justiça, cega por vocação e lenta por hábito, tornou-se muda por necessidade. Os demais poderes idealizados por Montesquieu entraram em recesso definitivo. As relações internacionais aboliram todas as bandeiras, mantendo viva apenas a de um esforço solidário para enfrentar o inevitável. Depois, se ao menos houvesse um “depois”, tudo poderia ser repensado.
Bruxos, quiromantes e videntes tiveram seus minutos de fama, quando timidamente afirmaram não haver nehum perigo. Seus seguidores até pensaram ter encontrado um válvula de escape, mas a pasmaceira logo se impôs.

Viviane foi alcançada pela notícia poucos minutos depois da divulgação. Foi a sobremesa proporcionada pelo Jornal Nacional, justamente na hora em que Rogério e ela estavam de saída, para prestigiar o badalado lançamento de um livro, sério candidato a se tornar o sucesso do ano, a julgar pelas críticas extremamente favoráveis que o antecediam. Plenamente compreensível a transformação do entusiasmo pelo evento em total estupefação, seguida de profunda apatia.
— Pronto, não precisamos mais nos preocupar com o Reveillon — foi a primeira reação de Rogério, bem-sucedido executivo cinqüentão, dono de discutível senso de humor, ao sentir-se liberado instantaneamente da tirania de todas as dietas. Como Viviane permanecia atônita, emendou:— Impossível. Isso não faz sentido! — Esperava decerto ouvir palavras de encorajamento. Em vão. Só restou desligar a televisão e desabar no sofá da sala.
— Rô, tire os sapatos, está sujando o estofamento. Acabamos de trocá-lo — a reprimenda brotou de forma mecãnica. A mente da esposa estava alhures, presa fácil do medo pânico.
— Ele agüentará duas semanas, não se preocupe.
— O quê?
— Nada, nada...
Mergulhados na solidão a dois, ficaram se entreolhando em silêncio. Rogério tentou mais uma vez fazer graça:
— Se o fim do mundo for marcado para daqui a duas semanas, não corremos perigo algum. Nosso país está atrasado, no mínimo uns vinte anos em relação aos demais.
Não houve resposta. Viviane repassava mentalmente episódios passados. Tudo na mais perfeita desordem. A infância, a seqüência de empregos frustrantes, a mãe autoritária, as traições com lealdade — isto é, confessadas — de Rogério, o pai ausente, o namoro anterior ao surgimento de Rogério, o casamento, os filhos tão queridos e por vezes tão ingratos, a lua-de-mel coincidindo com o primeiro flagra, a promoção tão esperada prometida para o início do próximo ano e a procura desesperada da felicidade no casamento desfilavam sem que pudesse deter-se em algum ponto. Essa maneira caótica de pensar já fora discutida diversas vezes com sua analista sem nenhum resultado, a não ser concluir que tudo girava em torno de uma eterna, ou terna vigilância, como costumava brincar, totalmente inútil. A causa mais provável era a falência do seu casamento, ou variações sobre o mesmo tema. Era aceitar ou largar o contrato conjugal. Sem coragem para a segunda opção, sem vontade de dar o troco — por formação moral, ou, sabe-se lá, por falta de identificar as oportunidades — mantivera uma postura ilibada. Grande consolo. E agora, esse drama inelutável. De que serviria enfiar a cabeça na areia?
Igualmente angustido, Rogério só enxergava um fantasma, o da morte iminente. Uma coisa é ter consciência de estar na reta final da vida a partir do nascimento e outra, totalmente diversa, é tomar consciência do iminente esvaziamento da ampulheta. Qual seu consolo? A taxa ótima de colesterol? As inúmeras aventuras do passado? Suas conquistas profissionais? Olhou na direção de Viviane, e, como sempre, uma onda de ternura o invadiu. Dessa vez, misturada com o pavor causado pelas notícias. Virar paciente terminal em questão de segundos era demais para sua capacidade de aceitação. Vislumbrou a fisionomia severa de seu mestre falando em comoriência. Pois bem, agora os habitantes da Terra sem exceção seriam comorientes. Essa realidade teria dado um nó na cabeça do professor, estivesse ele ainda vivo. Divagava atordoado por esse drama inelutável. De que serviria enfiar a cabeça na areia? Por alguns segundos, a visão da esposa, visivelmente transtornada, o impeliu a tentar arrancá-la da fossa. Na tentativa de desempenhar o papel de protetor, aproximou-se e tomou-lhe as mãos. Estavam geladas.
— Querida, ao menos poderemos dizer que não temos mais idade para morrermos jovens.
Não passou de uma tentativa fracassada de desanuviar o ambiente.
— Rô, será possível? Não percebe que tudo vai terminar?
— Estou tão assustado quanto você. Sabe muito bem o quanto a tal da finitude me apavora. Uma coisa eu digo. Não ficarei me lamentando durante essa contagem regressiva. E se esse bando de doutores se enganou? Lembra daquele famoso trote do Orson Wells? Esse cientista pode ter errado nas contas, errou na colocação de uma vírgula...Esse asteróide poderá passar a milhares de quilômetros da Terra...
— Lembro, sim. Foi uma brincadeira de primeiro de abril, logo desmentida. Agora é bem diferente. Pense em nossos filhos, pense nas crianças que mal acabam de nascer...
— Sim. Pensarei na miséria reinante em países africanos também, e depois de muito refletir, o que vai sobrar? O medo. Vamos sair. Se não quiser ir ao lançamento, podemos ir a um restaurante e torrar grana. Podemos comprar uma passagem para qualquer lugar. Quando a conta chegar, nós e o cartão de crédito estaremos longe, por assim dizer.
— Não sei. Para ser bem franca, nem tenho coragem de sair. Imagino que as ruas se tornarão mais inseguras do que costumavam ser. O que poderá deter um malfeitor, ciente de que a pena máxima à qual estará sujeito, caso seja pego — e resta saber por quem, quem se disporá a correr riscos? — será inferior a um mês. Prevejo uma onda de assaltos sem igual...— enquanto falava, Viviane observava o marido. Olhava-o como se nunca o tivesse visto antes. Como fora possível, por qual misterioso capricho do destino mantivera aquele relacionamento? Teria sido por força de alguns poucos minutos mágicos? Mas não há minuto mágico num relógio digital. A magia não teria mais vez agora. O status quo mantido de maneira artificial, uma forma de “declaração de indiferença” fora um escapismo, cuja fatura estava por ser apresentada. Naquele momento de reflexão, pensou enxergar melhor o que haviam sido os últimos anos. Percebeu ser vítima de uma espécie de ciúme tardio. Essa percepção desintegrou-se rapidamente. O capítulo ciúme não cabia no livro da lógica. De fato, falar numa visão clara da situação, uma espécie de levantamento definitivo do balanço matrimonial beirava o absurdo. Seu pensamento estava mergulhado nas trevas de uma irresistível decepção. Transformar a escuridão em reluzente arco-íris não lhe parecia factível. Por mais que as frustrações passadas se afastassem no tempo, um nada era suficiente para torná-las dolorosamente presentes. Uma dor causada por encarar o dano irreparável de seus sonhos pediu passagem. Não sentia a menor vontade de discutir o assunto com Rogério, prevendo que se o fizesse, o diálogo breve degeneraria em dois monólogos hostis. Se as aparências haviam — e era ela a principal responsável — sufocado a realidade, não existia mais razão para cultivar a ilusão. Talvez o fato de ter vivido a vida dos filhos, esquecendo-se da sua, fosse responsável por tudo. Não era hora de se refugiar atrás de explicações que nada justificavam. Restava-lhe devorar o presente, já que o passado era imutável e o futuro, limitadíssimo. Esquecer os desenganos lhe permitiria aproveitar os poucos dias remanescentes, pois não colocava em dúvida as palavras do cientísta. Em suma, tomava conhecimento, algo tardiamente, da chegada da idade da razão, quando a razão pede para ser esquecida. Era passada a hora de alimentar as quimeras que até lá a haviam alimentado.
— No que está pensando?
— Em nada. Talvez devêssemos...
— Talvez devêssemos...?
— Não sei — Viviane fitava a cortina desbotada da sala. Trocá-la agora seria pura bobagem. Rogério acompanhou-lhe o olhar e emendou.
— Esqueça a cortina. Vamos sair.
Lá fora, aparentemente, a agitação das ruas em nada havia mudado.
****
Y así passan los dias...conforme manda o velho bolerão. Saltava aos olhos a mudança nos hábitos do rebanho desamparado. As conversas nas quais predominava “O Único Assunto” foram substituídas por uma espécie de mutismo generalizado. Comentar o quê? Os jornais praticamente desprovidos de anúncios — salvo aqueles pagos adiantadamente — encolheram por cauas do desaparecimento de diversos cadernos. Quem iria procurar ou oferecer emprego, comprar apartamento, vender um carro ou falar em aplicações financeiras de médio e longo prazo? O tal longo prazo media-se em dias. Logo no início da agonia coletiva, algumas entrevistas de laureados especialistas chamaram a atenção dos leitores, mas a constatação de tratar-se de variações sobre o mesmo tema liquidou-lhes o interesse e, depois de alguns dias, alguns jornais deixaram de circular.
Por sua vez, as estações de televisão limitavam-se a apresentar reprises de filmes e seriados. Um pronunciamento em rede nacional do presidente da República, conclamando o povo a cerrar fileiras e abandonar o derrotismo, serviu apenas para desgastar a imagem da autoridade, fato recebido com absoluta indiferença pelo orador, segundo informações fidedignas.
A vida noturna era a última trincheira a acolher aqueles que resistiam a prostração. Os sibaritas por imposição trocavam o marasmo do dia pela busca de prazeres dos quais sabiam que seriam em breve privados, sem direito de apelação. O fato de se tornarem objeto da reprovação de falsos ou verdadeiros moralistas deixava-os indiferentes. Há dislate maior do que contestar os últimos desejos de condenados?
Após ter se desmantelado, o mundo de Viviane renasceu, se é que se podia falar em renascimento. Mãe amorosa, decidiu, com o apóio de Rogério reunir a familia para um jantar de despedida. Encontrar uma data, apesar de restarem apenas uma dezena de opções foi uma tarefa insana, uma verdadeira pérola da diplomacia, passando por irritantes “mãe, amanhã não dá” ou “...dia quatro já temos um jantar na casa dos meus sogros”, “...dia sete a turma do boliche vai se reunir...”, “ ...não acha melhor vocês darem uma passadinha em casa?”. Finalmente, chegou-se a uma solução conciliatória, que acabou transformando o jantar íntimo num evento congregando filhos, sogros e alguns amigos, mas fez-se a vontade da mãe estrabulega. O principal óbice – a data — foi superado. O dia nove de dezembro foi escolhido consensualmente. Ao menos, havia um objetivo.
Restava um acerto de contas de Viviane com a vida. Nem por um momento, a até então vestal pensou em transformar-se em hetaira, mas estava decidida a viver uma aventura. Seria a primeira, uma única e forçosamente derradeira. Em hipótese alguma aceitaria a perspectiva de uma escapada desenxabida. Viviane não estava disposta a aceitar uma desforra medíocre. Não era um troco dado a Rogério. Apenas o desejo de poder dizer:”Dessa água também bebi”. Sem tempo para deixar o acaso atuar, decidiu passar algumas tardes — e eram tão poucas — sozinha. Sem tugir nem mugir, Rogério concordou, apesar do seu desejo repetidamente manifestado de ficarem juntos o máximo de tempo. Desconsolado, restou-lhe debruçar-se sobre alguns livros. Assim, não morreria sem saber quem fora Demócrito.
Viviane pensou estar a caminho do seu último fracasso. Por falta de prática e por ser seletiva em demasia — o postulante, aquele parceiro de última hora, não poderia, em hipótese alguma, ser qualquer um — Viviane, apavorada, notou que encontrar um ser tosco não requeria esforço algum, mas conseguir seu objetivo exigia uma boa dose de sorte, nessa corrida contra o relógio. O hipotético príncipe encantado mantinha-se pertinazmente oculto. Bem que em duas oportunidades ela tentara fazer vistas grossas e abafar as resistências do seu espírito crítico, mas como viver um idílio com um bonitão iletrado ou com um pacóvio, que depois de falar alguns minutos sobre si, coroava o discurso com um desqualificante: “Então, gatona, vai uma trepadinha?”
Desanimada, na tarde do dia nove de dezembro, Viviane — ainda em missão, após ter ultimado os preparativos para o jantar — resolveu visitar uma galeria de arte. Alguns minutos depois, seu olhar tristemente azul cruzou com o de um desconhecido. A tão decantada descarga elétrica, da qual muitos falam sem jamais tê-la experimentado, aconteceu. “É agora ou nunca”— pensou ela. O projeto poderia concretizar-se. O “candidato”, simpático, bem-falante e — teve de confessar para si mesma — sedutor, pareceu preencher os requisitos da aflita Turandot moderna. Finalmente, encontrado o gelo que a faria pegar fogo.
Seguiu-se uma conversa animada, regada a vinho tinto — ele também gostava de vinho tinto e entendia visivelmente do assunto. Olhares cúmplices os uniam, a ponto de ignorar a manchete de um jornal esquecido numa mesa vizinha, que informava restarem no máximo três dias até o temível solavanco. Ao se levantarem, o beijo foi inevitável, lá mesmo, rodeados de gente. Tamanho foi o enlevo que Viviane não percebeu a fuga ordenada dos minutos. Quando veio a proposta tão esperada de irem a um motel ela não hesitou. Estavam já no carro do fascinante desconhecido, quando, por força de um hábito que jamais lhe dava trégua, ela olhou o relógio. Faltava meia hora para o jantar. Como fazer? Apesar da tentação, ela rejeitou a idéia de se entregar correndo e voltar voando para casa. Chegaria atrasada à última reunião familiar. Poderia faltar? Impensável. Ele teria de entender. Quase chorando, Viviane explicou, e novo encontro foi marcado para a tarde do dia seguinte. Um beijo apaixonado, alguns momentos de descontrole das mãos em busca de um prazer fugaz e, ele a levou para casa.
O jantar, que ela amaldiçoou secretamente, se revestiu de tons sombrios. Beijos e abraços, que todos sabiam serem os últimos, lágrimas, uma reza, com todos os comensais de mãos dadas, e a seguir um silêncio ensurdecedor. Os pratos permaneceram praticamente intocados. Alguns comentaram a famosa manchete que definia o tempo remanescente. Viviane abraçou os filhos e sentiu um arrepio quando Rogério, chorando copiosamente, a envolveu em seus braços. Retribuiu o beijo, mas sua mente estava distante, mais precisamente a algumas horas daquele momento...ela teve até vontade de rir. Ninguém entendeu esse súbito acesso de hilaridade que acabou contagiando os demais.
— O que foi, querida? — Rogério, solidário, estava às gargalhadas também.
— Nada, estou nervosa.— Como poderia confessar que estava rindo da da própria dúvida. Ir com ou sem calcinha ao encontro.
As risadas cessaram. “ Vamos ligar a televisão” propôs alguem. Não foi tarefa fácil encontrar uma emissora no ar. “Deixa esse canal mesmo, é dos poucos nos quais passam noticiário”.
No silêncio que se estabeleceu, ecoou a notícia embrulhada num fundo musical beethoveniano.
“Urgente....O asteróide tornou-se finalmente visível. Segundo informações já confirmadas, o choque se dará amanhã, dia dez de dezembro precisamente às seis horas e trinta e sete minutos...Esta emissora sai agora do ar em caráter definitivo.


Biografia:
Alexandru Solomon nasceu em Bucareste (1943), mas vive no Brasil desde os 17 anos. Ao lado de uma sólida carreira empresarial, de uns tempos para cá passou a se dedicar a uma nova paixão: a literatura. Através da sua escrita nunca deixa o leitor indiferente. Autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus`, ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua`, além de colecionar vários prêmios nacionais e internacionais por sua escrita. http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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