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Inventivas verossimilhantes
Regina Vieira









iNVENTIVAS
VEROSSIMILHANTES







                                 Regina Souza Vieira










               Este livro fica dedicado à
                        Minha mãe, amiga inseparável
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO


Constitui-se, para mim, uma honra e um privilégio apresentar este livro, principalmente em se tratando de um trabalho da escritora Regina Souza Vieira, Doutora em Literatura e um dos mais destacados membros da Academia Neolatina Americana de Artes.
Possuidora de extraordinário poder descritivo, observadora sagaz e detentora de enorme cabedal de atributos humanitários, o que lhe confere maior crédito às definições, Regina nos presenteia com uma série de contos cujos textos, claros, envolventes, objetivos traduzem a preocupação em descrever a participação de cidadãos comuns na vida cotidiana, estudando-os, psicológica e profundamente, e realçando-lhes as reações e os caracteres, estes que, por mais simples que sejam, sempre passam, em parte, despercebidos pela maioria das criaturas, envolvidas que estão com seus próprios problemas. À rigor, pois, um delicioso passeio pelas ruas deste nosso universo particular, um mergulho no seio do povo e um abre-te sésamo social.
À Autora, parabéns, e que sejamos premiados com novas obras; por certo, excepcionais.
                                   
MÁRIO FERREIRA GOMES
                          PRESIDENTE DA ACADEMIA NEOLATINA AMERICANA DE ARTES
PALAVRAS INICIAIS
“Conto é tudo que chamamos de conto”. A afirmativa de Mário de Andrade, tomada de empréstimo a Horácio Quiroga, se ajusta perfeitamente às intenções de Inventivas verossimilhantes.
Ao iniciar estas narrativas, pretendi, de fato, escrever um livro de contos, mas o fluxo natural da escrita, conduzido pelas idéias que surgiam, ora do imaginário, ora da necessidade de transpôr para a folha em branco as experiências e os saberes adquiridos, fez com que algumas destas estórias não se restringissem ao gênero curto de contar.   Sem nenhuma intenção consciente, foram surgindo relatos que englobam fatos comuns e sincrônicos, particularidades da crônica; foram surgindo discussões que exigiam a intromissão de literatos, aproximando-me, assim, de artigos literários e não propriamente de contos.
Desta forma, Inventivas verossimilhantes faz jus a seu título: Sem dúvida alguma, é um livro com relatos imaginários, muito embora suas histórias tenham seus respaldos na vida, em fatos acontecidos ou passíveis de acontecer. Creio que esta é a missão do escritor: deixar-se levar pelo imaginário sem perder de vista a sua realidade, deixando entrever até um certo tom de protesto às incongruências do dia-a-dia.
Inserir este livro no gênero conto – conforme minha intenção inicial – parece-me, neste momento, de importância menor. O que pretendo é que a mensagem deixada nestas páginas enleve a atenção do leitor, enriquecendo-o intelectual e emocionalmente e fazendo-o aperceber-se de que não é em meu espírito que quero guardar as minhas experiências, mas sim no espírito de todos aqueles que se afastarem de suas ocupações para se dedicarem, ainda que por instantes, às minhas Inventivas verossimilhantes.     
       A AUTORA
A MUSA CURVADA AO TEMPO

          Você já reparou na transformação que o tempo exerce sobre nosso espírito? É impressionante olhar uma foto de vinte anos atrás e não se chocar com os traços mais profundos, o sobrecenho mais pesado e a boca, delineando um cone que tende a expressar seriedade e não o entusiasmo ou a alegria de outros anos. É impressionante, sobretudo para o artista, dar-se conta de que um semblante infantil ou adolescente amadurece com a pressa dos frutos verdes pendurados em árvores de caules frondosos e de folhagens crescidas em oposição ao sol, aptas a conservar o seu frescor. Mas por que as pessoas, cuja razão deveria servir de mola para facilitar a longevidade, se deixam ameaçar tão cedo? Não discorro aleatoriamente, sou pintor a óleo há quinze anos e, conhecido por famílias que conservam o gáudio de guardar num quadro pintado a fisionomia dos filhos, dos pais, dos parentes e dos amigos; sou chamado no mínimo de cinco em cinco anos para executar a obra. E o meu trabalho é instintivo. Não consigo forçar o pincel ou retocar melhor uma ou outra imagem com a finalidade de ser agradável a quem quer que seja. Talvez seja esta ausência de subterfúgios que torne o meu trabalho digno de mérito. Pra começar, recuso-me a pintar uma imagem a partir de outra, ou seja, a fazer um retrato, copiando-o de outro. Quero ver a pessoa ao vivo, ao meu lado, à frente do meu cavalete. Como só configuro a pessoa do busto para cima, não há nenhuma intenção má ou capaz de suscitar idéias desrespeitosas. Creio mesmo que o único aspecto desconcertante de meu trabalho são as evidências do tempo transpostas para a nova fotografia. Mas isto não é um fato que eu possa assumir como culposo à minha habilidade; muito pelo contrário, considerá-lo-ia como traço fidedigno da arte que exerço.
                    Há dias fui chamado à casa de uma senhora que freqüenta o society carioca e, depois de vê-la, várias vezes, nas colunas do Zòzima e do Swan, depois de pintar-lhe o retrato duas vezes antes, fui chamado para fazer novo trabalho. Tudo corria bem e, tanto a senhora quanto eu, estávamos inteiramente concentrados no que fazíamos. Da dama, eu depreendia ainda um certo esforço para manter continuamente o sorriso e os olhos, contornados pelo lápis preto, sempre bem abertos. Sem dúvida, eu estava diante de um modelo apto a colaborar comigo ou, quem sabe consigo mesma, afinal o produto final seria a sua própria fisionomia.
                     Duas horas mais tarde, dei por encerrada a tela. Parecia-me perfeita; olhei-a uma segunda, uma terceira e uma quarta vez e, comparando-a com o rosto à minha frente, diria-a até mais caprichada. Quase de sopetão, sem avisar o que ia fazer, virei o óleo para a sua dona, esperando, no mínimo, um gesto exultante. E pela primeira vez, assustei-me ante a reação da minha musa:
        - Seu idiota! Você pintou uma velha parecida comigo!
Discutimos uns dez minutos, ela se recusava a me pagar o preço devido, alegando que eu devia cobrar não a ela, mas à pessoa transposta por mim para a tela. Em meio à sua irritação chegou a dizer-me que eu é que deveria pagar-lhe por ter se prestado a substituir durante duas horas a pessoa -- certamente alguma paixão reprimida -- que eu guardava em meu subconsciente e que podia ser quem fosse, não era ela.
                 Fui para casa, pela primeira vez, decepcionado com a minha arte.   Não que eu duvidasse de ter, novamente, sido fiel à minha percepção, seguindo com o movimento de minha mão o que os meus olhos e os meus sentidos mandavam. Não que eu me apercebesse de qualquer erro ou mesmo julgasse correto, agora, dar algum retoque diferente; estava apenas irritado com a intolerância daquela dama cujo comportamento não deveria se afastar em muito do de outras madames que se recusam a envelhecer, somente porque são ricas ou porque, freqüentando as melhores rodas, têm de manter o frescor dos vinte anos.
                  Em casa, sozinho no quarto que alugava desde que vim para o Rio, ocorreu-me, não sei por que, uma idéia: folhear o álbum de fotografias da minha família. Talvez por ter esta profissão, todos, desde os meus tios aos meus sobrinhos-netos, passando pelos conhecidos de minha terra natal, fizeram sempre questão de me dar fotos suas e de seus filhos, o que constituía para mim um armário de três prateleiras cheias de álbuns e arquivos. Comecei a folheá-los ocasionalmente; de repente, as pessoas se repetiam com suas caras mudadas pelo momento mais alegre ou mais triste da foto, os rostos também assumiam, gradualmente, uma seriedade ou uma contração diferente. Em algumas fotos cheguei a identificar em pessoas mais idosas certo contentamento especial, mas em nenhuma chamei de beleza àquele sorriso. Engraçado, há tantos anos pintando, nunca me dera conta de certa sombra de envelhecimento, rondando as fisionomias humanas! Acho que, na verdade, precisava conhecer melhor a história de um tal de Oscar Wilder de cujo quadro famoso, Dorian Gray, a maioria das madames que me contratavam falavam tanto. Lá pela madrugada, consegui dormir, cansado, mas um tanto triste. Talvez amasse por demais a minha arte para me deixar machucar tanto com a impertinência de uma socialite qualquer.
                   Lá pelas nove da manhã acordei. Batiam-me à porta do quarto e, se bem ouvi a voz da proprietária da casa, chamava-me para atender ao telefone. Ainda meio tonto, vesti-me como pude e corri à sala. O gancho deixado ao lado do aparelho mostrava que, de fato, alguém chamara. Eu não era o único inquilino e não via à quem perguntar se o chamado era mesmo para mim. Atendi e identifiquei a voz, mais branda agora, que comigo se alterara na véspera. Não dava muitas explicações, mandava-me aparecer em sua casa, pois queria me provar como, desta vez, eu errara nas feições. Assumi o compromisso, mas quando desliguei, tive vontade de não ir ao encontro; não tinha nenhuma esperança de ser ainda remunerado pelo trabalho a óleo. Essas madames só querem é ostentação, os artistas que guardem suas verdades para quem bem quiserem!
                     Quando entrei na anti-sala para que fora chamado, não estava desarmado. Sobraçava algumas fotografias que davam à dama do society a comprovação de que eu não era culpado pelo quadro ter feições envelhecidas: se havia algum responsável, este era o tempo, esse inimigo feroz que passa, deixando seus rastros e não nos perdoa nunca pelos instantes bons ou maus que vivemos.
                      O que mais me espantou, entretanto, foi verificar que também a anfitriã estava armada: tinha quadros pintados por mim anos antes e ia virando-os à medida que comentava sobre esses trabalhos anteriores. E dava explicações: "neste, eu tinha vinte anos..., neste outro vinte seis, foi um dia antes do meu primeiro casamento..., este foi há três anos, alguém olhou para ele e disse-me que eu conservava o frescor dos trinta... Agora, olhe o que você pintou ontem! Que diferença, lembra minha mãe!"
Uma ruga a mais, ruga que eu não retratara na véspera, delineou-se no canto esquerdo de sua boca e eu, numa reação que desconhecia em mim, sorri de tal forma que quase não controlei a gargalhada frouxa.    Numa atitude que eu também não tive tempo de entender, a senhora se virou e me meteu na mão o cheque correspondente ao valor que eu cobrara. Já não tinha para comigo o rancor de antes, embora não se mostrasse totalmente conformada com as marcas dos anos.
                 Saí dali com um ensinamento muito mais enriquecedor do que, por exemplo, o daquele cheque que tinha, agora, no bolso. Aprendera com a minha arte que a idade, embora não trazendo bons eflúvios às minhas telas, dava-lhes singularidade. Era como se um rosto mais tênue e cansado mostrasse, também a mim, que não era possível esconder ou disfarçar os estragos do tempo, a corrosão da vida que, certamente, também sobre as minhas feições, legara o seu quinhão de velhice. E, ante esta idéia, ao contrário do que eu teria pensado de mim, se me tivesse dado um tempo para refletir sobre aquele momento, não me teria zangado. Senti-me bem ante a idéia de que tendo envelhecido, conquistara novas descobertas no trabalho e maior consciência no trato que tinha de dar às cores para não chocar àqueles que não tinham ainda, em suas razões, alcançado o mesmo amadurecimento. Ah, o tempo, esse implacável amigo que nem mesmo em nossos melhores momentos, como, por exemplo, no momento ansioso de se posar para um quadro a óleo, deixa de nos ser fiel e revelar a sua verdade. Ah, o tempo, "o tempo não perdoa o que se faz sem ele".

DO CREPÚSCULO AO SOL NASCENTE

          A solteirona, com seus trinta e cinco anos e suas fantasias ainda adolescentes, bordava, sentada na varanda todas as tardes. O seu nome era Verônica e ela morava com os pais e os irmãos naquela casa de Madureira. Aliás, apesar da violência já ter sacudido a maioria dos bairros suburbanos, havia ainda uma ou outra rua transversal, um ou outro recanto carioca que, por sorte ou por maior familiaridade entre os moradores, mantinha, senão a segurança de antes, no mínimo uma certa confiança que permitia aos moradores ficarem, pelo menos até certa hora, com o portão sem chave e as janelas abertas. Por outro lado, o livre acesso dos vizinhos reforçava a segurança.
                    Verônica quase nunca estava sozinha, ora era a vizinha do quinze, ora as crianças do quarenta e dois, ora as velhinhas solitárias do vinte e três. Enquanto conversava ou ouvia os disse-que-disse habituais, bordava; este era o seu hobby e o seu ganha-pão. Quisera estudar, o pai impediu; aos dezoito anos quisera trabalhar, faria qualquer coisa, desde atendente em alguma loja comercial a ajudante em algum escritório ou firma; a mãe se impôs: podia muita bem viver tranqüila, distraindo-se com sua agulha.
                  Nos primeiros anos foi até fácil aceitar o silêncio da costura, sentir-se protegida pela família e admirada pelos "tais vizinhos" que tanto elogiavam as suas "mãos de fada". Ultimamente, porém, certa impaciência começava a incomodá-la e a fazê-la sentir-se, por vezes, irritada. A mãe chegou até a comentar que a filha se desesperava por não lhe ter aparecido o noivo que desejava. Claro que, embora a confidência feita à vizinha de mais de vinte anos não nos pareça simpática, cumpre reconhecer que a amizade, sobretudo em senhoras pouco maldosas, traça, muitas vezes, linhas limítrofes com a falta de discrição.
Cada vez mais, Verônica perdia a paciência com as vizinhas; talvez desconfiasse ou se apercebesse do comentário da mãe e se sentisse envergonhada. Por outro lado, apesar de não ter realizado os seus sonhos, não ter estudado ou trabalhado fora, não era analfabeta; procurava, através de livros e jornais, atualizar-se o mais que podia. Claro, nem com a família e tampouco com a vizinhança comentava o que lia. O irmão mais velho guardava no quarto dele livros que eram de sua namorada, uma universitária sempre às voltas com romances escritos por mulheres. Ali nada era escondido; questões de sexo, ideais de liberdade, desvirgindades e gestações precoces; tudo tinha o seu perdão e até acabava sendo a melhor saída para a vida das personagens. Só ela, Verônica, tinha de viver da paixão pelos bordados!
                  Um dia, a namorada do irmão veio passar um fim de semana com eles. Seus pais haviam viajado e como a futura sogra já se aproximara o suficientemente bem daquela criatura a quem em breve também chamaria de filha, a convivência e a aproximação foi das mais ardentes. E que cabeça tinha a moça! Conversava com Verônica, num diálogo franco e aberto; à diferença das vizinhas, sequer lhe elogiava um ponto de bordado, parecia nem ligar para os movimentos rápidos que a linha e a agulha exerciam sobre os lençóis brancos. Tampouco seria exagero identificar-lhe certa indiferença por este tipo de trabalho, falassem-lhe, porém em livros, história universal, literatura: Que cabeça! Que desprendimento! Juliana sabia de tudo e não fazia segredo de nada; o puritanismo de Verônica não a atingia. Falava-lhe de igual para igual e mostrava-lhe um mundo completamente diferente daquele em que vivia.
               Aqueles três dias em casa de Verônica, tornou-as íntimas; até as costumeiras visitas se afastaram, vendo a bordadeira conversar, de olhos arregalados, face vermelha e, não raro, com uma lágrima deslizando: certamente o que deixara de viver, começava a doer-lhe na sensibilidade frágil. Entre muitas confissões, ficou sabendo que, à semelhança de tantas personagens femininas, Juliana também já não era virgem e, ao contrário do que outrora se preconizava, o fato já não importava nem ao noivo nem à maioria dos rapazes com quem convivia na faculdade. Os preceitos haviam mudado, fatos como este já se não incriminavam; viúvas e senhoras desquitadas praticavam o amor porque até a ciência o aconselhava para a saúde física. Um tanto estremecida, Verônica aguardou que a cunhada a visitasse outras vezes, munida de artigos de revista que atestavam o que ela afirmava com tanta segurança.
                  Estas novas lições inculcaram mais profundamente o espírito de Verônica; se antes se gabava de nunca se ter relacionado com nenhum rapaz, agora guardava o segredo para si e nem mesmo aos médicos ia, logo, abrindo as suas verdades. Aos poucos, os bordados foram se demorando mais, pousados na cadeira de vime onde as vizinhas já não eram recebidas nem ouvidas com a mesma cordialidade.   Os pais não tardaram a compreendê-la; as novelas na televisão, os conselhos que o dia todo se ouvia no rádio, tudo, enfim, servia de mola a um entrosamento mais íntimo. Claro que sapiência não se adquire do dia para a noite, claro que, enraigados nos preceitos religiosos ou limitados de um povo onde só a submissão deve predominar, os mais leves indícios de mudança são pecaminosos, mas já não havia como não aceitar. Verônica não conseguia mais ser a mesma, diminuíra em muito a agilidade dos bordados, para casa já não fazia nenhum, só mantinha algumas encomendas que lhe davam dinheiro. Não pedia, porém, para gastá-lo em festas, só comprava livros e lia... lia... anotava... e ficava pensando.
                    Meses depois, Juliana rompeu o noivado e não teve mais a oportunidade de visitar Verônica. No telefone, dissera-lhe que o irmão era por demais antolhado e um casamento nesses padrões não resultaria em grande coisa. Convidava-a, porém, a vir passar férias com ela no Leblon. Apresentá-la-ia às suas amigas e, com o tempo, ela poderia até estudar e trabalhar num meio que tinha em muito a ver com ela. Se não quisesse nenhuma das propostas, tinha uma outra: Seria sua auxiliar. Leria os romances de Virgínia Woolf, dois ou três livros que sua professora recomendara de Nelida Piñon, a nova presidente da Academia Brasileira de Letras, e resumi-los-ia para ela com palavras suas. Com tantas matérias exigindo estudo, ajudaria muito se alguém fizesse isso em seu lugar e, claro, não queria nada sem, em troca, certa remuneração.
                  Verônica veio para o Leblon, os aborrecimentos da mãe, os comentários da vizinhança e os disse-me-disse remediaram-se em pouco tempo. É que três meses depois de deixar Madureira, Verônica voltava ao bairro e, beijando muito seus pais e irmãos, apresentou-lhes o namorado. Homem dedicado aos meios de comunicação, desquitado, mas prometendo assumir a sério um compromisso com Verônica. Na verdade, precisava de alguém como ela, consciente de sua condição de mulher, para ajudá-lo na educação de seus dois filhos ainda menores. A família aquiesceu ao pedido, sabiam que já não era possível exigir de Verônica a acomodação de antes e, muito menos exigir dela uma vida dedicada à única arte que aprendera em casa: bordar. Aliás, lembrando-se disto, a mãe chamou-a no quarto e lhe sugeriu levar parte das peças que ela havia bordado, uma ou duas ficariam de recordação. Verônica não quis nada; o futuro marido já havia ido a uma loja para comprar tudo novo. Iam saindo do quarto, abraçadas como duas amigas e não apenas como mãe e filha, quando, parando de repente, Verônica cochichou no ouvido da mais velha: "Mãe, a sua filha, agora, já é mulher"!
               O casamento realizou-se no prazo previsto; o vestido branco e o véu um pouco mais curto do que usavam as noivas adolescentes davam a Verônica um ar de seriedade e felicidade. Uma das madrinhas era Juliana e, no altar, até o irmão da noiva, o antigo namorado de Juliana, não se furtou a um gesto carinhoso para com a ex-garota de seus sonhos. Após a cerimônia, os noivos demoraram a aparecer em Madureira; só o fizeram mesmo quando, já esperando um filho, Verônica pôde anunciar que se matriculara num curso de contabilidade e num outro de inglês. Em breve, trabalharia na firma do marido, embora tudo isto fosse apenas um meio para chegar a um sonho maior: a faculdade de direito ou de letras. Ambas lhe dariam respaldo para continuar lendo e aprendendo com a experiência de outros literatos, alguns destes já faziam parte de seu interesse intelectual, outros aguardavam na estante do Leblon a oportunidade de serem desnudados ao seu conhecimento.. Afinal, nem os bibliófilos têm tempo para ler tudo que querem.
            Feliz, rindo de tudo e para todos, Verônica estava, enfim, realizada consigo mesma. E as vizinhas, sussurrando sempre, não se puderam furtar a certo murmúrio que a moça, embora a distância, conseguiu ouvir:
            - Ah, o destino! Mau para uns, bom para outros, às vezes até carrega para longe as moças que são educadas para serem a companhia de seus pais.



POR QUE SONHAMOS?

              Juvenal cuidava de suas flores com tanto carinho que todos se admiravam. E sabia o nome de todas as espécies, afirmava que a orquídea era a mais delicada e que, por isso, exigia maiores cuidados. Tinha enciclopédias sobre o assunto espalhadas pelos diversos cantos da casa e sempre que podia, acorria ao jardim para observar o desenvolvimento das rosas, o frescor dos lírios ou regar com água e carinho as suas plantações. Formara-se arquiteto e trabalhava numa grande imobiliária cujos investimentos maiores eram os que se voltavam para a construção de grandes áreas na zona Sul da cidade; infelizmente os prédios já não dispunham de áreas muito amplas onde se pudesse esboçar grandes jardins; as grandes mansões -- já muito raras nas cidades - desfrutavam bem mais deste privilégio. Não podendo, pois, no trabalho, dar asas à sua paixão, desenvolvia-a na casa de campo em Teresópolis, a qual transformara numa área verde, reduzindo até o espaço útil que deveria caber ao conforto da moradia.
Juvenal tinha flores por todos os lados e em todos os cantos, amava o cuidado que dedicava a cada pétala, a cada folha e, se ao seu desvelo não correspondesse o resultado desejado, Juvenal sentia-se entristecer. A reação surgia-lhe no rosto e não tinha como disfarçá-la, aliás o sobrecenho se franzia com a mesma facilidade com que o sorriso lhe surgia nos lábios ao tomar nas mãos uma margarida ou um lírio em pleno frescor. Suas flores eram, talvez, as filhas que ele quisera ter e que não nasceram, devido, certamente, à tendência genética da família, que tinha uma propensão inexplicável para gerar filhos homens. Estes, Juvenal já tinha três; menores de cinco anos pareciam não compreender o pai melhor do que o restante dos adultos, que olhavam atônitos aquela excessiva dedicação.
            Teresópolis inteira o conhecia; nenhum floricultor deixava de visitá-lo quando precisava informar-se sobre o assunto, alguns incitavam-no a vender para os seus estabelecimentos as bonitas flores que, segundo eles, morreriam em breve sem lhe dar nenhum lucro, salvo o do prazer. Juvenal, entretanto, desconhecia tais propostas; como presente, como carinho a uma ou outra pessoa mais achegada, vez por outra, cedia à idéia do presente, mas vender: Nunca, nunca, nunca... E assim o jardim crescia e se expandia, ora para a frente da casa, ora para os lados, ora para o espaço onde, outrora, nos tempos em que tudo começara, a esposa utilizava para corar roupa e os filhos para brincar. Atualmente, aliás, as crianças tinham até mais distrações no playground do Leme do que na mansão serrana. Em compensação, nem os filhos nem a esposa findavam o dia sem serem chamados ao jardim, onde recebiam um gerânio, uma florzinha ou mesmo uma aula sobre botânica. Tudo isto sob o olhar admirado do cultivador. Por todos os lados, recendia a perfume e à noite o cheiro ficava ainda mais forte, levando certa vizinha ranzinza a passar pelo portão e murmurar em tom suficientemente alto para ser ouvido da varanda: “Hum..., que terrível cheiro de perfume! Parece que vivemos todos os dias o dia dos finados!"
Juvenal ria, tinha mais com o que se ocupar do que com as reclamações vizinhas. E, além disto, que mal podiam fazer as suas flores a quem quer que fosse?   O pior é que já não era só a mesma senhora que se queixava; um outro vizinho, por sinal uma pessoa educada e, até então, habituada a elogiar-lhe o zelo, procurara-o para, gentilmente pedir que ele fizesse um corredor de separação mais ampla entre o jardim da casa e a sua garagem; é que a esposa andava alérgica, sofria de falta de ar à noite e de dia tossia muito, segundo o médico era efeito da poluição. Como só havia o cheiro das flores... "Poluição? As minhas flores...?" Juvenal não aceitava, sequer ouvia os argumentos que pareciam farfalhar de todos os lados, perturbando até os sentimentos e as preocupações rotineiras da esposa.
                   De repente, o que sempre fora prazer se transformava num transtorno, como resolver, agora, o problema dos vizinhos? Ele, que tanto contribuíra para que um toque de poesia fosse dado à cidade, via-se na emergência de ter de aterrar parte de seus canteiros. E como estavam bonitos... Os elogios continuavam se fazendo sentir entre amigos e parentes que vinham visitá-lo. Os floricultores, mesmo sabendo dos estorvos que as flores provocavam a Juvenal -- numa cidade pequena, onde todos se conhecem, nada passa despercebido -- continuavam a instigá-lo a trocar flores por dinheiro. Mas nada, nada, nada conseguiam...
Juvenal, não querendo molestar ninguém, mas optando sempre por sua paixão, passou a ser mais gentil com todos que moravam nas redondezas. Encarregara os filhos de saberem o aniversário dos mais idosos, principalmente das mulheres, de avisá-lo em caso de alguém comentar sobre um acontecimento especial em casa ou na cidade e ele mesmo já parecia andar à cata dos falecimentos e matrimônios locais. Nessas datas, fosse quem fosse, recebia em casa um lindo ramo de flores das mais frescas acompanhadas de um cartão de pesames ou de felicitações da família Juvenal. Durante algum tempo, esta prática se tornou regra e Juvenal começou a acreditar que com esta forma de sedução a distância, as pessoas melhoraram de suas alergias. A vizinha que tinha a mania de passar por sua porta, referindo-se a Finados, era, agora, quem mais recebia flores; aquele amigo que lhe falara com jeito sobre as catarreiras da esposa parecia ter descoberto o elixir da longevidade feminina. Só parava ao portão para acenar-lhe com simpatia. Era evidente que tudo ficara em paz.
Depois de inúmeras idas e vindas semanais de Teresópolis ao Rio, Juvenal, atendendo às necessidades do trabalho, teve de deixar de ver as suas flores por quase um mês. Finalmente, liberado da responsabilidade que o prendera por tanto tempo, voltou feliz como uma criança à casa de veraneio. Mal desceu do carro e lívido como a família nunca o vira antes, ancorou-se ao portão trancado. Os canteiros e os espaços verdes que serviam de tapete às suas flores eram, agora, um amontoado de cinzas e areia. O fogo, atirado de fora ou do alto, devastara, talvez em minutos, o trabalho e o sonho de muitos anos.
Juvenal se abaixou, pegou do chão um punhado daquela poeira negra e atirou-a, depois de olhá-la incrédulo, novamente bem longe. Voltou ao carro, acelerou a marcha e tomou a estrada. Talvez tenha ido fazer o projeto de mais algum edifício na zona sul do Rio, em algum terreno árido onde não houvesse, de fato, nenhuma possibilidade de se plantar flores ou formar jardins, mas onde se tinha o simples direito de existir.

NOTAS ESPALHADAS NO AR

               A música se apossava fácil do apartamento onde Mara morava. Os seus dedos deslizavam de manhã, à tarde e à noite pelo teclado. Esta era a sua única razão de vida, diríamos até que esta era a sua única vida. Mara vivera, ao longo dos anos, alienada da realidade; nada, salvo a música, lhe interessava. Recebera, desde cedo, uma educação repreensiva e severa, por sorte ou mais propriamente azar, se deixara envolver pela excessiva erudição de seu professor de alemão, um norueguês que vivia isolado do mundo, buscando em sons abstratos, que praticamente só ele ouvia, a verdadeira essência da vida. Desconhecia televisão, programas de fim de semana ou festas populares, só comparecia a concertos ou peças de teatro cuja profundidade servisse para enriquecer-lhe a alma. Em aula, rebatia as comédias para enaltecer as tragédias, propalando sempre o quanto as primeiras conseguiam "estupidificar" os homens e as segundas amadurecer os espíritos. Poucos alunos conseguiam suportá-lo; aliás, passados os primeiros meses do ano, talvez as primeiras semanas, denunciava-se na sala vazia o pouco interesse que os seus dogmas incutiam. Com Mara, porém, a aproximação se fizera das maiores; saíam juntos e gostavam das mesmas excentricidades intelectuais. Ambos partilhavam uma solidão que só a eles convinha. Sem se dar conta , Mara começou, pouco a pouco, a se deixar influenciar.   Já não saía como antes, selecionava as amizades, irritando-se com os comentários mais banais possíveis e televisão era como que um instrumento pecaminoso, não pelas cenas isentas de censura, mas pela isenção cultural capaz de desviar os espíritos mais frágeis de investimentos verdadeiramente grandiosos.
Ante a mudança de comportamento, a família de Mara começou a ficar preocupada; tudo indicava que a sua saúde estava deveras ameaçada. Os pais procuravam médicos e os amigos davam-na como louca. A ela, tudo era indiferente, divagava quase o dia todo, buscando apenas aperfeiçoar as notas musicais e executar as sonatas mais antigas. E tal era o alheamento que, até com o piano desligado, parecia ouvir os altos e baixos da música.
            Claro que o tempo afastou o mestre, mas deixou o amigo, o que, por seu turno, foi, neste caso, um dos piores resultados do ano letivo. Aos poucos, porém, o professor também se foi afastando, outros compromissos, novas turmas e a preocupação de ser cada vez menos rígido com aqueles jovens que só falavam em música "Funk" e discoteca acabaram distanciando-o completamente de Mara.. O afastamento surtiu um efeito gradual no íntimo desta; entretanto, a sua personalidade estava, a esta altura, formada. Não seria mais uma pessoa comum. Com vinte e cinco anos apenas, freqüentava poucos amigos, mostrava-se arredia e só se relacionava bem com a sua música. Em pouco tempo, mas com muita insistência no que fazia, passou de aluna a professora de piano. Falhou na empreitada; os poucos alunos que conseguia, pediam-lhe apenas música pop; estávamos na época dos Mamonas Assassinas, um conjunto de cantores, cujo título com que se apresentavam era o bastante para irritar Mara. Mas os “Mamonas” passaram e Mara respirou aliviada, embora que por pouco tempo. É que, quase em seguida surgiam novos grupos musicais, dançando com os quadris quase no chão e cantando obcenidades (?) terríveis: "Segura o tchan... Amarra o tchan... Segura o tchan... Tchan... Tchan...Tchan...Tchan..." E havia pior, uma outra garotada, conhecida aos quatro cantos da cidade, rebolando e cantando: "Bota a mão no joelho, dá uma baixadinha, vai mexendo gostoso, vai mexendo a bundinha..." Que absurdo! Onde e quando conseguiria falar a seus alunos de Beethoven, Mozart, Litz? Não, a ter de ensinar essas baixarias, preferia parar de receber alunos em casa! Tocaria, de si para si, consigo, uma atitude que, embora honesta, serviu apenas para isolá-la mais.
             Começou a pensar que seria uma boa idéia apresentar-se em recitais, festas de aniversários e clubes; apesar de querer isolar-se tinha plena consciência de que não podia guardar só para si o que sabia. As lições particulares começaram, porém, a exigir-lhe a preparação de música, a seleção e os ensaios contínuos. Organizava salões festivos, dos quais só os alunos mais aplicados participavam. Nestas ocasiões, em recompensa ao seu empenho, era aplaudida de pé, exaltada e, num ou noutro evento, homenageada. Senhores e cavalheiros tentavam se aproximar dela, com segundas intenções, é claro, mas a barreira da intelectualidade sempre se impunha. Chegou a levar a sério uma paquera que, entre outros pretendentes, prometia certa afinidade a mais. De repente, porém, o caso foi esquecido e Mara voltou a se contentar com a música. Estava predestinada ao dó... ré...mi...fá... sol... lá...si... solitário.
             Acontece que, quer pela idade quer pelas mudanças que sua vida vinha sofrendo, Mara tornou-se, de repente, uma pessoa inconformada. Certa impaciência se foi apossando de seus nervos, a falta de um lenitivo mais completo, de uma vida mais ativa e participante começaram a pesar em seus dias. Embora constantemente diante do piano, já não se acomodava apenas a ele; envelhecera, passara ao que, com um resquício de juventude, chamava de pré terceira idade e se perguntava, angustiada, de que lhe valera tanta erudição se todos continuavam preferindo a música pop e os Roll Stones da época. A procura para aulas de piano escasseara tanto que até as noites que organizava trimestralmente para apresentar os alunos passaram a ser feitas apenas uma vez por ano.
                      Aconselhada por seu médico, um psiquiara a quem confiara as suas angústias, aceitando seções de análise semanais, decidiu viajar, procurar ares novos e conhecer pessoas novas; no fundo, um único estímulo persuadia-lhe a aceitação: no exterior teria melhor chance de se realizar profissionalmente. Quem sabe se numa temporada de férias surgiria a chance de uma vida com mais sentido e pretensões.
Viajou, percorreu alguns países que só conhecia no mapa e, levada pelo destino, foi a Viena. Aquela era a cidade de seus sonhos! Falava-se e respirava-se cultura e, sobretudo, música erudita. Mara até conseguira se aproximar de um maestro que, falando inglês corretamente, apresentara-a a outros músicos que, fazendo-a (se) sentar frente ao piano, durante o intervalo de alguns concertos, enalteceram-lhe a capacidade. Dois dias depois, já de malas prontas para o regresso ao Brasil, recebeu no hotel a visita de um daqueles músicos para quem ela se apresentara. Trazia-lhe o convite para se incluir num determinado festival, numa cidade vizinha, daí a um mês. Claro que, devido ao regresso, a impossibilidade era total, mas tomava uma decisão que, pelo menos nos seus planos atuais, era irredutível: Preparar os seus assuntos no Brasil, convencer a família e voltar definitivamente para Viena. A resolução era imediata demais para que, desde já pudesse dizer com certeza de que recursos viveria, mas para as primeiras acomodações um jeito seria conseguido.
            À hora marcada, feliz como há muito não se sentia, subiu no Jumbo que a traria de volta à terra de origem; infelizmente, por uma grave pane no motor o avião desapareceu no percurso. De Mara, restou para a família o som abstrato daquele piano que, até mesmo desligado, emitia pela casa e na memória de todos aquelas notas que nunca mais soariam com a mesma perfeição. Em meio a estas elocubrações, a família se conformava: a vida exige esforços imensos para que um ideal seja persuadido e só raramente alcançado.

ÀS VEZES, O SUCESSO CHEGA...

Escrever é uma necessidade tão forte para certas pessoas quanto respirar, comer e dormir são fontes vitais para a existência de todos. Aqueles que como Frederico nasceram dotados ou predestinados a este prazer se tornam tão dependentes da caneta e do papel quanto o ébrio do álcool.
Ainda hoje, a maioria dos melhores escritores cria os seus textos à tinta ou à máquina de escrever, poucos são os que já aderiram ao computador, havendo ainda a crença mística de que quem escreve, escreve impulsionado pelos deuses a quem cabe conduzir-lhes a mão. Levados, porém, pelas inovações do tempo ou apenas pela determinação que vem de seu íntimo, há uma ânsia sempre muito grande de se criarem textos, poemas, livros. Um mundo imaginário bem mais amplo do que o mundo real dos indivíduos libertos da ânsia de criar.
Frederico era um desses casos; tinha uma vida acidentada, repleta de problemas e trabalho, mas, mesmo assim, quer no ônibus, no táxi ou nos poucos momentos em que cedia ao cansaço para assistir televisão, uma idéia qualquer não o deixava parar por muito tempo. E lá se mexia ele, estendendo a mão para pegar da caneta e do bloco branco já colocado à mão intencionalmente. E difícil era parar antes das onze da noite.
Tinha, prontos para publicar, mais de duzentos poemas e dois livros, um de poesias e outro de mini estórias. Os amigos o incentivavam, mas sempre que se via na emergência de se decidir, perdia o entusiasmo. Quem lhe leria os livros? Onde os divulgaria? E teriam mesmo valor literário? No momento de escrever, nada disto lhe importava, entregava-se... fantasiava... criava... Estes eram os seus momentos mais felizes.
Começara fazendo poesia; a ignorância, durante anos, levara-o a ditar com rimas e refrões os seus sentimentos mais verdadeiros. Vivesse no romantismo e seria, talvez, o poeta mais consagrado; sem reprimendas, sem censuras pessoais. De repente, as aulas de literatura, na universidade, começaram a informá-lo de que no modernismo, o poeta tinha de ser não só inspirado, mas também crítico. Em outras palavras, era hora de distanciar-se do texto e não usá-lo simplesmente para chorar as suas dores ou referir-se a questões pessoais. Nesse momento, o lirismo de Frederico mudou. Era como se também ele quisesse inovar, fazer-se hermético, atender aos ditames quase matemáticos da poesia cabralina ou aos gráficos dos concretistas. Com isto, Frederico passou a se apaixonar ainda mais pelo ato da criação. Disfarçava significados, metrificava estrofes que, uma vez prontas, admirava como um trabalho de artesão.
O impulso poético é, entretanto, ocasional; não são todos os dias que as idéias se apresentam aptas à percepção; existem dias de maior racionalidade e de maior praticidade, dias em que os poetas e, inclusive Frederico, se sentem estéreis para o trabalho. Mas como não se deve restringir a habilidade artística nem tampouco se deve desenvolver uma só arte, Frederico, levado pelo hábito da caneta e do papel, passou a criar estórias e até romances. Sequer precisamos dizer que se apaixonou pelo feito. Sacrificava horas de sono, momentos de diversão e escrevia... escrevia... escrevia...
Muito tempo depois, por mero acaso, Frederico se tornou amigo de um autor de novelas para a televisão, um contato que lhe dava a chance de trocar idéias sobre os seus escritos. O amigo sugeriu-lhe dedicar-se mais ao que fazia, mandou-o, depois de ver-lhe os trabalhos produzidos, a uma emissora que, segundo ele, pedira, dias antes, um roteirista. Frederico se animou, a chance parecia começar a lhe sorrir. Viver do que escrevia sempre fora o seu grande sonho. Mas conseguiria mesmo?
Evidentemente, as barreiras logo se impuseram; o diretor da dita emissora queria alguém mais experiente, mostrando no currículo já ter desempenhado a função durante algum tempo. Como, porém, precisava e não havia outra pessoa tão disponível no momento, confiando na recomendação do autor novelístico, o diretor entregou-lhe o filme. Frederico nunca havia montado um roteiro, escrevia muito, amava o que fazia, mas esta função não significava o mesmo e, pela primeira vez, receberia dinheiro em troca da experiência literária. Precisaria, porém, de muito tempo para realizar o trabalho, pois, além de fazê-lo, tinha de se informar melhor das normas que fundamentavam este gênero. E o diretor dera-lhe um prazo curtíssimo, o qual Frederico já começava a considerar impraticável. Só por milagre, daria conta do trabalho na empresa, exigindo-lhe oito horas diárias e da organização do trabalho literário. Tinha de decidir-se agora; sempre sonhara em viver de seus escritos -- uma conquista que, no Brasil, só Jorge Amado obtivera. Chegada a oportunidade com que tanto sonhara, Frederico temia pelos riscos que esta implicaria. Os momentos, ou melhor, as horas que o separavam da resposta definitiva, resposta que dependia de uma decisão sua, foram inquietantes. O novelista amigo aconselhava-o a ceder aos dons do intelecto, opinião que se originava, certamente, do fato de ele ter vencido através de sua vontade apaixonada. Frederico, entregue à ansiedade e às elocubrações que o faziam imaginar-se, um dia, um grande escritor, tomou do telefone e, com duas ligações sucessivas, uma para o diretor outra para o chefe da empresa, decidiu sua vida. Desligava-se do emprego remunerado para ligar-se à emissora de televisão, que sequer havia antecipado quaisquer perspectivas de ganho.. Tudo era muito imediato, incerto e impensado. Sequer tinha certeza do que estava fazendo, mas estava feliz consigo. Decidira-se pelo que o seu coração mandava.
Frente ao computador, passava agora os seus dias, até a informática que, até àquele momento, lhe era desconhecida, penetrava na intimidade de seus ímpetos, aquinhoando-lhe a mente e o espírito com termos que só conhecia a distância: kit multimídia, software, word 7.0, e-mail ; enfim, a linguagem dos computadores apossava-se de seus conhecimentos com a velocidade de ondas magnéticas, rompendo distâncias, acompanhando a tecnologia. Mas tudo isto se aprende fácil, o pior era saber se o roteiro ao qual se dedicava em tempo exclusivo ganhava mesmo as proporções que o diretor esperava. Aliás, já havia a promessa de outros trabalhos e a certeza de que a compensação financeira seria promissora.
            Esgotados os três meses de prazo, Frederico, pontualíssimo, entregou o trabalho feito. O diretor, após un coup d'oeil no maço que lhe era entregue, prometeu a Frederico telefonar-lhe tão logo estivesse de posse do pagamento, o que não excederia mais do que cinco dias úteis.
De volta a casa, Frederico parecia, pela primeira vez, se dar conta da besteira que fizera: largara um emprego certo, numa empresa conceituada, para se dar, praticamente como free-lancer, a um trabalho que poderia parar ali. Do que viveria doravante? E se o diretor não o chamasse mais para novos roteiros? Aos quarenta e cinco anos não se conseguia trabalho fácil, só devia estar louco quando deixou a empresa. Felizmente, teria os ganhos de roteirista; se não pudesse investi-los na publicação de seus livros, guardados em sua estante há anos, pelo menos não passaria necessidades até obter uma nova chance de sobrevivência..
Demonstrando a si mesmo mais juízo do que anteriormente, não esperou sequer os cinco dias que o separavam do pagamento prometido e saiu em busca de nova colocação. Tirou dos classificados ofertas que até pareciam promissoras, apresentou currículos e se propôs a uma série de funções plausíveis à sua habilidade. Mas ao término das investidas, só lhe cabia mesmo usar o termo popular do momento: "tudo acaba em pizza". O pior é que o chefe da emissora se mostrava indiferente ao compromisso. Já se haviam passado vinte dias e só sabia dizer que, no dia seguinte, teria já o pagamento à sua disposição. O seu roteiro agradara a gregos e troianos e havia planos de outros sucederem este. Promessas... Palavras... Enganos...
Frederico precisava apelar para novas chances, tinha fôlego sobrando dentro de si e capacidade também. Para fugir às dívidas ou, no mínimo, controlá-las, evitando o mau caratismo de que sempre teve verdadeiro ódio, Frederico passou, na esperança de se dar um tempo até conseguir algo mais concreto, a fazer, em casa, trabalhos de digitação, cópias, cartões de visitas, livros eletrônicos; o que lhe solicitavam fazia. Também os seus contos, transformados agora em crônicas dotadas de ironia ante a vida, ganhavam a formatação eletrônica. Mesmo desiludido, não deixava de escrever, este era o seu dom, talvez o seu karma.   Por ele botara a sua vida a perder, receberia ainda algo de positivo em troca?
Já desiludido, entrou, certa tarde, numa editora e, depois de conversar demoradamente com o editor, conseguiu o cargo de revisor. Agora, porém, as suas intenções eram secundárias, ficaria ali até conseguir as simpatias de seu chefe e a confiança suficiente para lhe publicar os livros através de parcelamentos demorados. Abrira um processo contra o diretor do filme do qual fora o roteirista e, segundo o advogado, ele conseguiria receber com juros e correção monetária os ônus de seu trabalho. Isto significaria muito mais do que Frederico poderia imaginar. Mesmo sem muitas esperanças, Frederico não desistia. Queria, no mínimo, punir o diretor que o envolvera em calote.
Depois de alguns meses trabalhando na editora, recebeu a notícia de que a mesma não tinha mais condições financeiras para se manter, já pedira concordata e, agora, fecharia definitivamente. Tudo por falta de um capital mínimo. Na mesma tarde em que a notícia deste fato lhe chegara aos ouvidos, o advogado telefonou-lhe, dizendo que a justiça deliberara a seu favor e ele receberia o valor de toda a dívida. Confirmada a decisão judiciária, Frederico procurou o editor que, desesperado com a situação que estava enfrentando, sugeriu que ele abonasse esse dinheiro em favor da editora, tornando-se sócio da mesma.
Com o capital conseguido em juízo e mais algum investimento a situação econômica da editora se reverteria. Frederico não hesitou, cedeu logo o primeiro dinheiro que lhe chegou às mãos, vendeu o apartamento onde morava e, por um termo legal, se fez sócio da editora, novamente apta a reiniciar os seus trabalhos.   A partir daí, esqueceu as revisões, empenhando-se pela editora; investiu em novos autores e novas publicações e, ele mesmo, pouco tempo depois, se tornou um dos principais "novos" a ser divulgado. Se conseguiu se tornar, de fato, o literato que pretendeu um dia, só o tempo do qual não tivemos mais notícias, pode dizê-lo. Mas a alegria de ver o seu primeiro título lançado atesta-se na fotografia que mantém sobre a mesa da editora na qual trabalha e da qual é, hoje, o sócio majoritário.   O seu nome e os seus livros figuram também nos catálogos de vendas de algumas livrarias e tudo leva a crer que o sonho de Frederico compensou todos os primeiros esforços.
A iniciação literária , que começara como pesadelo, transformara-se na mola propulsora de seu sucesso.

A FORÇA DE SER MAIS FORTE

        Às vezes, ainda que raros, há os casos daqueles que são ricos e não se habituam ao comodismo da fortuna. Quem disse que dinheiro não traz felicidade, acertou. Aliás, o bom é conseguir seja o que for, lutando. Borges, que não é o escritor chileno que todos conhecemos, mas um amigo que tenho há muitos anos, vivia entediado com a sua falta de trabalho; na verdade, não tinha um mínimo de apetência para ser rico e viver de pernas para o ar, embora tenha sido criado na mais alta sociedade, levando uma vida quase principesca. Dinheiro não era o seu problema; a sua angústia, aliás, era não se poder projetar com o seu próprio esforço. Estudava, tinha aula de tudo e diversões inúmeras, até exaustivas, mas quem disse que era feliz?   Faltava motivação ao seu espírito; nascera ambicioso, uma herança, talvez genética, que todos os seus antepassados haviam utilizado de modo útil, mas que ele se via restringido a ter de aprisionar em seu interior. É que a família fizera dele o filho mimado, dono absoluto de toda sua fortuna e não lhe via razões para exigir esforços que ultrapassassem o prazer pessoal. Borges Restrum -- este era o seu nome de batismo -- nascera de um parto difícil cujos problemas vitais repercutiram numa debilidade orgânica, caracterizada por períodos de anemia ou fragilidade que o levavam a uma espécie de depressão. Ele, porém, não atribuía às condições congênitas a saúde frágil, atribuía-a à falta de poder fazer na vida o que bem queria: Lutar, envolver-se nas empresas da família, tomar decisões, enfim, agir como homem. Entretanto, tudo que concerne à seriedade da vida lhe era negado; era campeão de basket , de natação, de voley vice-representante da sociedade fluminense de corredores júniors, primeiro da turma na universidade, o mais conhecido na turma de ciclistas e o grande vencedor que recebeu até troféu no hipismo; enfim, vivia de campeonato para campeonato, gastava as suas forças -- forças que a família não reconhecia como desgastes físicos -- em esportes que não o levavam a lugar nenhum. Sempre soube que toda sua capacidade ou seu valor no presente se extingüiria com o passar da idade. Aliás, já estava com vinte anos, ou investiria em algo de concreto ou sua vida recairia no inútil, no vazio. Não estava feliz, apesar das mordomias de que usufruía. Como fazer os pais entenderem isto? Estavam sempre ocupados, num corre-corre ilimitado, as poucas horas que lhe dedicavam ou eram para pagiarem-no ou para exaltarem-lhe os feitos. Só os irmãos sabiam que ele sofria com este tipo de comportamento, mas ocupados sempre, ouvindo dos pais diariamente as mesmas alegações, acabavam recaindo na indiferença e apoiando, não a ele, mas aos pais.
Borges teve uma idéia: Pediria dinheiro para uma viagem aos Estados Unidos -- no ano anterior fizera três -- e lá, libertar-se-ia. Ao invés de passear, visitar museus e ver sempre os mesmos lugares, permanecendo horas esquecidas nos mesmos hotéis de luxo, desfrutando das saunas, piscinas e mordomias já tão cansativas, procuraria um emprego por lá; talvez de pintor; inventaria um nome fictício e trabalharia como tantos jovens estudantes brasileiros , que viajam para se aperfeiçoarem no exterior. Uma vez estabelecido, começaria a estudar e viveria, a partir de então, às suas próprias custas. Liberdade também tem o seu dia!
Viajou de fato, os pais de nada desconfiaram e, portanto, nada questionaram. A única reação observada pelo rapaz foi um certo olhar tristonho, espécie de lamento, já comum em relação ao sentimento que os pais sempre manisfestaram e que só podia ser interpretado como proteção excessiva.
Em Miami , tudo se deu como Borges, ou melhor, como Bob, premeditara. Em pouco tempo, conseguira encarregar-se da pintura de um apartamento, surgindo logo em seguida outros "flats" maiores ou menores do que o primeiro, mas garantindo-lhe sempre um bom orçamento. Fizera também novos amigos e, pouco a pouco, com alegações que escapavam sempre à verdade em que vivia, conseguiu distanciar os contatos com a família. Não tardou a convencê-los de que viveria naquela cidade durante, no mínimo, um ano. Sequer os pais objetaram, se atrasasse ou não os estudos, se tinha uma vida condizente com as responsabilidades que se exige sempre dum jovem de sua idade, nada disso importava-lhes; queriam apenas que o filho fosse feliz. E isto, pelo entusiasmo das cartas e dos telefonemas, ele nunca fora tanto.
Ficou nos States, preparou-se e matriculou-se numa universidade às custas de seu trabalho e, mais importante, foi feliz. A auto-independência deu-lhe coragem para, anos depois, enfrentar os pais, que também já não eram com ele a mesma pessoa: olhavam-no de igual para igual, propondo-lhe a direção de uma de suas empresas. Ah, a liberdade! Que preço pode ter essa palavra? Certamente, fosse qual fosse, nenhum seria maior do que aquele que Borges edificou em seus sentimentos e em sua vida: Confiança, Talento, Ousadia!

O RAINBROW, UM DESCONHECIDO

Havia, numa cidade paulista, uma senhora idosa que dizia nunca ter visto o arco-íris. Por mais que se desacreditasse de suas palavras, achando-se que o mais certo era ela não saber o que era, embora já tivesse, numa manhã azul, visto no céu os três círculos de cores diferentes, não se podia deixar de estranhar aquela quase obsessão de Clara em ver, antes de morrer, o espetáculo que todos consideravam bonito.
Numa manhã ensolarada, que sucedia a um iluminado plenilúnio, trouxeram Clara para perto da praia; mostraram-lhe o céu e ela, à diferença de todos, que estavam em sua companhia, não visualizava perto do sol o grande círculo de que lhe falavam. O neto mais velho explicou:
- Vovó, olhe ali! Três arcos: azul, amarelo, verde. Olhe, bem nítido! Em volta da nuvem!
- Claro, mamãe -- redargüiu a filha do meio -- todos estamos vendo; olhe venha mais para cá; isto, fique bem perto de mim e olhe: lá, ali, junto ao sol.
- Não vejo nada; vocês são é loucos! Que arco-íris, arco-íris... isso é coisa de louco! Como pode estar no céu se eu não vejo! Ainda não estou cega e os meus óculos são, aliás, muito bons!
Não adiantava; a velha não via mesmo o arco-íris. Todos mostravam, todos viam, alguns até imaginavam que ela estava mentindo, querendo chamar a atenção -- o que, à semelhança das crianças, é uma atitude normal aos idosos -- mas a verdade é que Clara não via arco-íris nenhum.
Desistiram naquele dia, esperaram outra oportunidade. Clara quase não saía da janela ao pôr do sol, era um sonho ver o arco-íris, tirar a limpo essa idéia de que no céu as cores solares se formavam em círculos, fonte de inspiração para músicos e poetas. Ela também nunca vira nenhum disco-voador nem tampouco fantasmas. Certamente, não nascera dotada ou, então, era a única sã, isenta de visões, em meio a tantos loucos que falavam em forças ocultas, seres de outros planetas e mistérios. O sonho de ver o arco-íris começou a transfigurar-se no ódio de que o tinham inventado para irritá-la. Ela enxergava muito bem; enfiava agulhas e costurava, às vezes com uma só lâmpada de teto; o que se devia, aliás, ao fato de ser muito econômica e de não querer nunca desperdiçar luz à toa.
             Um dia, adoeceu; com noventa anos, levou a família a pensar no pior; veio um neto de Los Angeles visitá-la, não queria perder a avó querida sem lhe dar o seu abraço filial. Ao vê-lo, a velha teve, coincidentemente, uma melhora inacreditável.   Levantou-se, voltou a andar e a alimentar-se como antes; o neto, feliz com o êxito de sua chegada, passava as tardes contando-lhe as suas aventuras, mostrando-lhe as fotos do seu dia-a-dia. De repente, apresentou-lhe, numa fotografia, a noiva americana, de pé, de costas para uma montanha. A velha, séria e inquieta, perguntou-lhe de sopetão:
              - O que é isto atrás dela? Círculos de luzes diferentes?   Como as câmeras americanas conseguem esse efeito?
               - Vovó, isto é o arco-íris!
               - Ah, você também está mangando de mim! Suma, suma daqui!
                  Pobre moço, não se zangou com a avó, é claro, mas desconheceu-a pela primeira vez e voltou para Los Ângeles com uma impressão estranha ante aquele comportamento que não condizia com o jeito terno para com ele.
    Meses depois, por mero acaso, Clara estava sozinha em casa, descontraída, ouvindo suas novelas e fazendo tricô, quando, num ímpeto impaciente, comum ao seu temperamento inquieto, conseqüente de anos nos quais o trabalho fora o incentivador de todas as horas, foi à janela. Ergueu a cabeça e viu, desta vez sim, ela viu o arco-íris a distância. Primeiro, pensou que estava imaginando coisas, afinal a idade já era muita, depois, olhou melhor e conferiu; ainda duvidou. Na calçada, talvez a dois metros de altura, ia passando o sobrinho da vizinha, o Hércules, metido a só falar inglês e a não dar confiança a qualquer um. Clara, entretanto, sequer se lembrou de quizilas pessoais e impetuosa, como de hábito, jogou a bengala para fora da janela e cutucou-o no ombro.
             - Escute rapaz, está vendo aquilo lá, perto do sol? O que é aquilo?
             - The rainbrow, vovó! The rainbrow!
              E saiu andando, deixando a velha irritada, xingando-o pelas costas e com a mesma curiosidade. Mas, na sua idade, não devia pôr a perder os conhecimentos que a vida tinha ainda para dar. Por isso, saiu à rua e tocou a campainha vizinha. Foi Da Sílvia quem atendeu.
               - Sílvia, -- foi logo perguntando e reclamando -- perguntei ao teu sobrinho o que era aquilo lá no céu e ele respondeu que era um tal de REI BROL, sabes o que é?
              - Claro, aquilo é o arco-íris de que já te falamos tanto! Que bom, conseguiste, finalmente, ver o arco-íris!
               Da Clara guardou para si o segredo, embora certo ar de mistério passasse a figurar-lhe no rosto, daí por diante. Dentro de si, uma certa luz parecia acender-se quando pensava no arco-íris. Não duvidava de que morreria em breve, mas pelo menos o grande mistério da curiosidade havia se dissipado: Vira o arco-íris e não se arriscaria mais a afirmar que se tratava de um fato mentiroso. Sabia agora que nem só os poetas, artistas ou místicos tinham o poder de visualizar belezas assim. Ah, se fosse mais nova! Não, adiantava sonhar; não podia retroagir no tempo e tempo só tinha para escrever ao neto em Los Angeles explicando o mal-entendido. Ah, o arco-íris, ah a vida, ah a vida e seus mistérios!...

UMA FORMA DE SER FELIZ

Aquele menino, nascido em Copacabana e criado com todos os mimos que se dedica a um filho único, desde criança revelava tendências para o circo. Passava o dia brincando, pulando, alegre da vida. Na escola, o comportamento não era diferente; tinha sempre um gesto engraçado ou uma atitude mirabolante que despertava o interesse dos colegas distraindo-lhes a atenção e sendo vítima das mais severas repreensões.
Aquele menino cresceu; passou da infância à adolescência, a vida não lhe era em nada benévola; até lhe reservava, às vezes, momentos de dor como, por exemplo, a perda da avó de quem tanto gostava, a incompreensão do pai no tocante a esbanjar dinheiro com mesada e a determinação da mãe em torná-lo um homem de bem. Nada disto modificava, porém, o seu humor, vivia feliz, cantando e parecendo não levar muito a sério as intransigencias dos mais velhos ou as amarguras da vida. Tudo era motivo de graça e, por mais que insistissem para que ele estudasse sério e escolhesse uma profissão digna de um futuro universitário, Carlito – como era chamado – só tinha uma certeza: ser ator ou humorista; se possível, ambos. Importante era ser conhecido. Assistia, à tarde, um programa que mostrava os erros das gravações das novelas e se apaixonava por aquele mundo onde seres reais viviam em meio à ficção; amando e odiando de mentirinha. Isto sem contar o sucesso e o assédio das garotas, pedindo autógrafos e querendo beijos. Verdade é que algumas atrizes eram também linchadas na rua, porque faziam o papel de vilãs e malvadas, mas isto pouco lhe importava; batessem-lhe ou aplaudissem-no, seria artista televisivo ou de circo. E tanto quanto ser ator, o humorismo o influenciava de perto. Sempre ouvira dizer que era mais difícil fazer rir do que fazer chorar e, no entanto, instante a instante, a vida reservava-lhe atitudes grotescas que poderiam ser adaptadas ao humor. Um simples tropeçar de alguém na rua abria na maioria dos rostos um sorriso prestes a se transformar em gostosa gargalhada. E nada devolvia melhor as forças diárias.   No entanto, alguém observara, com justa razão, que as pessoas, ultimamente, andavam tristes e casmurras, conseqüência, é óbvio, da violência que obrigava os seres a se individualizarem, fechando-se não apenas em suas casas, mas até dentro de seus carros particulares quando saíam para passear. Mas tudo isto poderia mudar, senão por completo pelo menos em parte, se mais pessoas se dessem, na televisão e no rádio, a mostrar o lado grotesco da vida, o aspecto positivo e engraçado de certas situações encaradas apenas pelo pessimismo humano. Tudo isto era, contudo, considerações que Carlito fazia em seu dia-a-dia sem encontrar nem a aprovação dos amigos nem dos pais. Eles também se incluíam na grande maioria de indivíduos tristes, angustiados, preocupados.
O tempo passou, a vida foi decorrendo em meio às contrariedades de ter de freqüentar o cursinho de vestibular, preparando-se para um curso que não tinha nada a ver consigo: odontologia. Tudo determinação dos pais e avós , que esbanjavam dinheiro e energias psíquicas para que ele se entusiasmasse por uma profissão que quase odiava. No fundo, acabaria sendo engraçado extrair os dentes dos outros, deixando-os banguelas. E que risada franca tinham os desdentados! Talvez fossem eles um motivo inicial para, distribuindo risadas, contagiar os “sérios” personagens da vida diária.
Carlito realizou a vontade da família, se formou dentista e abriu consultório. Era sempre muito engraçado com todos, até que, no rádio permanentemente ligado para distrair os clientes e para fazê-lo também sentir-se mais feliz, ouviu o chamamento de uma emissora de rádio para um teste de o melhor piadista do mês. Inscreveu-se por brincadeira, usou de pseudônimo e se apresentou. Não foi, porém, o vencedor do teste, mas aquele contato com os outros candidatos impulsionou-o tanto que resolveu, a partir daí, só fazer graça. Ninguém soube exatamente por que meios, Carlitos chegou à televisão. No entanto, nos momentos mais inesperados, clientes, parentes e amigos interrompiam, frente à tela, as suas atenções para apontarem o velho conhecido. O “Graça Fácil” ganhou a simpatia de todos e o dentista continuou existindo a par com o lado hilário de Carlito,; afinal, rico ri à toa, mas quem não tem muitos recursos, acaba fazendo de tudo, até meter a mão em bocarras alheias para sobreviver, obturando dentes ou extraindo dentaduras inteiras....


QUANDO O ÍMPETO É PROVEITOSO
          “Rir é o melhor remédio”. Ouço esta frase desde que me conheço por gente e , se há solução ou paliativo para tornar os meus momentos mais agradáveis e a vida mais leve, este é, sem dúvida, o melhor remédio. Rir é um dom que Deus só concedeu ao homem, é o tributo mais gratificante do qual podemos dispor a qualquer hora e em qualquer lugar sem que nenhum ônus nos seja exigido em troca. Verdade é que o riso também constrange e pode, quando mal interpretado, colocar-nos em situações difíceis. Mas, por mais que nos acusem pelo riso frouxo, haverá sempre uma desculpa; afinal, nem todos somos possuídos de uma razão capaz de superar situações banais.
Graça, uma inteligente e bonita senhorita, cujo nome parece ter-lhe caracterizado a personalidade, vive se metendo em emboscadas e safando-se de complicações mais sérias justamente porque não controla a expansão hilária de seus sentimentos. Dizer que não tem maldade, seria dotá-la de uma ingenuidade que não condiz com o seu grau de cultura, dizer que encara a vida com otimismo, seria exagerar; admitir que só vê passarinho verde na vida que leva, seria desconhecer o lado consciente de seu ego e de sua dedicação profissional. Graça é secretária bilingüe de uma empresa no Rio, faz inúmeros contatos diários, conhece muita gente e é facilmente reconhecida por sua atitude gentil e risível. Alguns amigos colocam-na em situações gracejantes, provocando-lhe o vexame que, certamente, leva-os a explodir em gargalhadas. Mas Graça, embora zangada com a maldade, logo se refaz e assume a fisionomia que lhe é peculiar: riso aberto, expressão tranqüila. É claro que o seu esforço é muito grande; se vivesse a seu bel prazer, riria de tudo e de todos; a vida, nos incidentes mais banais, se lhe abriria como um palco de comédias.   É que se vê sempre atraída pelo que ouve de outras pessoas, pelos erros, pelas cortesias exageradas e, sobretudo, pelas “garfes” alheias. Por mais que procure ser moderada, educada e disfarçar as atitudes mais provocantes, Graça tem de fazer um esforço enorme para parecer o que é: uma pessoa séria. Mas, às vezes, é mesmo muito difícil.   Quantas vezes, na rua, quis ajudar pessoas que via tropeçar numa pedra, numa casca de banana ou ao descer do ônibus, porém não conseguia; o tombo era a principal causa explosiva de seu riso. Não se controlava; o vexame que passava em situações assim era até maior do que o das pessoas que caíam, tal era a incontinência de suas gargalhadas. Nesses momentos, até os amigos mais próximos desconheciam-na ou duvidavam de sua integridade; impossível era compreender que alguém se risse tanto da dor alheia. Na infância, havia apanhado muitas vezes, justamente porque, principalmente os pais, queriam corrigir aquela “falta de vergonha”, ensinando-a a ser indiscreta e educada.
Quando entrou para a faculdade, Graça, preocupada também com aquela conduta que não era das mais corretas, aceitou inscrever-se num curso livre cuja temática era a carnavalização. Os colegas , que já haviam feito o curso , diziam-lhe que rir era normal a todos e que, nesse curso, ela encontraria muitas explicações que podiam ajudá-la não só a se entender melhor como a explicar àqueles que não queriam compreendê-la que “rir é ainda o melhor remédio”. Ali aprendeu, de fato, um pouco mais sobre o riso; conheceu Rabelais, autor francês, cuja personagem Gargantua, era um cômico imensamente gordo, que, em certos aspectos e guardadas as devidas proporções, tinha algo a ver com ela. Nesse mesmo curso, aprendeu que o carnaval era uma espécie de desmistificação do cotidiano, uma quase necessidade de o homem sair de si mesmo e, pelo menos por poucos dias durante o ano, descontrair-se e despir-se de suas máscaras. O mais interessante é que, em épocas remotas, até o clero se dera a essa prática como uma necessidade de se despir da seriedade e da contrição religiosa. Aprendendo tudo isso, Graça passara a se sentir menos culpada ante a sua maneira de ser, ela que sempre fora tão censurada, tão incriminada e até castigada, identificava-se, agora, com personalidades que tinham verdadeira necessidade do riso e até procuravam o ridículo para se afirmarem como simples seres humanos.
Como gostasse muito do assunto e vivesse em constante pesquisa a respeito, não tardou a estudar Henri Bergson e toda a sua teoria do riso. Em breve, referia à mãe a diferença entre o humor e a ironia, recusando-se sempre a aceitar esta última forma que, sabia agora, só valorizava os assuntos inferiores, destruindo toda e qualquer conotação positiva a respeito do que quer que fosse. Por mais que Graça demonstrasse aos pais que a sua propensão para o riso não passava de uma tendência natural de ser, a situação se agravava sempre contra ela. Conquistara inteligência, saber, amizades, um bom emprego, mas havia sempre uma certa antipatia contra o seu riso frouxo, fácil e incontrolável. Tivera dois namorados, mas ambos terminaram o relacionamento porque, além de lhes parecer que Graça não levava nada a sério, achavam-se ridicularizados ante as inesperadas risadas da moça. Depois de conhecerem-na por algum tempo, os namorados chegavam a admitir que, nem quando tinha de lhes dizer o nome, a moça era sincera. Como se explicaria que, na pia batismal, escolheram o nome de Graça para uma pessoa que era constantemente engraçada? Uma vez, para provar a sua veracidade, chegou a mostrar todos os seus documentos, depois, decidiu não mais fazê-lo. Chegou a se aborrecer com isso; o problema é que, até aborrecida, reagia rindo.
A situação se agravava com o passar dos meses, dos anos e dos relacionamentos profissionais e amistosos que fazia. Um dia, no escritório em que trabalhava, entrou uma senhora para falar com o seu chefe, quando ela, na condição de secretária, pediu-lhe que aguardasse sentada por alguns instantes, observou que a tal senhora de tão gorda só conseguia sentar-se de lado, deixando uma de suas nádegas para fora da cadeira. Graça, sem saber como se controlar, fingiu espirrar e tossir, saiu e entrou na sala três vezes seguidas e mal atendeu ao telefone que não parava de tocar. Logo em seguida, por mera coincidência, chegou um vendedor magérrimo, querendo também falar ao mesmo superior. Foi um dia difícil para Graça que só conseguia associar aquelas duas pessoas às figuras do gordo e do magro e lembrar-se das confusões que os dois juntos arranjavam nas fitas cinematográficas. Enquanto pensava, trabalhava e ria, preocupada em encontrar uma desculpa para sair mais cedo e escapar, assim, à ameaça de demissão. Há muito tempo, aliás, seu chefe desconfiava de que ela “não batia bem”. Felizmente, conseguiu escapar ilesa, pois exausto, o chefe resolveu cancelar os compromissos e ir para casa mais cedo.   Mas este fora apenas um dia; outros vieram e novas complicações foram criadas. A conselho dos pais e também contrariada com o seu descontrole, preocupada até em estar, deveras, ficando louca, Graça concordou em procurar um psicanalista. Este, por sua vez, tinha um tique nervoso insistente que mais parecia ser uma provocação ao sintoma que levava Graça ao consultório. O agravante é que o médico ficava desconsertado e prescrevia rapidamente um remedinho qualquer.
Os fatos transcorriam dessa forma quando, certa noite, lendo o jornal, Graça tomou conhecimento de um concurso que premiaria a pessoa mais engraçada do Rio. À primeira vista, desconheceu o anúncio, posteriormente, voltou a lê-lo e, como estivesse em companhia de uma amiga, esta despertou-lhe a idéia: “Por que você não se escreve, Graça, quem sabe você consegue o primeiro lugar?” A idéia era, de certo modo cabível, cumpria amadurecê-la um pouco mais; o prêmio era um final de semana em Curitiba, cidade sorriso. Instada pela amiga, Graça inscreveu-se no concurso e ganhou o primeiro lugar.   Daí em diante, passou a ser conhecida por todos; até no “Fantástico”, programa televisivo dos domingos, a moça apareceu. Reconhecida por todos, até a família passou a tratá-la diferente; o riso que até então incomodava, tornava-se, agora, a sua qualidade mais valorizada. Graça quase se tornou uma pessoa pública e, à medida que se sentia mais querida, ia também se sentindo mais feliz e explosível em risadas estridentes e espontaneamente felizes.
A vida de Graça mudou; nem os pais a puniam nem ela se sentia mais incomodada com o seu descontrole ante situações inesperadas. Na verdade, só procurava, a essa altura, tirar proveito daquele dom que não conseguia controlar.
Apesar de ter ganhado certa fama, continuou trabalhando e levando a vida naturalmente; passados os primeiros meses do concurso, tudo voltava ao normal e se alguma coisa alterava-lhe a rotina era simplesmente o empenho de ser natural: rir quando a situação levava-a a fazê-lo; chorar, quando a vida se lhe afigurava sombria como à qualquer outra pessoa.


NOITES, TARDES E DIAS DE ENTREGA

Há homem mais misterioso do que o escritor? Quantas vidas nascem e renascem ante o imaginário prolífero de um homem de letras? Basta voltarmo-nos para os romancistas de que temos notícia para confirmar que o mundo de cada um deles é como uma porta permanentemente mal fechada. A um simples “cortar” do vento, uma nova paisagem se cria, novos personagens, tais seres humanos, começam a existir e a formar espécies de núcleos particulares de existências individuais. O escritor é, portanto, uma espécie de mãe que vai gerando histórias, causos, tramas, a partir de uma única necessidade: dar asas à fantasia.
O trabalho do escritor é isolado, só a ele compete desenvolver a trama e criar um desfecho para ela, mas, no fundo de si mesmo, o que o escritor procura é alguém que partilhe com ele do seu interior. Talvez as suas personagens possam ser essa companhia buscada, talvez o leitor ausente, mas imaginariamente um dia diante si, garantam-lhe essa outra parte, esse outro “alguém” que, ainda desconhecido, precisa existir para que a sua obra se complete. Não deixa de ser admirável que, numa época onde tantas motivações exteriores são oferecidas, haja alguém – e esse alguém sempre se multiplica em muitos alguéns-- com predisposição para a escrita. Todo o romance é, segundo depoimentos, uma experiência sofrível; o romancista se desgasta na trama, se insere no sofrimento das personagens e luta com elas, buscando a decisão final do conflito. Há, para o escritor, o sofrimento do durante e do depois; sofre no desenvolvimento da trama, sofre no término da mesma e sofre no momento em que é colocado à prova da crítica. Tudo é muito difícil e ao mesmo tempo muito incitante. Certamente, é deste segundo elemento que se extraem forças para continuar. Quem ainda não ouviu falar daqueles que se levantam de madrugada para escrever? Não há muito tempo que, numa palestra, ouvi de Josué Montello a descrição de sua rotina: Levanta-se diariamente às cinco da manhã e às seis começa a escrever. Só um trabalho árduo, de horas a fio e ininterruptas, resultaria numa obra imensa como a sua, cujos Diário da manhã e Diário da tarde remetem a milhares de páginas escritas, verdadeiros arcabouços de informações. E a prática deste romancista não é diferente daqueles tantos outros que sacrificam sábados e domingos, que podiam ser de lazer físico, em favor da produção literária.    
                 Na mente ou no espírito – em inglês, o termo é um só mind – o prazer não é outro, senão fantasia. Raros são aqueles que escrevem em primeira pessoa, atitude que, cada vez mais, nos conscientiza de que é justamente para sair de si que o escritor escreve, criando-se mundos e personagens cujas vivências estão, de algum modo, interligadas às suas próprias. Há críticas que se voltam para a repetição contínua de temas em poetas e autores de épocas diferentes; entretanto, todos os homens, mais cedo ou mais tarde, acabam passando por experiências idênticas, sofrimentos que advêm de dores como a angústia, o amor, a morte; daí não se poder exigir que a arte de cada um, humano à semelhança de todos, se constitua de evocações diferentes. Esta aproximação entre um e outro indivíduo, na maioria das vezes, escritor e leitor, é que constitui a necessidade que ambos parecem saciar mutuamente. Sim, porque o leitor também não é muito diferente do escritor; ambos, quando entregues a seus propósitos, são senhores de uma mesma sede, de uma mesma necessidade: a palavra escrita. É claro que o escritor se dá com maior entrega; ele elabora espiritualmente a sua estória, ele a coloca em palavras, ele busca desenvolvê-la consoante seus princípios e sua índole; por mais que se tente diferençar o homem que escreve de seu personagem, por mais que se reconheça a distância e por mais que se defenda no escritor o
ideal de originalidade, é quase impossível não admitir que o homem que escreve é o mesmo homem que vive e sofre, que luta, que ri ou se desespera e que, por isto mesmo, tem de adaptar as suas tramas à sua realidade, à capacidade de discernimento que possui para dirimir as suas questões diárias. Felizmente, está passado o tempo em que o escritor e, sobretudo, o poeta tinham de guardar a imagem do profeta, viver afastado da realidade, peregrinando por montanhas e desertos em busca de inspiração. Hoje, todo aquele que escreve ou mesmo que se diz poeta é também um ser social, alguém que luta pela sobrevivência, alguém que tem problemas de trabalho ou de família ou mesmo de ambos e que, diante disso, não pode jamais ser considerado um cérebro sem preocupações, uma alma sem interesses. Aliás, este ponto de vista é primordial à aproximação de quem escreve com quem lê: um não existiria sem o outro é verdade, mas ambos se identificam por suas necessidades serem quase as mesmas, as suas dores semelhantes. Verdade é que as pessoas lêem para se informarem, mas também porque encontram no livro um companheiro aberto à solidão, páginas que dizem, muitas vezes, aquilo que o leitor gostaria de ouvir de viva voz, páginas que o fazem esquecer, distrair ou encontrar uma espécie de solução para um mal que, até então, ele julgava somente seu. Essa obsessão pela leitura, Machado de Assis tentou retratar num de seus contos; referindo-se a um personagem que tinha por única companhia a afilhada, o grande contista nos narra:
O padrinho deu uma volta, e foi meter-se no gabinete, onde lhe não faltavam livros; fechou-se por dentro e continuou a ler. Era o seu mal; lia com excesso, lia de manhã, de tarde e de noite, ao almoço e ao jantar, antes de dormir, depois do banho, lia andando, lia parado, lia em casa e na chácara, lia antes de ler e depois de ler, lia toda a casta de livros, mas especialmente direito (em que era graduado), matemáticas e filosofia; ultimamente dava-se também às ciências naturais.

É claro que a avidez machadiana levou o narrador a exagerar; por mais que se ame a leitura ou se tenha sede da palavra escrita, só em estados de loucura ou de desprendimento completo da razão chegar-se-ia a tamanha entrega. E, de repente, defrontamo-nos com Machado de Assis e começamos a nos perguntar se também ele, como escritor, não esteve de certo modo na condição do leitor que ele nos descreve. Quantas horas a fio deve ter-se sentado, com a sua pena na mão e o bloco branco frente a ele, criando esse universo literário que tantos anos depois de sua morte continua sendo lido e relido por brasileiros e estrangeiros. Não fosse a entrega de que ora falamos, ser-nos-ia negado, hoje, o misticismo de Capitu, as transcendências de Brás Cubas e os desenlaces ou os encontros de tantas personagens.   Escreveu por necessidade financeira? Que importa? Escreveu porque, à semelhança de outros escritores, e só para exemplificar com um nome, Carlos Drummond de Andrade, enlouqueceria se não deslizasse pelas palavras, compondo estórias, inventando contos     (romances )e fazendo poesia..
De Machado a nossos dias – menos de um século de distância – o escritor não deixou de ser o mesmo, ansioso por se dar ao seu trabalho, publicando-o, na maioria dos casos, às suas expensas, mas sentindo-o como um filho que nasceu da emoção, perpetuando-se através desta, pelo menos nas suas intenções, ao longo dos tempos. É claro que nem todos os que escrevem alcançam essa ventura, a maioria já nem tem essa preocupação e, neste aspecto, os cronistas nos dão fartos exemplos. Escrevem no imediatismo da notícia e sequer se importam em saber até quando as suas palavras vão continuar ressoando nos ouvidos do público. Claro que algumas perduram, passam da coluna de jornal ao livro, tendo-se como exemplos as produções jornalísticas de Vinícius de Moraes, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros. É sempre o cronista que continua se nos afigurando segundo a sua própria etimologia: tempo presente.
             Esta parece ser, aliás, a intenção primeira do escritor: dar-se ao que escreve, preocupando-se apenas com o instante da criação, criação que é ilimitada, que parte do íntimo e que, na maioria das vezes, se exterioriza independentemente da intenção de quem escreve. Às vezes, se começa a escrever sem grandes expectativas e, no entanto, a estória, começada ao acaso, adquire tamanha fluência que difícil é detê-la ou dar-lhe um desfecho satisfatório. Na verdade, não é a trama que não se resolve, é o imaginário que, fértil, engenhoso em novas saídas, não consegue finalizar a estória começada. Esta é a grande ânsia daquele que se dá à palavra escrita, esta é a sede de tantos indivíduos que nasceram predestinados a, além de levarem as suas vidas pelos meios comuns do trabalho, da família e dos impasses diários, têm ainda de encontrar tempo para esse manancial de emoções que pedem passagem à sucessão infinita de letras, que se unindo umas às outras, acabam constituindo o grande mundo maravilhoso, cujas luzes só iluminam o espírito e a mente dos que nasceram predestinados ao chamamento da escrita.   
               Felizes, pois, os que nasceram com este dom, pois deles é e será a vida feliz da imaginação.


UMA VIDA NA FAVELA
                                                    There is only one good, that is knowledge,
                                                     and one devil that is, ignorance.
                                                                                                          SÓCRATES

Para o Dr. Heráclito assistir televisão é algo que só acontece quando ele está muito cansado, confuso de idéias e sem conseguir se concentrar numa qualquer atividade que exija razão. Ver é sempre mais fácil do que pensar ou imaginar situações e paisagens como, por exemplo, acontece com todos nós no ato da leitura. É por isto que o Dr. Heráclito só se senta frente à televisão quando o programa é notícia, ou seja, quando há intenção de informar. Pessoas muito dedicadas a uma só profissão ou a leituras sérias tornam-se, por vezes, antolhadas e, conseqüentemente, carentes de acontecimentos hodiernos. Daí a necessidade que levava o nosso médico a relaxar frente a certos programas televisivos. O Globo Repórter era, sem dúvida, uma dessas opções; havia sempre assuntos científicos ou experiências a serem passadas; além de violências que, embora desagradáveis, tinham de ser sabidas, pois faziam parte do dia-a-dia da cidade.
Naquele dia, melhor dizendo, naquela noite, o médico se sentia um tanto mais predisposto a se sentar no sofá e a assistir o seu programa das sextas-feiras. A reportagem era sobre os favelados, assunto que não lhe interessava muito e que quase levou-o a desligar o aparelho e ir dormir. Entretanto, antes que isto acontecesse , surgiu na tela uma senhora gorda, maltratada e completamente analfabeta, queixando-se de uma doença irreversível – claro, o termo era do repórter -- em seu filho. Pouco a pouco, o Dr. Heráclito se foi interessando.   A senhora dizia já ter consultado vários médicos e visitado diversos hospitais do INAMPS, até a assistente social que visitava a favela tinha sido ouvida a respeito da doença do garoto e ninguém lhe dava uma solução para o caso ou ajudava-a a curá-lo.
- O menino sente dores? -- perguntou o repórter.
- Não; isto é que é ainda pior, moço. – rompe em prantos, a mãe aflita – Ele não diz nada, não se queixa de nada... – e chorando ainda mais forte – é só essa doideira de ficar falando sozinho, catando papel sujo e amassado e ficar horas e horas rabiscando coisas que não consigo entender. Tudo porque a professora da comunidade ensinou o menino a escrever...
- A senhora já deu os papeis que o seu filho escreve para outras pessoas lerem? -- voltou a indagar o repórter.
- Todos o médicos já leram; eu é que não sei ler Pobre filho!
- E o que ele escreve?
- Não sei explicar, não senhor. É por isso que levo o garoto ao médico, – e novamente deixando as lágrimas correrem – o garoto vive inventando umas coisas esquisitas... só ele entende, coitadinho... É loucura moço, eu sei que é...
O repórter chamou, então, o garoto para explicar o que sentia. Devia ter uns quatorze anos, peito nu, olhar inteligente, mas desconfiado. Solicitado a falar, se desinibiu:

     Falar, só falo de amor
pandeiro ou ilusão
Cansei do reco-reco
   Triste, desse ganha-pão

O repórter perguntou-lhe o nome, o que sentia, por que falava rimando e uma série de outras coisas, que sempre tinha como resposta um verso rimado. E tantas foram as estrofes que o Dr. Heráclito, divertido, não se interessou em anotar. A última, porém, não lhe escapou aos sentidos:   
                                                       Eu tanto queria viver
      em paz com o destino
Ajudar toda gente
     a também ser menino.
O garoto ia continuar, observava-se que uma série de ritmos, palavras e rimas sucederiam àqueles versos se lhe dessem o microfone pras mãos ou se, no mínimo, a mãe não o empurrasse para o lado, clamando, mais uma vez, desesperada:
- Tá vendo, moço... é loucura...loucura... Pobre filho...
Irritado, o Dr. Heráclito desligou o televisor; deitou-se, mas não dormiu, estava completamente transtornado com a ignorância do povo. Até quando teríamos de conviver com a idéia de que poetas e filósofos são pessoas predestinadas à loucura? Aquele menino era apenas um dotado, um ser sensível que, se lhe dessem oportunidades, se transformaria num literato idêntico a tantos outros que o Brasil já teve. Não evoluímos nada? E os médicos que a pobre mulher diz ter consultado, não sabiam o que era poesia? Teriam se formado tão ao acaso quanto os poemas que surgem no espírito de quem nasce sensível a eles? Ocorreu, então, ao Dr. Heráclito o poema de Mário Quintana que declarava:
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
                    (”Os Poemas”)

Certamente, nem o garoto sabe que aquilo que ele rabisca são ou podem vir a ser poemas; pior é que nem seus próprios colegas, fiéis discípulos de Hipócrates, falaram àquela pobre senhora de uma arte chamada poesia, que já transformou muitos seres comuns em verdadeiros gênios. De repente, o cansaço físico se abateu sobre o Dr. Heráclito que, depois de uma noite de sono, levantou-se, bocejando e repetindo baixinho o provérbio árabe que aprendera numa de suas leituras: “A wise man’s day is worth a fool’s life” .

DA TRISTEZA À ALEGRIA

                  “Bonitas as histórias de amor porque, pelo menos nos romances escritos por autores românticos, sempre terminam em felicidade; bonitos os contos de fadas, que transportam ao maravilhoso e fazem a criança sonhar e edificar um mundo de fantasia; bonitas as noites de lua cheia que, até às pessoas solitárias iluminam com certa esperança de vida; bonito o sorriso, o canto, a gargalhada, o abraço amigo que nos fazem felizes ainda que por alguns instantes. “Ah, com tantas coisas boas na vida, podemos ainda queixar-nos?”
               O auto-questionamento era feito por João, um dos indivíduos mais pessimistas que já se conheceu em Copacabana. Claro que para pensar dessa forma algo de bom devia ter-lhe acontecido ou, ao contrário, xingaria a vida em lugar de exaltá-la. Mas apesar do grave defeito de não olhar com bons olhos os acontecimentos diários, João era admirado pela racionalidade de seus instintos. Quase nunca se decepcionava e isto porque o seu ânimo parecia sempre avisado contra os mais graves perigos; sorria com moderação e nunca estava excessivamente alegre, pois antecipava sempre uma angústia mais profunda à qualquer indício de felicidade. Aquele dia, entretanto, era diferente; estaria com febre ou teria decidido, durante a noite, passar a encarar a vida com outros olhos? A verdade é que acordara bem disposto. Por quanto tempo permaneceria assim nem a mulher nem ele adivinhavam; ambos pareciam temer o que sucederia àquela bonança no temperamento de João. Na verdade, nada havia acontecido que pudesse modificar tão repentinamente o interior de alguém tão negativo. Casados há sete anos, Maria até já havia perdido a esperança de pressentir no marido um gesto descontraído ou uma pilhéria inesperada. E, àquele dia, via-o sorrir e assobiar sozinho...
     João foi para o trabalho, veio almoçar, contou a história que ouvira pela manhã de um colega e até se riu do fato. Maria só prestava atenção e calava. Um certo medo impedia-lhe uma expansão maior de sentimentos; o estranho sempre causa medo e, além de João se lhe apresentar como tal, algo dentro de si mesma dizia-lhe que seria mais precavido, de sua parte, manter-se neutra. Descansado do almoço, – como pedreiro João tinha direito a uma hora de descanso – o homem saiu de casa cantarolando. Maria, preocupada e, mais do que isto, estupefata, telefonou para a mãe. Era aconselhável que alguém mais estivesse a par da transformação do marido; aquilo não era normal e, ninguém mais do que ela, tinha medo do desconhecido.   Da Carol, que vivera esses anos todos irritada com as queixas da filha contra os mal-humores do marido, quase explodiu ao telefone: “Afinal, o que queres? Queixas-te da irritação do pobre e te bates contra a sua boa conduta! Vai cuidar da tua casa, Maria, deixa de ser criança! Deixa de impertinências contra o pobre do meu genro, cuida de tua vida sozinha, me deixa viver a minha!”
     Maria não entendeu; o marido, que sempre vivera aborrecido, estava feliz como nunca àquele dia, a mãe, ao contrário, passiva e tolerante, parecia descontrolada, agressiva, querendo voltar-lhe as costas sem motivo, o que estaria acontecendo...? Seria o fim do mundo? Todas as amigas previram isto para 2000, mas a virada do século já havia acontecido sem problemas. Bem, o jeito era agüentar sozinha o que desse e viesse; pelo menos, apesar da “bronca” da mãe, o que acontecesse agora já não pertencia somente à sua intimidade; no momento certo Da Carol se lembraria do seu telefonema e de suas palavras.
     Passou-se a primeira semana, a segunda e a terceira; João, embora conservando o rosto tristonho, se revelava mais expansivo; trouxera para casa um casal de passarinhos, ensinava-os a cantar, assobiando de manhã e à noite. Nunca antes admitira sequer ouvir cantar o galo, achando que bichos assim só serviam para incomodar quem dormia. Agora, só não levava os pardais para dentro do quarto porque talvez ainda não tivesse tido tempo suficiente para que a idéia lhe ocorresse. Maria procurava, agora, habituar-se à mudança do marido. Até o ajudava a falar mais, a se rir e a cuidar dos passarinhos; a extroversão só podia contribuir para que o relacionamento de ambos se tornasse melhor; afinal, quantas vezes tentara falar ao marido deste ou daquele assunto e recebera como resposta um muxoxo de desagrado.
Apesar de se sentir mais segura quando comentava isto ou aquilo, tinha ainda certo cuidado e receio; João podia estar agindo diferente por algum motivo desagradável a ela. As amigas, às vezes, contavam-lhe experiências pessoais terríveis, por que admitir que João seria eternamente diferente dos outros maridos? Se não vivera feliz até aos quarenta anos, passaria gratuitamente a viver melhor consigo nesse momento, quando as despesas e as dívidas pesavam mais sobre a família?
     Os dias transcorriam e o comportamento do casal estava cada vez mais estranho. Maria quase sofria, perguntando a si mesma o que significava tudo aquilo. É que João dera para observá-la. Um dia, elogiava-lhe o penteado, outro dia atirava-lhe fora o chinelo já gasto, dizendo que não era dez reais a mais que mudavam os gastos do final do mês e, certo dia, chegou a elogiar o cheiro do feijão que, segundo ele, vinha sentindo desde que saltara do ônibus que o deixara a um quarteirão de casa. Maria olhava, admirava, curtia, mas calava. Aquilo não seria para sempre; ninguém muda repentinamente de humor e muito menos de admirações. Da Carol, até então, a única censora da filha, começou também a ceder preocupada; Maria era esperta e se desconfiava do homem à quem tanto amava e por quem fazia tantos sacrifícios é porque algo de errado devia mesmo estar acontecendo com ele. Mas, como boa sogra, mantinha-se indiferente, embora certas dúvidas começassem já a lhe rondar os pensamentos.
               Um domingo, a sensata senhora resolveu ir, sem avisar, fazer uma visita à filha; embora esta estivesse sempre prevenida para inesperadas visitas, Da Carol achou por bem levar um frango assado, evitando transtornos de última hora. Bem recebida, logo o casal chamou-a para a mesa.   João, num ato intempestivo, começou a lorotar com a sogra e a irritar Maria com despropérios e observações que tornavam o ambiente pesado e desagradável a todos. A velha já se preparava para ir embora, desistindo até de ajudar na arrumação da cozinha, quando João saindo da sala e retornando a ela intempestivamente, tirou do bolso um papel azul que, à primeira vista, parecia ser um cheque. Antes mesmo de o raciocínio das duas senhoras se darem conta da realidade, João começou a gritar:                         
               “Aqui está, sogrinha! Maria, amor de minha vida, eu ganhei... ganhei há dois meses na loteria federal!   Estamos ricos! Já não trabalho há dois meses e não trabalharei tão cedo, um homem rico, é um homem feliz!”
        Ambas, mãe e filha, atiraram-se, ao mesmo tempo, sobre o papel que João sacudia. Nada mais era que um papel de embrulho rasgado, certamente o resto de algum embrulho de tijolos, deixados em alguma das obras em que era pedreiro. Estupefatas, atiraram-se uma nos braços da outra, atestando a irremediável verdade: João enlouquecera! Há muito Maria se apercebera da mudança, talvez ainda, na época, fosse tempo de tratá-lo, mas agora... agora só o médico podia dizer.... E disse: “João enlouqueceu... A alegria não era humor, era um sintoma esquizofrênico agudo para o qual a ciência, talvez um dia, encontre remédio, mas que, por enquanto, só se tem como preservar, observando o paciente e, em caso de mudanças mais profundas, isolando-o em cela separada, num dos hospitais da cidade.”
          Tanto para Da Carol quanto, sobretudo para Maria, a alegria, o riso fácil ou qualquer indício a mais de felicidade nada mais eram do que um presságio terrível do qual queriam longa distância. “Pobres mulheres...!”
          
O PALHAÇO DE CADA UM
    Já na adolescência, Claudia ouvia dizer que é mais fácil fazer chorar do que rir. Moça alegre, até então, sem muitos problemas, recusava-se a acreditar que as pessoas choram com mais facilidade do que riem; o que significa admitir que as atrizes ou os atores trágicos têm mais propensão para o sucesso do que os comediantes. Claudia contestava a afirmativa, defendendo a tese de que o choro exige uma contração muscular muito maior e que, por outro lado, às vezes um simples escorregão já provoca uma gargalhada que dá para o dia todo.
Toda esta forma descontraída de encarar a vida, embora motivasse a moça a ser uma pessoa alegre, levava-a também a observar que muitos seres humanos eram taciturnos, pouco comunicativos e menos expansivos do que ela; sobretudo, os jovens de sua idade. As tias e as avós, por exemplo, gordas e bonachãs , encontravam sempre um comentário que acabava em riso, riso que ela ouvia de outra parte da casa. Já as colegas, metiam-se no trabalho, com fones nos ouvidos o dia todo e, tão apressadas, que nunca estavam satisfeitas com o que faziam: ginástica, curso de inglês, analistas, yoga; tempo para uma conversinha hilária, nem sonhar.
Claudia, agora já na adolescência em caminho da idade adulta, começava a se interessar por palestras e assuntos mais sérios, experiências que exigiam de sua curiosidade um contato mais próximo com certos autores. Envolvida com a literatura francesa, passou a se identificar com o empréstimo de Mosër: “le rire (é) comme un besoin de joie et de gaietê qu’éprouve l’âme humaine”. (O Grotesco”in L”Oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance    Gallimard, 1970.)
Não era, pois, tolice sua admitir que a alegria é necessária ao bom desenvolvimento de nossas vidas e ao bem-estar de nosso espírito. O que seria essa tristeza que se abatia sobre tantas pessoas, principalmente jovens? Andara se informando e ficara sabendo que também na literatura, a partir do vanguardismo de 22, os poetas começaram a revelar um profundo sentimento de angústia e de solidão muito forte; dissera-lhe o “expert” com quem conversara a respeito, que esse isolamento nada mais era senão o reflexo de um tempo, onde a máquina transformara a vida dos seres em pressa e mecanicismo. Para Claudia, nada disto fazia muito sentido; importante mesmo era ser alegre, rir e ter sempre um chiste para ouvir de alguém ou para contar a quem estivesse por perto. Num aspecto, Claudia tinha razão. Embora a idade não lhe permitisse discernir o assunto, o riso é, de fato, uma arma poderosa para aproximar pessoas ou mesmo quebrar a agressividade num momento mais sério; ante uma pilhéria inesperada até o inimigo cede suas forças e se deixa abater, ficando , assim, comprovada a eficiência do riso no desagravo de todas e quaisquer situações.
Claudia, convivendo com seus sobrinhos diariamente, começou a se aperceber de que as crianças já não tinham as mesmas motivações de antes; já não havia circos, como no seu tempo, por exemplo, quando era quase obrigatório aos pais levarem suas crianças para ver palhaços, trapezistas e mágicos que, além de provocarem alegria, contribuíam para a confraternização infantil. Sim, porque no circo, todos brincavam como amiguinhos, participando, às vezes, de competições inocentes, mas úteis para tornar as tardes de sábado ou de domingo inesquecíveis. E que saudades de Carequinha, Fred e Meio-Quilo, palhaços tão queridos e, hoje, desconhecidos...Que saudades daquelas tardes de sábado ou de domingo em que os pais levavam-na ao “Automóvel Clube” para ver os seus palhaços preferidos. Ela, tímida, não brincava, mas, sentada junto dos adultos na platéia, divertia-se com as cambalhotas, as brincadeiras e as músicas de Carequinha. E todas inocentes, servindo de pano de fundo à educação. Parecia-lhe ainda ouvir de Carequinha, em uníssono com a garotada, as famosas musiquinhas de sempre:
O bom menino não faz pipi na cama....
O bom menino não faz pipi na cama.

E até as mães tinham o que aprender com o palhaço:
- As mamães não devem bater em seus filhos; vocês, crianças, devem sempre respeitar o papai e a mamãe.
As brincadeiras infantis eram também motivo de entusiassmo, havia sempre um bonito prêmio, geralmente um brinquedo, a ser oferecido a quem, por exemplo, andando em volta das cadeiras, conseguisse sentar-se por último ou a quem ingerisse primeiro uma garrafa de refrigerante. E nem aqueles que não conseguiam ser classificados ficavam tristes, muitos continuavam tranqüilos, bebendo a sua coca-cola ou o seu guaraná e aplaudindo as demais brincadeiras.
Claudia reconhecia que, hoje, já não era assim, a rotina circense tinha acabado e as crianças distraíam-se monotonamente frente ao vídeo, vendo filmes de robôs, agressividades ou participando das novelas que levavam suas mães, muitas vezes, às lágrimas.
Enfim, a infância estava passada e tinha de continuar sorrindo, mesmo que, à sua volta, nem sempre o clima fosse de festa. Felizmente, vira no jornal o anúncio de uma peça teatral cujo título incentivava-a em seus preceitos de alegria: “Rir é o melhor remédio”. Seria bom apoiar aquela iniciativa, se as pessoas se divertissem mais e aprendessem a se resignar, sorrindo, o povo passaria a ser menos agressivo e mais humano. Se é na dor que as famílias se unem, por que não ser também na festa? Lera, certa vez, um livro de John Lubbock, no qual o autor filosofava dizendo que “o único dia perdido na vida de uma pessoa é aquele em que ela não ri”. Guardara para sempre esta fórmula, tentara passá-la aos mais próximos, mas sobretudo estes, pareciam mais do que nunca introspectivos e alheios a piadas. O mal do século estaria reincidindo na contemporaneidade? Claro, o problema da solidão, do isolamento, da distância entre os seres incomodava, agora, muita gente, mas quando há um mínimo de espírito positivo há também forças para se superar as dificuldades. E onde andará agora este “mínimo espirituoso” que ela – Claudia – gabava-se de ter, mas que deixava adormecer em si por falta de pessoas prontas a compreendê-la. Até as crianças só riam de maldades, piadas pornográficas e brincadeiras cuja malícia elas ainda não compreendiam sequer bem. Que pena! Gostaria muito de deixar a seus sobrinhos não fortunas, porque estas ela não tinha, mas a dádiva de rir à toa e conservar em si um mínimo de criancice. Este seria o seu melhor legado e ainda que hoje não a entendessem, logo logo agradecer-lhe-iam por esta pequena parcela de investimento. Mas ficar matutando em como fazer não resolveria, melhor era começar a pôr em prática algum plano que a levasse ao seu intento. Começou, pois, a dar asas maiores às suas “palhaçadas” com os sobrinhos, atitude rara na mãe das crianças que, como a maioria, era uma pessoa “séria”. Feliz com a experiência, quase exultou no dia em que a menina mais velha, sua afilhada, se aproximou, dizendo: “Eu tenho uma madrinha palhaça”. Dias depois a menina veio com outro comentário que, desta vez, tocou-a mais fundo, “Por que a minha mãe não é palhaça como a minha madrinha?”
Todo este esforço podia não significar muito para a humanidade, mas Claudia se sentia realizada por estar contribuindo com aqueles mais próximos de si. Quem sabe estes se chegariam a outros e os outros a outros e as pessoas passariam a ser mais alegres, afinal, alegria não significa felicidade. No fundo, Claudia achava os dois termos elementos distintos. O último era quase utopia, enquanto o primeiro não passava de um exercício interior facilmente transformável em hábito.
Se algum dia Claudia tivesse dar um conselho a alguém, ainda que este alguém estivesse numa situação emergencial, diria tranqüilamente: “Rir é o melhor remédio”.


RISOS, DISFARCES DE PRANTOS
Há mais ou menos dois anos corre por todo o país a notícia de um homem, nascido no interior de Mato-Grosso, que nunca chorou. As referências são enfáticas e se curte a idéia de que o Brasil passará a constar, uma vez mais, do livro dos recordes. De minha parte, apesar de não me considerar um tipo “chorona”, não posso deixar de admitir como estranha a hipótese de alguém ter vivido até aos cinqüenta anos sem uma causa justa para choro. Será que este homem nunca perdeu ninguém querido em sua família? Será que nenhum échec pessoal o tocara mais forte? Ou tratar-se-á de um homem com problemas psíquicos fortes, cujo sintoma se reflete na ausência de lágrimas?
Apesar de muitas discussões, nada se conclui. As notícias que correm são as de um fazendeiro, rico de nascença, cercado de tudo, inclusive casos amorosos bem sucedidos, sem nenhum motivo para prantos ou lágrimas. Nas fotos que aparecem nos jornais, o tal fazendeiro está sempre escancarando um belo sorriso, vendendo felicidade. Será utopia? Apesar de ser tido como uma pessoa feliz, eu o considero infeliz e só visualizo neste homem alguma neurastenia ainda não descoberta pela ciência. Quase todas as opiniões convergem para o desejo de todos podermos viver assim, alegres, bem-humorados, sem motivos para contrações faciais ou problemas nasais causados pelo excesso de choro. De fato, as estatísticas já provaram que a principal causa do envelhecimento precoce é o pranto e a angústia continuados. Enfim, os mesmos dados confirmaram também que exteriorizar os sentimentos é a melhor forma de o ser humano ter uma vida saudável por mais tempo, sem acumular tensões ou cair em depressões.
O cinqüentão mato-grossense, porém, continua impondo seu bom-humor e afirmando que, apesar de não chorar, tem bons sentimentos e até se emociona; não que chegue às lágrimas, mas a certa umidade nos olhos. Entretanto, chorar mesmo, como via tantas pessoas, por motivos mínimos, como, por exemplo, uma telenovela ou um comunicado mais triste com pessoas desconhecidas, enxugarem os olhos, ficarem com a voz embargada e a fisionomia vermelha não, nunca passara por tal situação. Corara algumas vezes, pela força de suas gargalhadas, isto sim, embora também em termos de alegria, não gostasse de excessos.
Algumas religiões se manifestam; muitos psicólogos e psiquiatras opinam sobre a ausência de lágrimas naquele homem que, olhado a distância, parece uma pessoa igual às demais. Difícil é aceitar que não chore, que nunca, até aos cinqüenta anos de idade, sufocou um soluço mais forte ou conteve o pranto. Casos vinham à noticia, adensando-a de mistério e atiçando ainda mais a curiosidade de tanta gente, que parecia não ter, na vida, outras preocupações. Foi lembrado o caso de uma mocinha que dizia na televisão chorar pedrinhas de vidro, uma embusteira, logo depois, desmentida por todos. Foi lembrado o milagre de Jesus em Venda das Pedras, chorando e curando tantas pessoas, foi lembrado, enfim, tudo quando se noticiara contrário ou idêntico ao fenômeno do fazendeiro cujos olhos secos viraram notícia. Em meio às entrevistas, foi trazido ou se voluntariou a opinar um psiquiatra que estudara Machado de Assis a fim de melhor compreender as situações conflitantes de algumas de suas pacientes, apaixonadas e envolvidas em psiquismos semelhantes àqueles que o bruxo do Cosme Velho, epíteto de Machado de Assis, abordara tantas vezes. E este psiquiatra lembrou um conto de Machado que falava sobre Xerxes. Pelo que se lembrava, Xerxes era uma espécie de figura mítica que ”Chorou, é certo, logo depois, tão depressa acabara de rir”1 (.ASSIS, Machado-“Lagrimas de Xerxes”in Páginas recolhidas São Paulo: O Globo, 1997, pág.77).
Esta convicção era, porém, absurda para outros personagens do mesmo conto, inclusive Frei Lourenço que exclamara:
Xerxes! Lágrimas de Xerxes eram impossíveis; tal planta não dava em tal rochedo       ( ...) e as constelações creram finalmente que o duro Xerxes houvesse chorado.2 (ibdem, pág.78)
O psiquiatra lembrava detalhes desse tipo e ia esmiuçando-os à frente das câmeras televisivas que, na voz do reporter, buscavam novas explicações. De repente, o mesmo médico acrescentou, lendo, evidentemente, as anotações que já trouxera prontas de casa:
-     Ah sim, estou me lembrando que há uma parte do conto que diz que os ventos foram ter com a lua e pediram uma sugestão sobre as lágrimas de Xerxes e a resposta foi a seguinte: “Cristalizemos essas lágrimas (...) e façamos delas uma estrela que brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir todos aqueles que deixarem a terra, para achar ali a perpetuidade que lhes escapou”.
A estória era, sem dúvida, bonita, mas não resolvia nem elucidava o caso do mato-grossense que continuava rindo, sem a mínima tendência para o choro. Simpático, o homem gostava de estar presente nas entrevistas que davam sobre ele. Diziam os comentários maldosos que, em estando presente, seria fácil quebrar aquele misticismo e fazer o cinqüentão chorar de uma vez por todas. Dessem-lhe uma má notícia, falassem-lhe sobre o fracasso de suas finanças, a incriminação do filho ou neto em caso policial ou estupro e veríamos se choraria ou não.
Mas não chorava.   Parecia de bem com a vida vinte e quatro horas por dia. O máximo que conseguira, em termos de tristeza, segundo dissera na última entrevista, foi um tremorzinho no lábio, ameaça de choro, no dia em que se despedira de sua mãe para ir viver no internato; mais do que isso, nada.
Cansados de tantas tentativas inúteis, começando a notícia a perder a ênfase dos primeiros dias, resolveram submetê-lo a choques violentos, deram-lhe uma surra em praça pública, forjaram o roubo de seus bens e disseram que a sua fazenda havia ardido por completo, não lhe sobrando um só animal vivo. O cinqüentão permaneceu impassível. Diziam os comentários que tudo era “armação”, que a imprensa criava tudo aquilo, prevenindo o mato-grossense de antemão e que, por conta do sensacionalismo, que nos primeiros tempos fora enorme, o dinheiro corria solto.
Nada disso se confirmou. Na verdade, o caso já estava sendo esquecido quando, um dia surgiu a notícia nas rádios e nos jornais: “O Homem que não chorava, chorou”. Esmiúçados os detalhes, o cinqüentão, sempre criado no mato, seguia à risca o veridito de seu pai: “homem não chora! Menos ainda em público”. Daí a resistência da personagem que despertava tanta atenção: Nunca ninguém o vira chorar, dizia e jurava que não chorava nunca, mas verificados os detalhes: Não chorava ante os outros, nem mesmo os mais íntimos lhe viram as lágrimas. O seu mérito estava não no fenômeno de ser alguém que ria até na dor, mas na capacidade de guardar para si essa dor e, a portas fechadas consigo mesmo, no seu quarto, sozinho em sua casa, despir a máscara do riso e deixar, quando necessário, que as lágrimas e o pranto corressem em sua face tão livres quanto na face de qualquer outra pessoa. Aliás, explicava-se, agora, estar sempre de óculos escuros. Tirara vantagem desse esforço que adquirira na infância, quem sabe como forma de vingança contra um pai que não o deixara ser expansivo como todos têm direito de ser, mas fora isso, nada tinha de diferente ou de sensacional.
Descoberto o seu segredo, até quase chorara de vergonha ante as câmeras. Quase, é verdade; segundo os médicos, aquele homem teria de superar o trauma que lhe impingiram na infância para, só depois, chorar e rir como qualquer um de nós. Afinal, por mais “macho”que o pai quisera torná-lo, era um ser humano dotado de um mínimo, que fosse, de sensibilidade. Vencida a dificuldade interior, seria uma pessoa comum e certamente bem mais feliz com as suas lagrimas rolando rosto abaixo do que, até então, se esforçara para ser. Aliás, as últimas entrevistas mostravam-no já bem mais humanizado, bem próximo de ser em público aquilo que era consigo mesmo: um indivíduo comum.

UM SEGREDO ESCRITO EM VERSO
Há dias “bateu” em Samita uma louca vontade de escrever. Trabalhava dia a dia, à noite mal tinha tempo para o indispensável ou coragem para se erguer do sofá e ir deitar-se. Mesmo assim, a idéia de escrever, criar uma história ou um poema insistia em persuadi-la no ônibus, na cama e às refeições. Um dia não resistiu: abraçou-se ao balaústre do ônibus, puxou um papel e uma caneta da bolsa e tentou rabiscar algumas palavras. Releu e nada lhe parecia significar coisa alguma. O ônibus sacolejou mais forte e ela teve o cuidado de se amparar contra o passageiro vizinho, fechando contra o peito o que escrevera. Passado o embate da colisão, Samita refletiu sobre a sua atitude. Por que abafara contra o peito aquele papel? Não fosse a ajuda da moça que estava sentada à frente, a bolsa presa no ombro, a tiracolo, deslizaria inevitavelmente para o chão; no entanto, o papel rabiscado prendera-se forte à palma de sua mão como um animalzinho recém-nascido que busca se agasalhar. Depois, metera-o na bolsa e, para dizer a verdade, nem ela se lembrava, ao certo, do que escrevera ali, embora a idéia de ter escrito, de alguma forma, massageasse-lhe o ego. Interessante... há muito tempo não sentira tão forte a necessidade de escrever, como naquele dia, no ônibus. Na adolescência sim; qualquer fato novo fazia-a correr ao diário, fechado a cadeado, e registrar ali as emoções vivenciadas. Depois, quando teve de começar a trabalhar sério, não mais sequer se lembrara do diário, muito menos de anotar o que se passava. Aliás, se fosse escrever, certamente, nunca mais leria. Por que ficar presa ao passado, se no presente não tinha sequer tempo para o indispensável? Ademais, a sua memória era muito boa e se quisesse refazer algum fato, bastava concentrar-se nele. Como explicar, portanto, a insistência daquela idéia de criar um poema ou de escrever alguma coisa?
Dias se passaram, uma semana, duas, talvez três... e, de repente, a lembrança daquele papelzinho escrito no ônibus voltou-lhe à imaginação. Ainda estaria no fundo da bolsa? Sim, lá estava e, ao mesmo tempo que se apressava para relê-lo, certa recusa impunhasse-lhe nos movimentos. Aquele mais parecia um objeto de estimação, propenso a ser guardado no baú ou no cofrezinho à chave. Que sentimento estranho! Que teria ela escrito ali?
Vários dias foi e voltou do trabalho sem se dar à curiosidade de abrir o papelzinho amassado, jogado no fundo da bolsa. À semelhança do embate de seu corpo contra os demais passageiros, o banco e os balaústres do ônibus, por ocasião da freada, aquele papelzinho sofria também os arremessos de vários objetos íntimos que ela atirava dentro da bolsa apressadamente. Um dia, porém, vinha ela no ônibus de sempre e, desta vez, sentada, o que era raro numa cidade onde a hora do “rush” mal dava espaço aos transeuntes ou passageiros de circularem nas ruas ou nos corredores dos veículos, quando, de repente, metendo a mão na bolsa para pegar algo sem importância, viu entre os dedos o papel branco e amassado. Um sentimento estranho perturbou-a: abrir, ali, aquele embrulhinho era desmistificar algo que ela não sabia bem o que era, mas que tinha uma importância especial. Por outro lado, guardá-lo novamente, sem ler, seria alimentar superstições e ela não se considerava supersticiosa. Abriu incontinente o papel e leu-o sofregamente. Três linhas, nada mais do que isso, mas que se tratava de um poema isto ficava bem claro.
Não sei o que procuro nesta andança
de fatigas, repetições de tantos
e tão poucos momentos bons

               O poema parava ali, não dizia muito, mas significava bem a procura constante dve Samita; procura de vivências, de emoções, de companhia; procura diferente da vida que levava ainda hoje, indo do trabalho para casa e vice-versa. Aquela era a sua voz interior, clamando, certamente, por mudanças ou exigindo para si o que faltava e que se perguntassem a ela, Samita, o que era, de pronto custaria a responder.
Guardou novamente o papel, não teve coragem, depois de conhecê-lo melhor, de lê-lo e relê-lo três vezes, jogá-lo fora. O papelzinho continuava afigurando-se-lhe como um talismã ou um objeto íntimo que, à semelhança de uma jóia cara da qual se pode dispor no momento de dificuldade financeira, poderia ainda ou transformar-se na sua grande obra ou acalentá-la em outros momentos de prazer.
Muito tempo se passou, Samita não mais voltou a pensar no seu poema, embora tenha escrito outros rabiscos em forma de verso e guardado aquele, não mais na bolsa e sim num lugar seguro ao qual só ela tinha acesso. Explicar aquela necessidade de segredo, - isto é que não conseguia. Já não duvidava de que nascera com algum dom para se tornar uma escritora, embora até risse da idéia; admitia que, em momentos esparsos, tinha comportamentos supersticiosos sem, contudo, dar muita importância a eles. Enfim, nada elucidava o porquê do carinho com que guardava o seu poeminha embrulhado, sem falar dele a ninguém.
Um dia, o chefe da firma onde trabalhava, um apaixonado pela literatura, esqueceu sobre a mesa um livro de contos que lia no intervalo de trabalho. Samita, com tempo livre para se dar a algo diferente do que fazia comumente, abriu-o ao acaso e leu, logo na introdução, a autocrítica do autor:
Só um de meus contos me acompanha por toda parte, ao jeito de gato fiel, sem que o faça para pedir alimento. É um continho bobo, anão, contente da vida. Vai no meu bolso. Não o leio para ninguém. Seu calor me agasalha, já não me lembra o que diz, pois nunca o releio, mas sei que é raríssimo o texto que seja amigo do autor, e quanto a este, não duvido.   Meu melhor amigo é um continho em branco,....
As palavras de Carlos Drummond de Andrade no livro Contos plausíveis, afora a contradição da última linha, contradição própria ao autor mineiro, tinham tudo a ver com o sentimento que ela nutria pelo seu poeminha. Agora que alguém , e logo esse imenso literato, que foi poeta, contista e cronista ao mesmo tempo, manifestava um sentimento idêntico ao seu, tudo se engrandecia para Samita. Mais do que nunca o seu poeminha permaneceria fechado à chave, aguardando o momento certo de vir à luz.
Samita viveu bastante, a última homenagem que lhe prestaram foi na sua festa de aniversário: oitenta anos de existência. Até àquela data, ninguém lhe conhecera nenhuma obra publicada ou glória conseguida pela literatura, mas, sabe-se lá por que, coube à sobrinha mais velha continuar guardando, após as cerimônias fúnebres de sua tia, a caixinha fechada onde o poema escrito um dia, devia, certamente, ainda existir. O que não se acredita é que essa mesma sobrinha tenha encontrado ou pensado em conseguir uma chave para abrir aquela caixinha tão rústica e insignificante que, para ela, não devia ter outro significado senão o da recordação ou da estima.


JANTAR SEM SOBREMESA
O problema do desemprego ultimamente tem assustado a maioria dos brasileiros. Por mais que a pessoa se empenhe, estude desde cedo ou busque oportunidades de entrevista, apresentando curriculums aqui e ali, não há como chegar primeiro e ser o vencedor ou a vencedora na imensa corrida. Sempre há o melhor, o mais “protegido”, o “apadrinhado”. Daí a razão de, por todas as partes, as pessoas começarem a desanimar e, ao invés de se comportarem seriamente ante todas as situações, na emergência de lhes ser dado o que deveria ser direito de todos, acabarem partindo para a chamada “apelação”.
O Dr. Soares, respeitável estudante e posterior executante de ações judiciárias, não suportava mais a carência pecuniária e o ridículo a que se expunha inutilmente, visando àquilo que devia ser direito de todos: trabalhar. Aos quarenta e cinco anos, depois de ter perdido o cargo na firma de importados – demissão que lhe fora impetrada por estar prestes a ter privilégios legais trabalhistas - resolveu abrir o seu escritório e “se virar” sozinho. Os primeiros passos, ou seja, aqueles que dependiam apenas de si mesmo e de sua verba, logo se arranjaram; o difícil foi atrair clientes. Investiu em divulgação, colocando quase diariamente anúncios no jornal, distribuiu cartõeszinhos, esperou tranqüilo os telefonemas; às vezes, nem saía para almoçar com receio de que, naquele momento, alguém o procurasse; contratou uma secretária bonita, mas nada... nada de clientes; um ou outro amigo antigo, mas não o número capaz de pessoas para compensar as despesas de escritório. Decidiu, então, fazer como outros amigos, procurar outra função, outro cargo na vida. Na sua faixa etária, não era fácil, mas podia, pelo menos, contar com o seu curriculum rico em experiência. Conversou com um colega mais íntimo e este desiludiu-o.
- Sem “pistolão”, meu caro, você não consegue nada!
Sugeriu-lhe, então, acompanhá-lo no sábado seguinte a um jantar que seria oferecido a certo deputado no Hotel Palace. Seria um jantar de adesão à sua próxima candidatura e, certamente, uma ocasião propícia para um pedido especial.
-Mas se o homem não foi ainda nem aceito pelo partido.- contestou o Dr. Soares, desabituado a esse tipo de camuflagem profissional.
- Deixa de ser bobo, Soares. Isto tudo são formalidades! E, além do mais, quem não aparece não é lembrado! No dia que este homem for eleito, estarás bem na vida; ele não deixará de beneficiar um eleitor tão venerável, presente, desde às primeiras horas, para apoiá-lo.
O Dr. Soares veio para casa com os ouvidos fervilhando; nunca fora um homem politicamente engajado; a situação atual de desemprego era suficiente para que ele se colocasse contra os legisladores, o Senado e tudo quanto mais existisse ligado ao governo; entretanto, uma frase do amigo insistia em despertá-lo para uma nova realidade: “Quem não aparece, não é lembrado”. Neste aspecto, o outro tinha razão e, além disso, não custava tanto assim gastar mais algum dinheiro, comprar um terno novo e pagar a sua parte no jantar de adesão. Há tanto tempo não comia fora....
Tomadas as providências, desperdiçados alguns reais e autoconscientizado das aclamações que tinha de fazer não só ao candidato, mas ao seu partido,-- aliás, qual seria mesmo o partido do homem? -- lá se foi o Soares para o jantar. Apetite não tinha, mas precisava sentar-se com naturalidade à mesa, ler o cardápio e pedir um prato condizente com a importância do evento. Foi o que fez, só que já estava bem adiantado na refeição e extremamente nervoso e irritado com a “fria” de ter aceitado participar de tudo aquilo, quando finalmente, o homenageado chegou. Abraços, cumprimentos, assédios de todos os lados e ele – Soares – tentando, de todas as formas, estender as mãos e os braços ao candidato, querendo abraçá-lo também, mostrar-se solidário e, sobretudo, “aparecer”. Conseguiu, mas além de um “muito obrigado”, nada mais os aproximou; o homem estava cercado de pessoas do seu time e, mais do que isto, parecia estar mesmo com fome, desejando, sobretudo, jantar e participar da sua festa a seu bel-prazer. No dia seguinte, Soares voltou à rotina comum e nada justificava para ele aquela atitude da véspera, indo jantar com um candidato forte às eleições.
Meses depois, procurando ainda agarrar-se a todas as chances de manter aberto o seu escritório, sequer sabia se, de fato, o homem cuja candidatura apoiara, fora ou não eleito. Não vira mais o amigo que o convidara para o jantar e tampouco ouvira ou lera o nome do tal partidário. Todo o seu tempo e seu empenho voltava-se apenas para seu próprio escritório, o qual só não degringolava de vez, porque ele investia os últimos tostões e as últimas forças, visando a se manter de pé.
Certa noite, vinha Soares para casa quando avistou no sinal um Mercedes de última linha, dirigido pelo amigo que o levara ao jantar. Como o sinal permitia alguns instantes de paralização, tiveram tempo para um cumprimento rápido e uma pergunta qualquer do Soares, cuja resposta, apesar de breve, foi significativa:
- O deputado convidou-me para seu motorista particular. Eu não te disse, quem não aparece, não é lembrado!
Pobre Soares, apesar do terno novo, dos gastos no jantar e dos esforços de simpatia, acabou olvidado no seu canto, procurando apenas clientes que lhe dessem um mínimo que qualquer cidadão pode exigir: trabalho.


AS LIÇÕES QUE NÃO SE APRENDEM
De que as aparências enganam, ninguém duvida. Este é um ditado muito antigo que atinge todas as camadas socias, mas que é ainda mais verídico para aqueles que conhecem a fundo determinado senhor interiorano cuja primeira impressão que nos passa é a de um mero caipira.
Sr. João, ou mais corretamente Mestre João, quando metido em sua terra natal, num chapéu de palha exageradamente grande e andando em torno de suas plantações com as faces vermelhas de sol, os olhos inclinados na terra e o ar cansado, mas feliz, indicando alguém que já viveu suficientemente para estar em paz consigo, não indicava o outro homem que, em trajes bem diferentes, cobrindo aquele mesmo porte, lecionava filosofia na cidade grande. Mestre João era, de fato, um dotado; nascera numa família de fazendeiros. Quando jovem, desinteressado do cultivo e indiferente às produções, optou pelas letras. O espírito, não tanto religioso, mas exigindo de seu entendimento um maior saber sobre a vida, iniciou-o muito cedo na leitura. Através de amigos, filhos de vizinhos dos pais, conseguira sempre ler bons autores e se aperceber das correntes filosóficas que ora remetiam ao ideal de se extrair da vida todos os prazeres, como era o caso dos epicuristas, ora imbuíam o ser humano da capacidade de nada temer, nem mesmo a morte e de saber resistir com dignidade ao sofrimento, como defendiam os estoicistas, dos quais, para Mestre João, Montaigne era o grande exemplo.
Quando lera pela primeira vez os Ensaios, sequer conseguia situar devidamente no tempo e no espaço esse filósofo que tanto o impressionava. Só à medida que se foi entrosando em conhecimentos mais aprofundados, ao longo dos anos que passou na faculdade para formar-se, conseguiu definir melhor e diferençar os aspectos e os posicionamentos das diversas correntes filosóficas que, percorrendo os tempos, deixavam ideologias, pontos de vista e concepções de vida aflorarem ao espírito dos homens, influenciando enormente o seu.
Os anos se passaram e a vida de Mestre João não conseguiu nunca uma linha limítrofe definitiva entre o campo e a cidade. Com a morte dos pais, herdara a fazenda e sentia-se responsável também por aquele patrimônio que, vindo de gerações distantes, devia distender-se a seus filhos, a quem seria mais justo dispor ou não dos bens deixados.   Daí a sua vida se ter sempre dividido sem perder em sua fisionomia e em seus comportamentos certas características rústicas pertencentes ao homem do campo. Tinha tantos amigos ali quanto na cidade em que lecionava, embora não fosse um espírito extrovertido ou participante. Desculpava a ignorância daquele povo humilde, amigo, mas tão distante do saber a ponto de valorizar mais uma flor prestes a dar fruto do que a inteligência humana à qual só Deus é superior. Na cidade, porém, irritava-se contra a imbecilidade e a incapacidade da maioria, que se perdia em noitadas alegres, elevando ao extremo o nome de ídolos musicais e cinematográficos da época, ao mesmo tempo que desconheciam por completo os vultos literários ou históricos do passado. Naquele meio, onde a cultura tinha de prevalecer, Mestre João dava asas ao saber e até buscava numa linguagem empolada explicar o envenenamento de Sócrates, as descobertas de Galileu Galilei e a racionalidade de Descartes. Evitava falar de Santo Agostinho cujas Confissões, apesar de o emocionarem profundamente, soavam-lhe como um excesso de prisão religiosa, comportamento que os estudantes de seu tempo, diversificados em meio a tantas crenças, não chegariam nunca a entender.
Mestre João era uma pessoa comum, mas, mesmo assim, sua personalidade exigia análise. Simples e comunicativo entre os amigos do campo, arredio em meio aos colegas e alunos da cidade, poucos eram aqueles que conseguiam penetrar-lhe no íntimo ou conhecê-lo a fundo. E, se para alguns, a sua figura parecia mítica, para outros, injustamente, é claro, não passava de um "caipira disfarçado", um "hermitão de terno e gravata" ou um "filósofo, dono de fazendas". Mestre João ignorava os apelidos e vivia a vida que Deus lhe deu. Cuidava de suas terras, mas curtia as leituras infindáveis que lhe enchiam o espírito, dando-lhe sempre um sopro de tranqüilidade.
A difícil vida de professor se, de certo modo, cobria as despesas, de forma alguma permitia-lhe excessos. Estes também não eram os seus preferidos, se pudesse evitaria sempre aglomerações, lugares de muita gente, conferências, festas e até congressos. Mas a vida não lhe permitia isolar-se, ele mesmo ensinava diariamente aos seus discípulos que já se fora o tempo em que o literato vivia de divagações, alheio à realidade. Além do que, apesar de optar pelo silêncio das leituras, sentia também certa solidão quando afastado da cidade grande por muito tempo. Por todos estes conflitos íntimos, Mestre João era uma pessoa estranha e isto transparecia a olhos vistos; no fundo de si mesmo, apesar do amadurecimento filosófico, parecia não se ajustar no mundo em que vivia. Lecionou até aos sessenta anos de idade; depois, como já tinha tempo de serviço, aposentou-se. A princípio, se sentiu realizado; a filosofia exigia horas descompromissadas de investimento meramente pessoal. Tempos depois, irritou-se. Tentou, então, reagir à inapetência da idade, formando um grupo particular de alunos interessados em filosofia; segundo Mestre João, sua ciência significava uma espécie de compreensão melhor da vida. Ele verdadeiramente não compreendera ainda muito bem a sua própria existência, mas com um pouco mais de conhecimento não haveria de falhar.
Poucos meses depois de iniciar o seu curso livre, tinha já nos discípulos -- pessoas em que a terceira idade começava a delinear seus traços -- amigos certos. Às vezes, entretanto, Mestre João deixava a desejar, não em sabedoria, mas em personalidade. O seu discurso assumia, não raro, a aparência da ilegibilidade. Queria traduzir para o mundo atual os preceitos mais elevados; Sócrates era o seu grande ídolo, embora, se referisse muito mais a Platão. É que o Mestre passava a se envolver nos problemas políticos de seu tempo confrontando-os com os preceitos da República. Só podia ter elouquecido! Empolado e enfático no que abordava, esquecia-se de que dois ou três daqueles discípulos eram, por sinal, parlamentares e atuavam no poder público. Mestre João, por sua vez, não hesitava em excentricidades; calcado nos preceitos filosóficos, para ele tudo tinha de ser pelo moral e bons costumes.
Frente àquela classe, a sua figura começou a se tornar antipática; ele sequer se dava conta disto ou se mostrava interessado, também se sentia aborrecido porque falava a uma dezena de pessoas que, cada vez pareciam entendê-lo menos. E, em seu espírito, as ideologias que pregava nunca se lhe haviam surgido tão claras e certas. Indo, num fim de semana à sua fazenda, meteu-se, como sempre fazia, nos seus trajes interioranos, enfiou o chapéu de palha na cabeça e foi andar pelos campos. Pela primeira vez se identificou, de fato, com a ignorância encontrada ali. Talvez não fosse maior do que a da cidade, apenas mais rústica.
Sentou-se, então, sobre uma pedra, começou a pensar ocasionalmente na vida e, pouco a pouco foi levando cada vez mais ao passado as suas lembranças. Nada se remediara no tempo, a sua angústia podia, agora, ser interpretada como uma espécie de remorso normal à velhice.   Não lamentava o que fizera, mas o que deixara de fazer. Dedicado a uma só direção, a filosofia, existira, mas não vivera. Estava velho, cansado, desiludido e só um rastro de paz interior, certamente o amadurecimento filosófico conquistado pela leitura, dava-lhe a sensação lenta de um sono brando. Encostou a cabeça nas mãos e como um último pensamento naquele momento, as palavras sábias do grande Montaigne emolduraram-lhe na face um sorriso dócil:
"Filosofar é aprender a morrer".


O INEXPLICÁVEL
Nos dias em que a chuva resolve lançar sobre nós suas voluptuosidades mais fortes, ficamos propensos a um estado de espírito tênue, que conduz, quase naturalmente, à reflexão e ao amadurecimento interior. E é nestes momentos que as idéias e os ideais afloram à nossa sensibilidade, ora incentivando-nos, ora dissuadindo-nos do mundo cor-de-rosa que se anunciava para nós claro e risonho. O mais admirável é que não é preciso se ter chegado a uma idade avançada para observar que os fenômenos climáticos influenciam o nosso mood; todos sentem pesar sobre si a tristeza dos dias escuros. Eu, por exemplo, tinha uma tia, ainda jovem, que dizia que a chuva era para ela a melhor conselheira; ouvindo-a cair sentia-se tranqüila e, não raro, até encontrava a solução certa para os problemas mais difíceis. Outras amigas, também jovens, já alimentavam certas superstições que, ao longo dos anos, tornaram-se ainda mais intensas.
Pessoalmente, tudo isto parece muito mítico; assemelha-se, para mim, àquelas crenças passadistas, onde as índias procriavam sob os efeitos da lua ou onde as histórias de mulas sem cabeça se apossavam da confiabilidade e da boa fé do povo mais simples. Sem dúvida alguma, prefiro ser mais racional e, se é que à minha liberdade de pensamento se pode somar o reflexo de minha cultura, cerceada por livros e autores diversos, diria que estou ou, no mínimo, deveria estar, bem afastada das crenças primitivas. Entretanto, apesar de minha autoconfiança, nem todos os acontecimentos estranhos me soam como mera coincidência do acaso e, aí, começo a desconfiar se, de alguma forma, não sou também supersticiosa.
Essa história de casas mal-assombradas, por exemplo, até hoje fala-se delas e sempre um certo calafrio me percorre a coluna dorsal quando me lembro de que conheci certa menina que, aos dez anos de idade, garantia-me ter presenciado fatos realmente inacreditáveis. Por mais que eu busque na imaginação infantil desculpas para toda inventividade da qual ela falava com tanta certeza, não consigo duvidar completamente das “histórias” que ela me contava. Em primeiro lugar, parece difícil reconhecer que a mente infantil possa elocubrar tão autenticamente e com tantos detalhes fatos tão curiosos e até absurdos, além disto, por mera coincidência, eu mesma vivi nessa casa e, já na época, o que mais temia era os diversos corvos pretos que vinham, à tardinha, buscar abrigo sobre os muros altos. E aí reconheço que também não consegui superar, nem mesmo depois de anos de amadurecimento intelectual, uma boa dose de superstição irremediavelmente inerente à mim e aos meus sentimentos. Começo, então, a investigar-me e a descobrir-me: Não uso nenhuma peça de roupa preta nem possuo qualquer objeto desta cor, apesar de ter consciência de que se trata apenas de um pigmento, que nada mais é senão a ausência de todas as cores, sua impressão me é sempre desagradável. Certa vez, na universidade, mandei encadernar uma obra rara, completamente esgotada nas livrarias, mas que eu havia conseguido graças a um colecionador, amigo da familia. Pedi capa verde e, por um engano banal, o livro me foi apresentado com encadernação preta. Por um triz, melhor dizendo, por um desses lapsos ajuizados com os quais somos, vez por outra, premiados, não atirei longe o meu O Guesa de Sousândre. Enfim, também não guardo comigo esse exemplar de capa preta; devo ter tomado alguma decisão impensada e, certamente, para livrar-me daquela cor devo ter investido mais algum dinheiro da minha mesada e mandado refazer o trabalho: O O Guesa que tenho, hoje, na estante, é de capa dura, mas verde; escapa à minha lembrança qualquer explicação cabível, o que, aliás, se justifica no fato de tudo isto ter acontecido há mais de vinte anos.
Citei, por mero acaso, a cor verde e uma amiga, acompanhando comigo o que vou escrevendo, desperta-me para a idéia de que, em torno desta última cor há também certa crença. Há, inclusive, na obra do grande Machado de Assis um conto verdadeiramente importante cuja temática gira em torno de um personagem louco que mandara pintar a casa de verde. Mas não só neste autor a idéia da loucura e do verde estão associadas; há referências semelhantes propaladas nas lendas antigas, que não se restringem ao verde, mas também à cor amarela. Neste caso, porém, até porque o amarelo me apraz enormemente, busquei e consegui algumas explicações esclarecedoras. Trata-se da cor do hachish, erva cujo pó amarelo, quando exalado pelo homem, faz com que este ria sem conseguir parar. A proximidade do riso e da loucura legou a esta cor certo atributo insano. Mas misticismos bem mais complexos e profundos não estarão rondando o mundo em que vivemos? Como justificar as premonições de certas pessoas que, às vezes, no último momento de uma decisão, retrocedem ao que pretendiam fazer e, momentos depois, constatam que foi bom ou mesmo providencial ter agido dessa forma? Pressentimento? Premonição? Difícil definir, mais cabível me parece, sem dúvida, esquecer o meu ceticismo e concordar com Shakespeare, segundo quem:
"Há mais mistérios entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vã filosofia”.


CARA OU COROA
       “Friendship is like money, easier made than kept”
Samuel Butler

Rubens é um indivíduo que gosta de fazer amigos, mais do que fazê-los, gosta de conviver com eles. Procura sempre grupos de jovens cujas identidades de gostos possam fazê-lo aproximar-se. De fato, estava sempre cercado de colegas e amigos e não poupava esforços para ser-lhes simpático e se dar de verdade. Rapaz comunicativo, parecia sempre pronto para novos contatos e para muitas risadas amistosas. Ser amigo, era algo fundamental em seu conceito de dignidade. Amigo? Eis a palavra mestra que, um dia, começou a inquietá-lo.
Envolvido também com leituras profundas demais para sua idade, o rapaz lera aos dezoito anos, portanto há sete anos atrás, que a “Antipatia é a repulsa entre as formas anímicas”e que “As almas ligadas entre si na vida física se encontram novamente no mundo espiritual”. Porque as obras de Rudolf Steigner o impressionaram tanto, Rubens não sabia e tampouco se preocupava em saber , aprendera a gostar de teosofia e o prazer que extraía dos livros desse autor era-lhe suficiente para fazê-lo refletir sobre seus ensinamentos.    Verdade é que, só sete anos depois, é que o rapaz passou a querer ver na prática o que a teoria definia. Era, pois, o momento de testar os amigos. Aliás, tinha uma tendência muito especial para pressentir a sinceridade ou insinceridade alheia, só que, em presença desta última, era o primeiro a se afastar. Ou era amigo ou era inimigo e estamos conversados. E graças à sua franqueza até há algum tempo só podia gabar-se dos amigos; todos procuravam-no para um papo, um chope ou até para um conselho qualquer. A julgar pelas aparências, era o melhor dos amigos. Um dia, porém, as expansões de amizade começaram a indicar certa dúvida na sensibilidade do rapaz. Talvez por ter se mostrado sempre expansivo demais, talvez por se mostrar entusiasmado com os elogios que recebia, os amigos tivessem julgado fácil comprar-lhe a amizade. Certamente, o seu gênio confirmava a filosofia de Voltaire: “l’amour est un baloon gonflé”, mostrando-se por demais “gonflé” em sua franqueza. No entanto, não permitiria que qualquer indício de insinceridade interceptasse o sentimento que mais valorizava no homem: a amizade. Não concordava com o Roberto Carlos cantando “eu quero ter um milhão de amigos....”, preferia , muito mais, ter em quem confiar. Se tivesse de dar razão a preceitos sobre a amizade, valorizaria Plutarco, o filósofo grego: ”Not shake hands with too many”.
Todas estas considerações, entretanto, começaram a surgir porque, ultimamente, os amigos andavam gentis demais com Rubens; se ele faltava a algum compromisso e telefonava justificando-se, lá vinham as explosões de afeto das mais calorosas:
-     Puxa rapaz! Ainda agora, estava pensando em você! Eu ia te ligar!
      E ligavam nada! Todos tinham compromissos, problemas...   Mas e ele, não tinha isto também? No entanto, sentia-se bem ouvindo os amigos, recebendo suas manifestações e até já se comparava, por isto, ao eu lírico de Manuel Bandeira: “Sempre é bom ganhar um agrado // Dos amigos a quem se ama”(“A Afonso”).
     De repente, Rubens resolveu mudar, tentar ser mais adulto e menos eufórico com aqueles que o cercavam. É que a última bajulação custara-lhe um empréstimo alto em dinheiro e, meses haviam se passado, sem que o vil metal voltasse às suas mãos. O jeito era assumir um ar mais sério, mais circunspecto, mostrar a todos que nem sempre “muito riso é sinal de pouco siso”.
A mudança de comportamento só serviu para afastar os amigos; restava, agora, tirar cara ou coroa à prova da fidelidade amistosa.   E, para isto, teve uma idéia genial. Colocou no jornal o aviso de seu falecimento, agradeceu, em nome dos familiares, é claro, as manifestações de pesar e comunicou o dia e a hora da missa de sétimo dia. O anúncio custou-lhe parte do salário, mas o prejuízo mostrar-lhe-ia o valor de uma boa amizade. O anúncio foi publicado e Rubens desapareceu do convívio de todos:
A família consternada com a perda de seu membro mais jovem, convida parentes e amigos para a missa de sétimo dia, a ser realizada na Igreja do Paraíso, às 17horas do dia 5 de março, terça-feira de carnaval.

Duvidando de sua própria ousadia, achando que não conseguiria levar a cabo aquela loucura, Rubens telefonou apenas para os pais, avisando que, no dia seguinte, sairia no jornal um anúncio de falecimento de uma pessoa homônima da família e, mais exatamente sua, mas quanto a ele, estava vivíssimo. Rubens pagou ainda a um boy para atender telefonemas em seu apartamento, incumbindo-o de dar informações , confirmando sua morte e gravando as mensagens de dor. Queria checar quem o procuraria e quem o esqueceria.
Na tal terça-feira de carnaval, Rubens escondeu-se por trás da igreja do Paraíso e ficou aguardando a chegada dos amigos que, consternados, viriam rezar por ele. Até ficou satisfeito, não podia imaginar que tantas pessoas adentrassem a igreja num dia de festa pagã. Uma moça, cujo rosto não vira e cuja voz não identificara, passou dizendo:
-     Mas que coisa, uma missa de sétimo dia em pleno carnaval, coitado!
                    Terminada a missa, Rubens fez questão de observar os semblantes consternados;.buscava amigos, pessoas comovidas, os rapazes do grupo, lamentando ; enfim, queria reconhecer os X mais achegados. Procurando de um a um, achou três “amigos” e, a julgar pelo papo animado falavam de tudo, menos de falecimento. De repente, passaram perto, quase ombro a ombro com ele e até pararam, ali, por instantes. Imagine-se: falavam da fantasia que usariam mais tarde no baile do Municipal! Falavam também da cotação do dólar no mercado e das aplicações lucrativas na bolsa, só não citavam o seu nome, lamentando sua perda.
     Desolado e, ao mesmo tempo, decidido a esquecer todos aqueles amigos e até mudar de bairro ou de estado, Rubens se afastou apressado, queria pegar o primeiro ônibus e esquecer tudo aquilo. Justamente à frente, na esquina de uma rua próxima àquela a que se dirigia, encontrou dois conhecidos. Estavam de roupa preta e usavam óculos escuros, um até parecia com a voz embargada. Aproximou-se, se fossem seus amigos, se jogaria em seus braços e contaria toda a loucura que havia feito. Infelizmente, eram dois foliões desconhecidos, que esperavam a hora de se incluírem nos seus blocos.
           Rubens subiu no ônibus e uma lembrança amarga emoldurou-se-lhe no espírito. O verso de Apollinaire era o que melhor significava, agora, o que se passava em seus sentimentos:
              “Mes amis m’ont avoué leur mépris”
                                                                  (“Les fiançailles”)


                                      

O QUANTO É BOM SER ARTISTA!
Hegel, o autor de A estética, esforçou-se em afirmar que a arte é a forma encontrada pelo homem para deixar de ser aquilo que a natureza o fez, ou seja, para se exteriorizar e ser alguém diferente de si mesmo. Para isto, eis sua necessidade de reunir forças de dentro de si e uní-las às percepções e conhecimentos que adquire do mundo externo. Surge-lhe, então, o poema feito, o quadro pintado ou a música tirada ao som do piano ou de algum outro instrumento, tornando-se, muitas vezes, uma nova melodia.
De minha parte, concordo plenamente com Hegel, sempre encarei a arte como uma necessidade de fugirmos de nós mesmos, de extrapolarmos a realidade e de nos tornarmos uma espécie de máscara daquilo que somos. Mas surge uma pergunta: Não nos basta ser? É preciso sermos nós mesmos, seres plenamente conscientes de nossos auto-domínios e de nossos descontroles? É preciso buscarmos uma individualidade só nossa, um modo interino de ver o mundo e de levá-lo à visão de nossos semelhantes?    Chegar a toda esta plenitude não é também chegar ao máximo do conhecimento humano? Em lá chegando sim, seríamos dignos de uma total independência perante os demais. Seríamos, talvez, realmente donos de nossas impressões digitais, diferentes de ser para ser. Nesta diferença está certamente a arte; a procura do “novo”, da originalidade, do elemento que lhe garante a diferença e, portanto, o talento.
Claro que nem todas as artes são perfeitas e nem todo o artista justifica o mérito de sê-lo, mas mesmo aquele que nunca se sentou para escrever, para pintar, para desenhar ou para se dedicar a qualquer forma de expressão deixou de buscar em si uma certa particularidade de se situar perante a vida. Sobretudo no mundo de hoje, onde tantos são os conflitos, as angústias e as intolerâncias, estabelecendo-se uma relação entre os que se dedicam a alguma prática artística e os que nunca se deram sequer a tentá-la, a maioria é daqueles que de alguma forma ou por algum meio tentaram exteriorizar os seus sentimentos, expressando-os em linhas escritas ou desenhadas. De todos que tentaram, muito poucos resistiram e continuaram existindo à luz de seus trabalhos pessoais e, quando falo em resistir, refiro-me apenas à insistência da expressão, nunca à necessidade de sobrevivência material, é claro. De fato, para o artista, o mais importante não é a vivência física, mas sim a psicológica, veio de escape às amarguras hodiernas. Eu, que também me sinto diferente quando rabisco os meus versos ou crio personagens que seguem, infalivelmente, por caminhos divergentes dos meus, reconheço no dom do artista uma supra-urgência de me exteriorizar, tornando-me um ser livre, determinador das atitudes de meus personagens, estereótipos daquilo que eu quisera ou recusara ser, daquilo que eu valorizo ou daquilo que eu desprezo.
     Me pergunto se é possível à mim ou à quem quer que seja viver apenas da rotina diária, do jour le jour como dizem os franceses, sem dar ao meu imaginário uma chance de sonhar, de criar e de ser feliz, por instantes que seja, com esses devaneios do espírito. Certamente, pertenço àqueles de corações menos rudes, àqueles ânimos menos habituados ao ganha-pão ou às festas iluminadas, àqueles à quem não basta a roupa, como disfarce da fantasia, para transportar o ser para fora de si. Acredito até que essa viagem para o luxo, para a alegria, é menos durável do que a festa do espírito , quando imbuído de um grande sentimento. Sim, sem dúvida, o sentimento é a válvula propulsora de qualquer obra de arte. Embora se tente omitir ou conter os excessos ou mesmo os traços mais atenuantes, ninguém faz arte sem verdade, sem sua gota transbordante de emoção. Daí o “outro” que a arte nos possibita ser, que nos faz tão bem em sendo diferente do que somos, que nos humaniza, retirando de nós a aparência e dotando-nos somente de nossa essência, que , boa ou má , só poderia vir à luz através do artifício nobre do artista. Pintar, tocar, fazer um desenho, escrever - eis as válvulas catárticas, motivadoras da nossa engenhosidade; eis o vidro translúcido que nos mostra o eu profundo que, muitas vezes, omitimos e até desconhecemos.
          Segundo Hegel, arte e religião se interligam, sendo que, à primeira cabe o papel de recriar aquilo que já está fixado por dom natural, aquilo que já encontramos pronto diante de nós e que, dada a transfiguração concedida pela arte, atribui ao artista um valor inigualável , que advém de o espírito participar da verdade como objeto absoluto da consciência. Cabe, pois, à arte extrair da alma aquela infinidade de representações e pensamentos que cada um de nós traz encerrada em seu próprio eu. E é o poeta que, mais do que ninguém, consegue caracterizar pela unidade da sua significação e sua forma individual o que é apreendido de modo imediato, tornando-se o objeto da representação.
     Face a todos estes conceitos defendidos pela filosofia Hegeliana, face ainda às nossas comprovações individuais e à livre existência de nossa alma , quando entregue a uma prática artística, só podemos reconhecer que bem-aventurado é aquele que, algum dia, conseguiu exteriorizar-se e deixar ao mundo parte da verdade de seu espírito, verdade que será aborvida por outro indivíduo que, somando-a à sua própria verdade, virá enriquecer também e, cada vez mais, o mundo exterior, no qual vivemos.
A infância passa e sequer nos damos conta dela; a infância que vivemos não é a nossa, uma vez que só nos damos conta dela quando ela já passou. Mas não é assim também na juventude? Claro que só da velhice não podemos dizer o mesmo; pois nenhum estágio há após ela, nenhum estágio que permita à racionalidade se dar conta de que a velhice foi boa ou foi má. Poucos são, aliás, os idosos que se dizem felizes e isto porque felicidade é, de fato, um sentimento e como tal só a imaginação pode depreendê-la.   Através dela sonhamos, fantasiamos até uma outra realidade e imergimos naquilo que, inexistente no mundo real, proporciona-nos alegria e por que não felicidade. Ah, Hegel... Ah, a filosofia...     
O RELÓGIO EM ROTAÇÃO E TRANSLAÇÃO
      O tempo, metaforicamente, esse veículo de marchas sempre velozes, a todos persuade a vida, levando-nos pelos mesmos atalhos (,) que, para uns, se constitui num caminho menos acidentado e, para outros, repleto de elevações, de crateras e de obstáculos. Mesmo assim, acabamos, um dia, atravessando-o por completo, ainda que essa completude se restrinja a alguns anos, alguns dias ou a simples horas ou minutos.
1a chegada: infância: Tempo mítico, tanto no illo tempore com que se afigura à mente daqueles que já o atravessaram, quanto no ilusionismo, que traz à nossa mente tantas imagens bonitas, em forma de recordações. É, sem dúvida, um espaço físico dos mais belos; crianças, sequer temos sonhos ou ambições, -- considerando friamente -- tempo em que podemos nos assemelhar à natureza, aos seres vivos libertos, soltos pela terra e pelo ar, despojados de ânsias ou interesses materiais, apenas desfrutando em cheio o instante de riso ou de choro, momento prazeroso adquirido pela companhia de um brinquedo ou de um afago mais carismático. Quase todos nós nos lembramos desse tempo com saudades, proliferando em poetas de todas as épocas a mesma temática saudosista, repleta de imagens, às vezes, uma ou outra um tanto maculada pelo prenúncio de certa tristeza ou de certo pesar, mas insistentemente dotada de encantos, perfumes, alegrias e de um sentimento de perda irremediável. Aliás, poderíamos citar Casimiro de Abreu, exemplo máximo dessa emoção que remete aos primeiros anos de vida. Quem não lhe conhece, pois , os versos:
Ah que saudades eu tenho
da aurora da minha vida
Da minha infância querida,
que os anos não trazem mais.
(“Meus Oito Anos”)
Entretanto, identificar a perda em poetas românticos é quase tão natural quanto apercebermo-nos de que os dias se sucedem, indiferentes e diferentes das experiências que vivenciamos hora a hora, minuto a minuto. O desejo de voltar atrás existe sempre em todas as fases e em todos os indivíduos. Recordamos a infância com saudade e lamentamos a juventude que, tão lépida, sempre leva de nós os melhores momentos, os maiores ardores.
Mocidade! Mocidade!
Como é tão claro o caminho!
São tão floridas as árvores,
As noites tão perfumosas:
Que céus, que estrelas, que luar!
Mocidade! Mocidade!
Mas, ai de mim! Na verdade
Só é bela a mocidade,
Como tudo neste mundo, porque passou.

Os versos de “Mocidade”, belíssimos sobretudo pela mensagem, são de Augusto Frederico Schmidt, poeta moderno a quem a existência parece ter deixado no espírito a irremediável sensação de um tempo de vivências intensas, mas irremediavelmente passado. Em outras palavras, quer se seja poeta ou não, difícil é ver a vida passar sem que certo pesar não nos machuque a consciência. É uma espécie de predestinação que temos para sofrer por “a vida que podia ter sido e que não foi”, como tão bem poetizou Manuel Bandeira. Nunca ninguém viveu em plenitude, nunca ninguém realizou todos os planos ou concretizou todos os sonhos e, por ser a juventude o tempo dos grandes fervores, do amor, do ímpeto de vencer, fazer amigos e ser-lhes superior, realizar-se, é que nela se observa uma maior lacuna em relação ao passado. Em meio a tantas ênfases, o sofrimento, quase sempre derrotista daquelas primeiras intenções entusiastas, responde à nossa primeira falha. Em meio à sensação de perda, os bons instantes prevalecem, deixando nos caminhos que se vai trilhando, a impressão de frescura, grandiosidade, paixões e felicidades. Na juventude, se dando conta de si, consciente que é de suas ações, o indivíduo vive mais e se afirma em sua personalidade. Este período deveria ser – e quase sempre é -- o ápice da vida, uma vez que, a partir dele, tudo se desenvolverá da maneira como nos conduzimos e como afirmamos nossa conduta, realizando planos ou deixando de realizá-los e legando, então, ao ego um sentimento ainda pior: o do arrependimento. É desta etapa da vida, desta segunda chegada, considerando-se a infância a primeira, que partirão os alicerces da velhice, momento que pode ser dos mais grandiosos se nos soubermos afirmar corretamente naquilo que queremos na mocidade. E é tão bom saber envelhecer!
Viver etapa a etapa, passar por estas duas fases e chegar à terceira, desfrutando dos potenciais que temos em nós, é o prêmio que a vida pode oferecer a quem quer que seja e principalmente àqueles que, diariamente, se envolvem em ideais sem lamentar o dia anterior. Enfim, se a juventude deixa saudades, perdas ou alegrias, a velhice se anuncia sempre – e eu o digo infelizmente, apesar de estar ainda a alguns anos dela – com uma imagem de decrepitude e de declínio inconformáveis e evidentemente inconfortáveis. Aliás, o prefixo in, que nas duas últimas palavras serviu-lhes de antítese, é a melhor caracterização dessa etapa da vida, tão bem significada também pelo inconformismo, pela intolerância, impaciência e inúmeros “in”ou “im” que, quase sempre ferem profundamente as suscetibilidades do idoso. Quem aceita festivamente a velhice, esse tempo que anuncia, ainda que indiretamente, o término da existência? Quem não recebe com certa ranzinzice a pressa de um tempo que o ameaça? Evidentemente todos nós e, com mais intensidade talvez os poetas, cuja sensibilidade torna-os mais perceptivos do que nós. E na impossibilidade de se baterem contra esta chegada, ironizam-na, atirando sobre si mesmos os efeitos desse tempo:



Dentaduras duplas
ainda não sou bem velho
para merecer-vos...
(...)
Dentaduras duplas:
daí-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
(...)
Longas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
                                        (“Dentaduras Duplas”)
O eu lírico de Carlos Drummond de Andrade atribuiu à dentição o sintoma mais sério da maturidade e isto certamente porque, nesta alusão, encontrou um veio perspicaz para se referir a esse momento que todos tentam atrasar em si ou disfarçar com os artifícios científicos de que, hoje, dispomos.   Assim como o poeta mineiro se referiu às dentaduras, outras pessoas – talvez eu mesma -- rebatessem a velhice através, não dos dentes, mas de algo bem mais simples: os cabelos brancos, que chegam antecipadamente e que, sem pedir licença como certamente faria Irene, a musa de Manuel Bandeira, invadem as nossas cabeças, pincelando-as inicialmente aqui e ali de branco, como se clamassemos à vida pequenos símbolos de paz. Generosos ao chegar, tingindo apenas aqui e ali nossa cabeleira preta ou loira, de repente invadem-na como convidados que, bem recebidos, se alojam em nossas casas para sempre. E tudo isto só acontece pra valer na velhice!   Aliás, tão difícil e inaceitável é esta etapa de nossas vidas, que até mesmo o termo se tenta evitar; homens e mulheres nunca se dizem velhos, mas na terceira idade, maneira bem mais amena de se evitar uma agressão pessoal.
Destarte, não podemos ser tão pessimistas assim. Vivemos uma época onde pessoas de todas as idades, sobretudo da chamada “terceira”, já se conscientizaram de que os exercícios físicos são indispensáveis à vida, encontrando nesta prática a retomada do velho chavão que Juvenal nos legou: Mens sana in corpore sano. Tudo isto sem nos referirmos aos recursos estéticos como a plástica, a eliminação de rugas ou as maquilagens resistentes à chuva e ao banho, artifícios que tanto retardam o processo do envelhecimento. Mas como até o que é bom, redundando em excesso, se encaminha para o ridículo, enquanto muitas senhoras despertam-nos a admiração pelo desvelo com que se cuidam, outras provocam-nos o humor com atitudes semelhantes àquelas que levam-nas a fazer ginástica pela manhã, massagens à tarde e dietas, às vezes até nos spas mais caros, o dia todo. E há ainda aqueles que se casam ou, pior ainda, que namoram, substituindo, em muitos casos, a dor da solidão pela triste e tardia dor-de-cotovelo.
Bem-aventuradas, porém, estas pessoas que, embora sendo, talvez, excessivas, não se entregam às queixas e às lamentações tão comuns às de quem, não encontrando mais o que fazer, ou sentam-se em suas cadeiras de balanço tricotando ou frente a um jornal, que não lêem, mas que lhes serve de artifício para, erguendo ou baixando os óculos, murmurarem ou criticarem contra os trajes ou os trejeitos dos jovens. Ah, que implicância!
No fundo, resta-nos compreender esta terceira chegada, terceiro estágio de vida, onde todos os sonos remetem à lembrança do sono eterno e onde muito elevados precisam estar os sentimentos para reconhecerem que, enfim, vivemos e que cumpre, apesar dos contrários, levantar a cabeça e concordar, mais uma vez, com o nosso poeta maior:
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência.
                                                                       (“A Ingaia Ciência”- Carlos Drummond de
                                                                                                     Andrade).

LANGUE OU PAROLE
                                                            “A última flor do Lácio, inculta e bela”
                                                                                    OLAVO BILAC
Professor tinha verdadeira aversão por determinados vocábulos da língua portuguesa. Ensiná-la fora sempre o seu métier e, apesar de repetir constantemente as mesmas regras e ditar as mesmas palavras, não se habituava à força, melhor dizendo, ao impacto que, algumas delas, lhe causavam no espírito. Havia ainda os neologismos e os termos que, à força do tempo, perderam o uso costumeiro e passaram a ser conhecidos apenas por aqueles que gostavam de ler e possuíam senso crítico suficiente para reavivá-los no hábito do povo.
     Professor resistia fortemente aos modismos, embora, trabalhando com jovens habituados à gíria, não pudesse recusar a aceitação de um ou de outro uso que, em seu tempo, era inconveniente e até pejorativo.   Mas Professor compreendia que também a língua se modifica com o tempo e com a cultura, embora dificilmente deixasse de se irritar com os erros cometidos à custa da “americanalhação” lingüística.   Assistindo televisão, ficava irritado e de mau-humor, não suportava que erros do tipo “eu vi ela”, “mantêga é bom pra saúde” e tantas outras absurdidades fossem ditas de forma espontânea e natural, ganhando muito mais espaço nos hábitos lingüísticos do povo do que as normas que ele pregava aos jovens em sala-de-aula.. E não havia nada mais constrangedor para ele do que o horário político. Passara, há muito, a votar em branco porque não confiava as decisões de seu país a homens que sequer se expressavam com precisão, desconhecendo, por completo, o “bom português” que, a esta altura, ele defendia com garra e quase sozinho.   Às vezes, ouvindo certas pessoas falarem, tinha vontade de explodir-lhes no rosto os versos de Gilberto Mendonça Teles:

Pega a palavra, pega e come
Não interessa se algum nome
possa te dar indigestão.
                    (“Inspiração)
Mas que situações ou que palavras irritavam Professor com mais freqüência? Muitas e, em especial, o idioleto de certa aluna com a qual tivera de conviver num curso de férias, que parece ter durado a vida toda, tal o autocontrole que ele tivera de ter para não explodir em plena classe. E tratava-se de uma moça loura, vistosa, prestes a se formar em psicologia. Apesar de toda a bagagem que adquirira no colégio e na faculdade, a moça não perdia os hábitos lingüísticos do Piauí, sua terra natal. Havia sempre deslizes que recaíam em problemas sérios para uma pessoa como ele, desabituada a aceitar sem corrigir. Entretanto, calava-se sempre; como poderia recusar a popularidade interiorana de certos empregos da língua? Como poderia, em dois meses de convívio, desvinculá-la do que aprendera a vida toda?   Difícil, porém, era controlar-se, sem explodir. Felizmente, a maior irritação que teve com esta moça se deu quando ele estava sozinho, longe dos olhares atentos dos outros discípulos que, se apercebendo sempre das contrariedades contra as quais ele procurava não reagir, por se tratar não propriamente de erros, mas de regionalismos, ameaçavam um sorriso provocante. Entretanto, pelo menos desta vez, a sorte de estar sozinho ajudou-o a evitar um outro aborrecimento. Ia ele, certa manhã, chegando à faculdade quando recebeu das mãos da secretária uma carta. Curioso, abriu-a incontinenti e o teor nunca lhe saíra da lembrança, sobretudo pela forma como a aluna se expressou, querendo justificar sua ausência:

CARO MESTRE:
                  Estou em Pernambuco, onde vim visitar alguns parentes.
                         Tenho faltado às aulas, simplesmente por esta razão.
Até breve e um cheiro de sua aluna

                          FULANA DE TAL

Professor parou: “Um cheiro:”? Bom ou mau? Aquilo era forma de lhe dirigir um cumprimento? Primeiro a ira, depois a reflexão e, finalmente, uma risada muito íntima, que levava ao esquecimento. Aliás, tinha mesmo outras coisas em que pensar.
Professor era – e ele próprio reconhecia—intransigente com as questões da língua. Havia, por exemplo, uma palavra que jamais pronunciava, salvo nos momentos fúnebres, nos quais a tristeza falava mais alto. Contudo, ainda que estas ocasiões levassem-no a balbuciá-la, nunca fora capaz de dizê-la num tom de voz capaz de se ouvir. Tinha-lhe verdadeira aversão e, no entanto, sobretudo nos autores lusos ou nas pessoas nativas do país europeu, cuja língua herdamos, conhecia-se largamente a prática e a familiaridade de seu emprego. De fato, poucos portugueses despediam-se sem o normal “ADEUS” e, no entanto, Professor quase chorava ao ouvir este termo. “ Já pensou – dizia ele em conversas mais informais – se até para ir à esquina, eu dissesse adeus?” e como nem sempre entendiam onde Professor pretendia chegar, ele explicava: “Onde já se viu para separar-me de quem quer que seja por um lapso de minutos, de horas ou de dias eu dissesse adeus. Todos pensariam ou, pelo menos os de bom senso, reconheceriam em mim certa premonição inevitável: Não estaria eu antecipando encontrarmo-nos numa outra esfera do mundo? Afinal, eu mesmo dissera: A-DEUS”.
Cheio de preconceitos com as palavras, se dependesse de si, eliminaria algumas do vernáculo. Por exemplo, “desculpe”. Algum termo era de inutilidade maior? Cometido um erro, na maioria das vezes irreparável, o que adiantava dizer “desculpe”? Simples formalidade, polidez inútil, que não leva ninguém a lugar nenhum. E como se não bastasse, dia-a-dia criavam-se expressões novas, algumas aceitáveis, outras não, mas, de qualquer modo, obrigando a todos os falantes a estarem em constante criação e recriação lingüística sincrônica , para não se arriscarem a perder a comunicação com o mundo. Professor não se revoltava, propriamente, contra a renovação ou atualização da língua, o que o irritava era que os vocábulos anteriormente empregados se perdessem definitivamente, sendo substituídos por gírias ou absurdidades sem nexo. Professor revoltava-se, sobretudo, contra aqueles que tornavam-se, a seus olhos, verdadeiros “internéscios”, isto é, falantes de uma língua oriunda da informática, onde se criara uma espécie de idioleto intraduzível. No último bimestre, ao apresentar-lhe uma redação, o aluno pedia-lhe que considerasse certa frase que ele havia deletado. Por acaso, algum dia, ele ensinara em aula o verbo deletar? Por acaso, tinha de admitir como certo que a aluna “clicara erradamente no mouse” e, por isso a grafia de algumas palavras estavam erradas? E que história era essa de fazer redações em computador, tendo ele de escolher se o texto devia vir em Times new roman, em Arial, em Book Antiqua ou sabe-se lá em que letra?
Apesar de todas as intransigências, não querendo ser retrógrado porque, lidando com jovens, seria até impossível sê-lo, Professor via com bom grado – e aí o seu aspecto simpático e didático – certos eufemismos que, pelo menos quando tornavam mais suportável o impacto da mensagem, mereciam o esforço de sua nova aprendizagem. Infelizmente, termos assim passavam como que de raspão, não permanecendo por muito tempo na fluência do povo. Um destes casos é a expressão que surgia agora para significar a morte. Ouvira-a pela primeira vez num programa de televisão e passara a acatá-la com simpatia. Ao invés de dizer, por exemplo: “Fulano faleceu” dizia-se agora, com muito menos agressão: “Fulano passou para o andar de cima ou, então, Fulano subiu para o segundo andar”. Além de não chocar de imediato pela idéia da morte, a expressão exigia certo exercício do pensamento até que pudesse, então, ser decifrada. E pensar era um grande bem para os homens!
Em oposição a estas formas, outras já não lhe eram simpáticas. Por exemplo, dizer-se “ao fringir dos ovos” e querer com isto significar “nesse meio tempo” ou qualquer outra expressão equivalente, parecia-lhe algo completamente sem nexo. O que tinham os ovos, apesar de se fritarem rápidos, com uma situação às vezes bem mais séria ou mesmo mais engraçada?
O pior é que, sabendo-o intransigente com a linguagem, chamando-o até de Policarpo Quaresma, tal o patriotismo que se manifestava através do bom uso da língua, os amigos mais íntimos pregavam-lhe “peças” que lhe mudavam o humor repentinamente. Dizia ele que os amigos tiravam à desforra a disciplina que forçava os seus alunos a manterem. De fato, os amigos, interpretando-o à luz de Fernando Pessoa, para quem “a minha pátria é a língua portuguesa” provocavam-no tão naturalmente que, somente depois de completada a brincadeira, é que se dava conta da intenção. Numa tarde, início de noite, Professor estava reunido, num barzinho, com alguns colegas que lecionavam com ele, na mesma instituição de ensino, quando a conversa recaiu num comentário dos mais comuns.
     - Está uma noite linda! – disse um deles.
- É verdade, -- redargüiu Professor – e está até calor!
-     Qual o problema? - intrometeu-se um dos homens, antecipando uma      gargalhada – os franceses não dizem que é bom suar?
Claro que Professor saiu do sério, controlando a sua impetuosidade com uma espécie de didatismo forçado:
     - Não é bom suar; é bonsoir, ou seja, boa noite. E para que vocês não me aborreçam mais, vou para casa, pois estou endefluxado.
Todos explodiram numa gargalhada e não deixaram que ele se fosse sem explicar-lhes o que estava sentindo.
- Nada de sério, estou apenas gripado; o que não me impede de lembrar este termo que Machado de Assis tão bem empregava. E com licença, o meu horário de aula já terminou há muito!
Certa manhã, livre de suas responsabilidades, Professor lia atento o jornal, quando deparou com o protesto de determinado leitor que, contestando o termo “anuênio”, teve a sua carta publicada no jornal O Globo daquele dia. Dizia a pessoa em sua carta:
Este vocábulo não pode ser aceito em nossa língua porque fere regras de morfologia relativas à formação das palavras. Não pode designar período de um ano (...) porque a noção de número está contida nele... A questão agrava-se porque o neologismo mal formado, não registrado no Aurélio, acaba de ser adotado na Lei 8.112/90...
(“Cartas” O GLOBO 27/1/91)
Professor encontrava ali a sua alma gêmea, alguém tanto quanto ele preocupado com o bom emprego da língua portuguesa, alguém que não tergiversava (palavra que gostava muito de empregar e que também aprendera com Machado de Assis) quanto à rigorosidade morfológica e, certamente sintática. Assim valeria a pena o seu esforço, sentindo-se até estimulado para persistir em seu ideal de ensino, jurando a si mesmo não abandoná-lo nunca. Se dependesse dele, os seus alunos continuariam diferenciando langue e parole, ainda que, para isto, ele tivesse de terminar os seus dias como aquele personagem também machadiano que “Pior que cego, ficou aluado”(“EX CATHEDRA” in Histórias sem data).


EM TEMPOS MODERNOS
Vivemos tempos de pressa e afobação; ninguém tem tempo para nada e tudo que faz é correndo, privando-nos até de um gesto mais afetuoso ou de uma atenção maior dedicada a um amigo mais próximo. Tudo, hoje, é computadorizado ou feito à força de eficientes aparelhos elétricos, cujo único esforço é apenas o de apertar determinado botão. Com tantas facilidades, não é difícil retratar a vida diária de uma família não muito diferente das demais; uma família que, embora vivendo em 199... já se diz do século XXI:
A FILHA - Mãe, já tou indo! O rádio-relógio não me acordou a tempo; ou melhor, quando despertei ouvi a voz daquele repórter chato, que parece saber de tudo, e cotinuei dormindo.
A MÃE- Tome café. A cafeteira já desligou, mas é só acionar o automático.
O PAI- Maaary, interfone pra você!
A ESPOSA- Mande esperar, estou anotando os recados deixados na secretária eletrônica.   Ainda não comprei a agenda com impressora, aquela que copia tudo para o notebook; assim, tenho de ser paciente .
O JÚNIOR - Pai! Atenda o bip! É pra você!
O PAI (indiferente) - Que fumaça é essa, aí na cozinha?
O ROBÔ (responsável pelos afazeres domésticos)- Nada, senhor. A torradeira explodiu!
O PAI - Mary, você gostou da minha entrevista na TV?
A MÃE- Disseram-me que você estava divino, mas o Júnior e a Jule estavam no vídeogame; tive preguiça de ficar na cozinha ou na sala para vê-lo. TV só é bom quando posso esticar-me ou na rede ou no chão; a TV portátil de bolso, está descarregada, quando fui ao supermercado deixei-a ligada no carrinho de compras e acabei com as pilhas.
A FILHA- Júnior, telefone!
O JÚNIOR- Todos estão ocupados e o sem fio ficou no carro.
A FILHA- Ora, atenda no multitel do banheiro!
O JÚNIOR- Depois do choque do chuveiro, não entro nesse banheiro a não ser com as minhas luvas de boxer.
A FILHA- Mãe! Cadê a minha xícara de porcelana? Aquela que você herdou da tia Candinha?
O ROBÔ- Quebrou, senhorita. Misturei-a com as outras louças de plástico no lava-louças e a faca elétrica quebrou. Lamento senhorita, sei que era uma antigüidade.
O JÚNIOR- Mas que cafonice! Xícara de porcelana numa época em que todos usam talheres descartáveis. Aliás, faríamos boa economia se vendessemos a lavadora de louça.
A FILHA- Maninho, objetos antigos são sinais de história. Nossos avôs, coitados, tomavam os seus breakfasts nessas coisas...
O JÚNIOR- Ah maninha, quem te ouve falar assim nem acredita que você vai ao Schopping de bolsa tiracolo e fio dental.
A MÃE- Filho, se temos lava-louça e secadora, é porque não é em todas as refeições que jogamos a louça fora! Seria até um despropósito não darmos crédito aos saponáceos e detergentes que lavam mais de dez vezes as mesmas peças sem desgastá-las.
O JÚNIOR- Coisa mais retrógrada! Nem o contágio assusta vocês!
A FILHA- Contra a Aids, eu tomei vacina logo ao nascer; além do que, nesta casa, só você banca o gay.
O PAI (irritado)- Mary, cadê o colarinho desta camisa? Comprei-a esta semana!
O ROBÔ - A culpa é minha, senhor! Na máquina de secar, eu me enganei. Apertei o repeat ao invés de apertar o off.
O PAI - Está bem, eu também me engano nos mecanismo aéreos de meu carro; ainda ontem queria dar ré e ele voou.
A FILHA- Deixei um tchau para cada um de vocês na secretária; estou atrasadíssima para o show.
TODOS (Uníssonos)- Claro, no rockdromo, a uma da manhã, não é?.
AFILHA- Ponham os fones, cantarei para vocês.
O PAI- O que é que está voando pela janela?
A MÃE- É o livro eletrônico que o Júnior esqueceu. Antes de ele chegar à faculdade o livro estará lá, sobre sua carteira. A bússola dessas agendas não falha!
O PAI- Meu bem, você programou mal as despesas. Na tabela do excel havia um saldo positivo de R$300,00 e você debitou R$400,00 de minha conta corrente.
O ROBÔ- Senhor, eu liguei para o tele saldo e deu um déficit de R$1000,00 na sua conta corrente.
O PAI- Mas isto é impossível; pelas aplicações que efetuei em minha calculadora, eu estou rico!
O ROBÔ- Desculpe, senhor. Mas a sua calculadora só está querendo ser simpática. Há muito tempo, ela só soma e multiplica. O botão de diminuir está sempre no zero.
A MÃE- Não é possível! No século XXI continuamos vivendo as penúrias do século XX. Isto eu não agüento! Onde está a minha pistola? Quero atirar em mim!
O ROBÔ- Está aqui, senhora! Mas está descarregada. Há muito tempo, não temos fogo.
O PAI- Então é por isto que a nossa alimentação é só preparada em aparelhos elétricos. Só comemos pílulas... torradas... cafezinho...
A MÃE- Nada melhor para manter o regime, querido!
O PAI- O pior é que estou com fome e esses pozinhos que temos nos vidros não estão me alimentando.
A MÃE- Nem a mim, querido. Babau para o século XXI! Vou dormir e sonhar com os velhos tempos. O meu sonífero, por favor.
O PAI- Durma bem, querida. Sonhe com o futuro. Dias melhores virão, já dizia o meu avô.
A MÃE- E o meu também, querido.





SOBRE AS ONDAS
                                                               “Gastarei a minha vida gostosa e   rapidamente   
                                                                  e, depois, boa noite!”
                                                                                                                                    BYRON
                     O mar, doce e eterno, sempre a regar as grandes paixões!
Há pessoas, deveras, privilegiadas; moram de frente para a praia, contemplam diariamente o sol surgindo e se pondo, aspiram a brisa fresca e sentem-se, ainda assim, queixosas da vida. Parece que até esquecemos de que também defronte ao mar, dentro de cada um daqueles apartamentos, que formam imensos arranha-céus, há angústias e tristezas, há pessoas que amam, mas não se sentem amadas e há, evidentemente, o contrário.
          Da Emanuela, por exemplo, dizia a Deus e a todo mundo que se tivesse uma janela para o mar seria uma mulher feliz, deixaria de sofrer por incompreensões e maus tratos para se dedicar única e exclusivamente às ondas que, indo e voltando incansavelmente, seriam o bálsamo necessário à sua velhice.   O filho, bem colocado, deu-lhe o presente: o sexto andar de um prédio virado para a praia do Leblon. Da Emanuela exultou, durante talvez dois meses, se tanto, cumpriu o seu destino: abria a janela da sala e olhava incansavelmente o mar, a areia, o céu azul e a festa de diversas cores que os banhistas faziam todos os dias, especialmente aos sábados e domingos. Para completar sua felicidade, a neta deu-lhe um livro de poemas do qual a mesma senhora extraiu uma estrofe que logo aprendeu de cor, mas copiou e colou num dos vidros da janela:
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão do amar.

                     Os versos de Carlos Drummond de Andrade incentivavam mais ainda o seu deslumbre; seu sonho estava realizado. Realizado mesmo?
             De repente, Da Emanuela começou a sentir-se só e deprimida. Chorava com facilidade e, segundo a empregada, havia dias que nem vinha à sala cumprir o amoroso dever de reverenciar as ondas.   O filho logo imaginou que estivesse doente, providenciou um médico, fê-la tirar férias numa estação de águas e ao vê-la voltar, bem disposta e animada, não teve mais dúvida de que a saúde da mãe estava novamente recuperada.   Filho e neta se emocionaram quando ela contou que, de volta das férias, avistando de longe aquele prédio todo azul que ostentava o seu apartamento, lembrou-se de Rubem Braga. Citando numa crônica sua volta ao Chile, o autor descrevera o seu reencontro com a casa onde já havia morado. E suas palavras eram exatamente estas:
... quando chegamos à rua e ele (o chofer) me perguntou o número da casa não precisei puxar o meu caderno de endereços; apontei a mais de cem metros o meu álamo real.
      Nenhuma árvore se lança com tanta veemência para o alto;....
             ( Rubens Braga in Ai de ti Copacabana)
Assim se sentia Da Emanuela, voltando para o seu apartamento no Leblon: no seu álamo real! Pouco mais de uma semana depois, a mesma tristeza de Da Emanuela voltou a apagar-lhe o sorriso diante do mar; desta vez, dir-se-ia que estava mais triste, mais angustiada e nem abria as cortinas da sala, cerradas de manhã à noite como se ninguém estivesse em casa.
Novamente o filho foi chamado e, mais uma vez, a saúde da mãe preocupou-o Veio o médico; clinicamente não havia nada, mas as lágrimas e a indiferença eram sinal de uma profunda solidão. Desde que se mudara para o apartamento, perdera, de fato, o contato com as vizinhas, deixara de regar suas plantas e de cuidar de suas flores, ninguém, visitava Da Emanuela, salvo o filho e a neta que vinham, quando eram chamados, e seu espírito não era e nunca fora solitário. Na roça, os vizinhos eram sua família, os bichos quase companheiros de quarto e havia dias que nem via televisão, tanto conversava e tanto ajudava pelas redondezas.
Descoberto o motivo da tristeza de Da Emanuela, restava vender o apartamento e levá-la de volta para o seu meio. Mas e o mar e o poema tão cheio de lirismo, que continuava colado no vidro do sexto andar do “azulão” da Delfim Moreira?    Destes, certamente os novos compradores se encarregariam.
Reencontrada um ano depois na velha cidadezinha onde morara durante anos, tendo de interromper a conversa com uma das vizinhas para atender o filho e a neta que chegavam para visitá-la, Da Emanuela teve uma idéia compensadora para a tentativa que o filho fizera e os esforços que empenhara para vê-la feliz. Segurou-o pelo braço e levou-o ao fundo de seu quintal. Lá, um enorme lago havia sido construído e, com a inventividade e a experiência de um dos vizinhos, uma bomba imersa irrigava a água parada, provocando ondulações idênticas às ondas que deixara na Zona Sul.
                        - Olhe meu filho, eis o mar com que sempre sonhei! Eis o mar cuja visão me faz diariamente feliz. Obrigada, filho!
A neta olhou para o pai e este, de imediato, pareceu compreendê-la: A mãe não se enganara no seu sonho, ele é que exagerara no sonho da mãe.
A FORÇA DA INTEMPERE
O sonho, o desejo de se conseguir, às vezes, o que parece mínimo para qualquer outra pessoa, é uma das flamas mais fortes da intempere humana. Já vi sonhos dos mais absurdos servirem de alvo aos mais tremendos esforços. Mas não fosse o homem sonhar e não teríamos como levar a cabo os projetos que construímos ao longo da vida; aliás, nem projetos haveria; haveria, quando muito, um dia-a-dia monótono, que passaria sem a intenção de um segundo momento. Poetas ou escritores também não haveria; afinal, quem idealiza mais do que eles? Trabalhar-se-ia com amor, com vontade? Evidentemente não; a vida seria uma rotina onde os acontecimentos se desenrolariam uns a partir de outros sem ênfase, isto se tivessem, no mínimo, uma razão para acontecerem.
Ah, como é bom sonhar!... Bem crianças ainda, sonhamos logo com aquele carrinho ou aquela boneca vistos em determinada vitrine; um pouco mais adiante, a moça sonha em se casar, em estudar, em vencer neste ou naquele ideal, empenhando sacrifícios dos mais severos, logo adiante, empenham-se esforços para uma estabilidade financeira e familiar, que prenuncia planos sonhadores para uma velhice tranqüila e sem problemas. Finalmente, arquiteta-se, na mente, a morte ideal. Verdade é que a maioria dos sonhos ou ficam no meio do caminho ou se transformam em grandes decepções; mas os fins importam menos que os meios e diante de um sonho, a fé é sempre efusiva. E há cada sonho!... cada vontade!...
Nos meus tempos de universitária, conheci uma colega cujo maior sonho era ter um talão de cheques e uma conta bancária; dizia ela que adorava assinar cheques... Separamo-nos sem que o seu sonho se tivesse realizado, mas, a esta altura, com o número de agiotas e cheques falsos de que se ouve falar, certamente a minha jovem amiga não curtiu por muito tempo a sua fantasia.   Caso mais grave, entretanto, era o da menina de menos de dezesseis anos que foi trabalhar lá em casa. A garota era de família honesta, mas sabe-se lá por que, dizia aos quatro cantos que o seu desejo maior era possuir um revólver. Claro que, na minha família, não falou isto por muito tempo; ao ouvirmos sobre o seu desejo, logo providenciamos outra empregada para substituí-la.   Há dias também, fiquei observando uma amiga que dizia já ter feito tudo, menos publicar um livro. Mostrou-me, então, as suas poesias e não me pareceram revelar nem forma nem fundo, mas o entusiasmo de vê-las publicadas estampava-se-lhe nos olhos, no rosto, no sorriso.
Eu não escapo à regra dos sonhadores; estou sempre “bolando”uma idéia nova, inventando uma estória, fazendo um poema. E como isto me é importante...! É claro que os meus sonhos possuem, hoje, uma dose bem maior de realidade do que antigamente: Idade? Experiência? Chame-se como chamar; a verdade é que, por mais racional que eu me diga ser, continuo tendo os meus sonhos e, sem eles, a vida perderia todo o interesse. Às vezes se criticam os mentirosos ; eu, na qualidade de quem se pretende, um dia, escritora, não posso concordar com a acusação; muito pelo contrário, é na mentira que identifico o lado positivo do imaginário. A inventividade é necessária, é a partir dela que criamos boa parte de nossas vidas, fugindo a momentos difíceis e até, por vezes, desagradáveis.   Não podemos desprezar o poeta ou o contista só porque eles são, muitas vezes, levados pela emoção ou pelo impulso de fugir à verossimilhança. Não fosse sonhador, o poeta não se transportaria para o lirismo, contasse ipsus litteris suas histórias, o contista cansar-nos-ia no meio da narrativa. Bem dito, pois, o provérbio “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, bem dita inventividade que ao fazer do escritor um mentiroso, permite-lhe tirar da realidade tantos indivíduos que, por vezes pegam o livro justamente buscando o prazer, a alienação.   Escrever e ler são ações muito próximas, não é desnecessariamente que há uma cumplicidade entre quem lê e quem escreve; sem escritor não há leitor e sem leitor não há escritor (Júlia Kristeva). Do mesmo modo sem inventividade, sem disfarce, sem máscara não há fantasia e sem esta não há criação prazerosa.
Todo poeta é um fingidor
Finge tão perfeitamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
              Fernando Pessoa

Considerando a vida a distância, só posso dar um grande voto de crédito ao sonho. Nenhum, enquanto está sendo elaborado, nos faz infeliz e, praticamente todos, acabam, de alguma forma, impulsionando o homem para o crescimento interior. É humano idealizar mundos diferentes do nosso, é inerente à nossa condição existencial cobrirmo-nos de máscaras que, se usadas realmente, tornar-nos-ia o indivíduo que pensamos, um dia, em ser.. Às vezes, vive-se mais da idealização ou na idealização do que da ou na realidade. E muitíssimo poucas vezes, a segunda supera a primeira.
É claro que não estou defendendo a alienação do homem, muito menos acho que devamos ser incongruentes conosco e abstratos a tudo e a todos; acho, porém, que, sonhando, desfrutamos de momentos menos pesados e mais amenos. E afinal, não é disso que precisamos para viver? Os filósofos procuraram o bem e a verdade, nós, humanos, que lutamos contra tantos arremessos, devemos – acredito – fazer do sonho um escudo contra a violência, a irritação e, em muitos casos, o desespero. Aliais, é apoiada neste preceito que, através da literatura visa-se a um mundo melhor. Vale a pena fugir à realidade e tornar a vida mais amena com nossas idealizações impossíveis? A resposta já nos foi dada por Fernando Pessoa, um dia:
Tudo vale a pena
se a Alma não é pequena.

SORRISO EM DESENCANTO
A menina já não acreditava em Papai Noel, mas procurava enganar-se a si mesma. Parecendo adivinhar que cada frustração tinha o preço de um sorriso a menos no semblante e que, pela vida afora, teria motivos de sobra para enrijecer suas feições, a menina persistia na crença da infância. Talvez enganando-se, talvez por culpa úinica da madrinha, continuava colocando o sapatinho na janela, à espera do presente pedido. Se fosse só um par de sapatos que ela colocava.... eram vários pares, todos os sapatos que ela e o irmão tinham , iam, na véspera de natal, parar na janela. Linda ilusão! Mas bem-aventurada também! Na manhã seguinte, lá estava a boneca Hula Hair ou outra qualquer daquelas barbies que tomavam conta do encantamento infantil.     Que importava que tivesse sido trazida por Papai Noel..., comprada pela madrinha, pela mãe ou pela avó, importante é que o seu desejo havia sido, mais uma vez, realizado. Por quanto tempo os seus desejos se concretizariam tão facilmente, ela não imaginava, mas a madrinha, bem mais vivida, pressentia e, por isso, se esforçava em dar agora o que, talvez mais tarde, fosse impossível de conseguir.
É claro que os sonhos, ao longo dos anos, se vão tornando mais inalcançáveis, difíceis. O homem, quando tem ambições, e é bom ser ambicioso, não se acomoda ao que é fácil, ele quer, muitas vezes, pouco, mas um pouco que a vida sempre torna difícil. Começa, então, a luta, o desgaste físico e emocional, surgem comparações, identificações, amarguras. Na maioria dos casos, não é inveja, é apenas uma interrogação, um porquê que sai hora-a-hora da consciência , buscando uma resposta que não chega nunca. Na verdade, há pessoas que têm sorte e pessoas que têm azar, pessoas que nascem num domingo de sol e pessoas que nascem numa sexta-feira santa chuvosa. Mas também há os inconformados, aqueles que, por terem muito, acham que não têm nada e há ainda os que por terem muito de um lado, falta-lhes tudo de outro.   Os homens são, de fato, complicados! Quantos são felizes ou quantos se consideram felizes? Olhados a distância, vistos por olhos alheios a impressão é sempre mais positiva.
Será que falta acomodação ao indivíduo? Será que lhe sobram fantasias? Difícil é afirmar onde recai a felicidade de cada um de nós; aliás, o termo parece já um tanto utópico, um tanto inatingível. É preferível que cada um se contente com o sorriso, com a alegria simples que, às vezes, surge de um momento, de uma carta... de uma esperança..., de uma palavra amiga... E é tão bom estar alegre...   Até motivo nós buscamos para isto, em gargalhadas, risos, piadas, loucuras..., que importam se superficiais?   Bom é quando surgem em nosso espírito razões que amenizam a fisionomia dura, desumana, sofrida de quem esquece de que, por pior que se viva, se vive... Mas há uma diferença tão grande entre viver e existir que um abismo enorme se distende entre as duas palavras, aparentemente, sinônimas. Diz o velho ditado: “O difícil não é viver, mas saber viver”. Em que escola se adquire esse aprendizado? Quantos anos o indivíduo demora para chegar ao último ano desta escola? Será que há um último ano? A vida é um eterno aprendizado e a lição maior é a do riso, sorriso ou entusiasmo do nada.
Ah vida, vida
quem duvida
da melhor vida
da maior lida
ou do que seja
apenas VIDA.
Quatro fonemas, duas sílabas e apenas uma tentativa: Viver. E como é mais fácil viver na infância, cumpre atender às vontades mínimas, ainda que bonecas sejam apenas um pretexto para distrair horas, tardes, dias ou apenas alguns instantes que buscam felicidade..
Pena que a infância se extingüa um dia, pena que, de repente, as bonecas de nossos sonhos sejam substituídas por desejos mais inalcançáveis, pena que também as madrinhas um dia se cansem ou deixem de atender às nossas expectativas; enfim, não há o que lamentar tanto, há o mesmo prazer em receber como em dar e só podemos dar àqueles que vêm depois de nós e que precisam de nossos afetos para serem felizes.












Biografia:
Doutora em letras Professora de Francês/Inglês/Português Autora de seis livros
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