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Lucy, o mensalão e as eleições municipais
Conversa (des)afinada.
Alexandru Solomon

Resumo:
(...) Porque de acordo com Karl Popper, bastaria que apenas um pagamento tivesse acontecido a, digamos 60 dias do outro, para que não se possa falar em ‘mensalão’.

Apesar dos esforços dos tutores em “blindar” o doce fóssil – o zelo foi tamanho, que foram retirados os aparelhos de TV, e o acesso à imprensa escrita foi limitado a ‘clippings’ cuidadosamente edulcorados, no mais puro estilo “ad usum delphini”. Quanto a Internet, houve um verdadeiro “apagão” para usar um termo que insiste em se perpetuar pela contínua ocorrência – foi impossível afastar Lucy dos assuntos palpitantes da atualidade brasileira: as eleições municipais e a AP 470.
Sabe-se lá como, Lucy conseguiu ter acesso a informações que a deixaram confusa. O pacto do silêncio dos tutores foi burlado, e, a propósito, corre um inquérito no seio da comunidade científica para descobrir de que maneira Lucy estava tão à la page – atualizada, para os monoglotas.
As dúvidas que Lucy verbalizou foram poucas. Na verdade, ela se ensimesmou e procurou encontrar respostas às perguntas que a atormentavam. Mesmo assim, ela decidiu compartilhar algumas das suas incertezas com os especialistas que a cercavam desde a sua reconstituição.
– De onde surgiu o nome ‘mensalão’?
– Ora, trata-se de um termo criado pela Receita Federal que se refere a uma modalidade de pagamento de tributos... se refere...
– Mas não se trata de tributos, ou melhor, até que faz sentido: aquele dinheiro foi desviado de tributos pagos pelos contri...
– Chega... Lucy, você está extrapolando.
– Ah, extrapolar: generalizar com base em dados parciais ou reduzidos; estender a validade de uma afirmação ou conclusão além dos limites em que ela é comprovável; – Lucy era uma aluna aplicada. – Mas se mal pergunto, é tão importante para o tal processo que os pagamentos tenham ocorrido com essa periodicidade? Porque de acordo com Karl Popper, bastaria que apenas um pagamento tivesse acontecido a, digamos 60 dias do outro, para que não se possa falar em ‘mensalão’. Poderíamos ter “bimestrão”. “semestrão”. Não é? A defesa não procurou explorar essa linha? Talvez não tenha havido ‘mensalão’, e sim outras formas de comprar votos, consciências, ou indivíduos. Mas a tipificação do crime, a menos dessa filustria temporal permanece.
– É possível.
A seguir, Lucy manifestou perplexidade ante o voto da ministra Carmen Lúcia que enfatizou a necessidade de os jovens conservar seu apreço pela política.
– Mas os velhos podem continuar a descrer? Ou será necessário que os jovens atinjam a senectude para que esse fenômeno benfazejo se manifeste? No meu caso são milhões de anos de espera – Para aqueles que ‘boiaram’ até aqui, vale relembrar ser Lucy um fóssil, como mencionado na primeira linha desse relato, descoberto na África. Lucy tem milhões de anos e deve seu nome a uma música dos Beatles, tocada na época da descoberta, que aludia de forma mais ou menos sutil ao ácido lisérgico – LSD. Uma espécie de acróstico...
– Chega, Lucy.
– Então para comprovar a ocorrência de “malfeitos”, termo consagrado por aquela senhora brava que vi na TV, seria necessário obter provas e não ilações que não encontram ecos nos autos como disse aquele senhor Lewa...
– Isso mesmo, Lucy.
– Mas é comum na sociedade de vocês o corrompido assinar um recibo, ou o corruptor pagar atendendo a um boleto bancário? No meu tempo, nunca assinei quando meu namorado – ai, que saudade – trazia um contrafilé de mamute, mesmo porque o mamute surgiu bem depois.... Ah... e eu não sabia escrever. O que é domínio do fato? E ato de ofício?
– Depois explicaremos, Lucy.
– Uma outra dúvida. Esse processo diz respeito ás atividades de um partido ou de uma organização criminosa?
– Lucy!
– Mas numa organização há chefes, ou é tudo uma massa acéfala, uma compota geral, onde cada um faz o que quer? O tesoureiro, aquele Dilúvio...
– Delúbio
– ...aquele senhor era o que mais mandava? O dono da “bola”? – de vez em quando Lucy fazia trocadilhos. Ele decidia, pagava, tomava dinheiro emprestado, garantindo os empréstimos com seu sorriso honesto, e os outros nem ficavam a par do assunto. Essa, sim, é uma piada de salão! Ninguém sabia de nada e se sentiram traídos! Puxa, que bando de pessoas distraídas. Parece um conto ante-deluviano,... delubiano,.. diluviano.
– Sem jogos de palavras, Lucy! Não gostamos disso!
Intimidada com o tom enérgico da reprimenda, Lucy decidiu que não era o momento de insistir, e passou à segunda parte do seu rol de incertezas.
– Parece que agora vocês têm eleições para prefeitos e vereadores. Daí se um vereador consegue muitos votos ele repassa para outros que se elegem? Que coisa mais Tiririca!
– Quociente eleitoral, Lucy.
– Ah... Não quero saber, ainda não domino a divisão. Mas um vereador deve ser um especialista em artes marciais?
– Por que, Lucy?
– Todos dizem que vão lutar. Eles colocam luvas ou brigam como no vale-tudo, com as mãos nuas, tipo karatê? Daí os jurados declaram um vencedor e este faz uma creche, um hospital, ou compra leitos em hospitais particulares? E o perdedor? É convidado a não faltar aos treinos com o tal Adriano. Esse é candidato?
– Só se for a Rei-Momo...
– Mas aqui não é uma república, do latim res publica – coisa do público? Coisa de todos nós, Cosa Nostra?
– Não, Lucy...quer dizer, sim.
– Entendi: preferem ficar em cima do muro. Então há um primeiro turno, uma espécie de eliminatória e depois, como naquele jogo idiota no qual todos correm atrás de uma bola – será que não é possível dar uma bola para cada um? – vão todos para o vestiário e para o segundo tempo retornam apenas os dois melhores.
– Mais votados... isso não quer dizer melhores. São os que o povo escolheu. Para ajudar na escolha, aquela senhora brava que você mencionou vem para orientar os eleitores.
– Ela mete o bico.
– Isso.
– E é assim que ela se alimenta? Como no meu tempo... os pterodáctilos metiam o bico também
– Os pterodáctilos não são do seu tempo. E aqui, trata-se de uma metáfora.
– Tudo é poesia...
– No fim, o que importa é a vontade soberana do povo!
– Ah, a voz do povo é a voz de Deus! Vox populi vox dei, e como são todos lutadores, até seria melhor dizer Box Populi Box Dei. Digam-me, esse Deus é ventríloquo? E a última pergunta. Uma senhora elegante afirmou ter visto Deus. Um senhor baixinho de voz rouca... Michelangelo retratou Deus no teto da Capela Sistina, com tinta caindo nos olhos. A senhora elegante também tinha tinta nos olhos.
– Era rímel
– O que é isso?
– Rímel é um cosmético usado para escurecer, clarear ou colorir os cílios, e também para engrossá-los, alongá-los e defini-los de acordo com a Wikipedia.
– Tudo bem. Não pretendo usar isso. Nem para ver Deus. E eu, precisarei votar?
– Não, Lucy, acima de 70 anos não é obrigada, mas se quiser...
– É que eu tenho milhões de anos. Nisso pensarei amanhã, como dizia Scarlett O´Hara. Essa tinha uma verdadeira Tara.


Biografia:
Alexandru Solomon nasceu em Bucareste (1943), mas vive no Brasil desde os 17 anos. Ao lado de uma sólida carreira empresarial, de uns tempos para cá passou a se dedicar a uma nova paixão: a literatura. Através da sua escrita nunca deixa o leitor indiferente. Autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus`, ´Bucareste` (contos e crônicas) e ´Plataforma G`, além de vários prêmios nacionais e internacionais por sua escrita. http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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