“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são os que a encontram.” (Mt 7:13,14)
Ao chegar ao caixa, percebeu que a fila era quilométrica e, para sua surpresa, na frente dele estava o simples, cabisbaixo, aguardando sua vez. O mover daquela fila daria no que falar.
Por conta da inexperiência do rapaz do caixa em dar o troco, a fila andava muito devagar, causando irritação no simples, que resmungava – Parece fila de INSS! Qualidade McDonald só nos EUA! Quem dera Jesus voltasse agora, comeria no céu. Enquanto murmurava, voltavam seus olhos continuamente para a mesa onde estava seu amigo com as minas, visivelmente nervoso.
A murmuração é um segredar, uma censura disfarçada e em voz baixa, artifício muito utilizado por Israel no deserto. Quando o exército de Faraó encurralou Israel no Mar Vermelho, mesmo tendo experimentando grandiosa libertação quando da fuga do Egito, o povo dizia:
“Foi porque não havia sepulcros no Egito que de lá nos tiraste para morrermos neste deserto? Por que nos fizeste isto, tirando-nos do Egito? Não é isto o que te dissemos no Egito: Deixa-nos, que sirvamos aos egípcios? Pois melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos no deserto.” (Ex 14:11b,12)
Quando o povo se encontrou diante de águas amargas murmurou contra Moisés dizendo: “Que havemos de beber?” (Ex 15:24). Como o simples na fila, tudo era motivo para reclamações, a fila que não andava, a igreja que ainda não existia, o casamento que não valorizava. O simples sustentava sua vida na fragilidade do “se”. Se eu tivesse nascido em berço esplendido... Se eu tivesse estudado em escola de qualidade... Se eu tivesse conhecido pessoas boas...
O que o simples não compreendia é que na trilha da ruptura o coração se transforma numa centrifuga, que processa todo tipo de alimento, triturando-o em uma única massa. Se colocar cenoura, beterraba e laranja, tem-se um delicioso suco, perde-se a distinção entre cada um de seus alimentos. Assim é o coração em seu estado natural, uma maquina de processar desejos e vontades que contrariam o propósito divino, condição esta conhecida por concupiscência (Tg 1:14).
Por causa da concupiscência inerente ao homem em decorrência da queda, nenhum esforço precisa ser feito para ser atraído e deixando-se enganar pela tentação que cerca o homem de Deus. O coração é como um prisma, tudo passa por ele, se decompondo nas mais variadas formas de desejo: vê um carro, quer comprar; uma roupa, tem de adquirir; uma mulher, precisa cobiçar; um empregado, deseja ascender na carreira; um empresário, dirigir um negócio de sucesso. Este desejo violento, forte, sensual, sem nexo, tende a mover o indivíduo cada vez mais para longe do Senhor que o resgatou, deixando-o na fronteira do pecado, meio caminho para a morte.
- Vamos reclamar com a gerência acerca do caixa? Disse o simples ao sábio. A indagação lhe pareceu pertinente, pois já estavam a 10 minutos na fila que teimava em prosseguir lentamente. O sábio olhou para o simples, quase disposto a concordar com sua observação. Aquele dia tinha sido de descobertas e aflições.
O sábio se lembrou um fato. Antes de se encontrar com o homem sofrido e desprezado, passara no banco para olhar o saldo de sua conta. Entrara na fila para tirar o extrato, mas por causa de uma queda de energia, as maquinas deixaram de operar. Parecia ter sido a senha para um coral de vozes mordazes. O sábio ouvira as mais diferentes imprecações, ele próprio engrossando o coro. Enquanto reclamava com uma senhora grávida, que estava à sua frente, chamando a atenção da atendente dizendo que aquela jovem senhora não podia permanecer muito tempo em pé, o sábio sabia que não tinha intenção de ajudar aquela senhora, apenas a usava para disfarçar sua própria irritação.
Esta cena é muito comum em consultório médico ou posto de saúde. A pessoa não é médica, não está enferma, nem é parente do doente, mas basta ver alguém não sendo atendido em tempo hábil que solta todo tipo de impropério. A pessoa se sente inflamada, como um Robin Hood moderno, pronto a defender o interesse dos mais fracos, quando na verdade está falando por si mesmo, seja por medo de morrer sem atendimento, seja por querer qualquer motivo para dar vazão aos desejos espúrios de seu coração, murmurando.
O que mudara na atitude do sábio fora a expressão de compaixão vista no homem sofrido e desprezado. Causara admiração no sábio os furos nas mãos daquele homem. Procurando saber a respeito, soubera que ele fora crucificado sem ter cometido crime algum, não saindo nenhuma palavra de murmuração de sua boca, antes já tinha perdoado todos seus agressores (Lc 23:34).
Desde então o sábio aprendia rapidamente a necessidade de ser paciente, aguardar serenamente sua vez. Sabia que para estar naquela fila já dominara seu ímpeto, dominando a ânsia que seu coração teve em reclamar com a importunação de Rogério. Não lhe custava nada ser paciente – Amigo, se a gente não for paciente, este rapaz nunca terá chance de aprender, será despedido, quem sabe não poderá levar o pão para seus filhos, pois noto que tem aliança na mão esquerda.
Aquelas palavras foram como uma flechada no coração do simples. Seus olhos voltaram por instinto para a mesa onde estava o João com as minas. Sua mão esquerda entrou nervosamente no bolso de sua calça, como procurando alguma moeda.
– O que deseja? Perguntou o caixa ansioso. Feito os pedidos e pago, cada um voltou para sua mesa, imerso em suas próprias reflexões, aguardando o soar da senha. O papo na mesa do simples corria animado. Antes mesmo do sábio sentar-se, a voz soou: – Estrupício, como demorou? Comentou Rogério em tom provocativo, ao que ouviu a queima roupa – Estrupício morreu.
|