O CASEBRE
O casebre, situado do outro lado da rua, causava espanto à meninada que habitualmente brincava do lado oposto ao mesmo. Rua, na definição oficial, não era! O centro do logradouro era ocupado por um riacho que tomava praticamente toda a extensão do mesmo. Em época de chuvas intensas, transbordava e inundava diversas residências. Porém, encontrando-se em posição privilegiada, a velha casa em ruínas ficava incólume às inundações, já que fora construída sobre sólido barranco. O ambiente tornava-se, então, propício as mais variadas formas de brincadeiras por parte da garotada que, febrilmente, ignorando os perigos pertinentes a uma enxurrada, atirava-se riacho adentro.
Os pequeninos tinham um código de honra que consistia em não se aproximarem, do que eles mesmos diziam ser: a casa mal-assombrada.
Nessa época, lá pela década de 70, surgiu uma lenda que dizia existir, circulando mundo afora, um indivíduo que atacava as pessoas e cruelmente extirpava as vísceras de suas vítimas, em especial o fígado. Era conhecido vulgarmente como “papa-figo”. Ficar sozinho em casa era motivo de terror. Não lembro com maiores detalhes como tudo aconteceu, mas certo é que na cabeça da gurizada, inclusive na minha, o criminoso morava na dita casa mal-assombrada que, por coincidência, ficava defronte a casa onde eu morava.
Quando chegava à tardinha, juntávamo-nos para brincar de pega-pega, e, sempre de olhos na casa, que abrigava vários morcegos, que com a chegada do anoitecer, começavam a sair em seus vôos vespertinos, superexcitando ainda mais a nossa imaginação a respeito da casa.
Assim, a vida seguia seu curso natural. Deixar de brincar, não deixávamos!
Certo dia, quando brincávamos, observamos a chegada de uma pessoa a casa. Não era homem, tratava-se de uma senhora, bem magrinha, e trazia consigo um carrinho de coleta de material reciclável. Ficamos atentos observando o que aconteceria. A senhora adentrou a casa e não saiu. Resolvemos, então, em comum acordo, atravessar o riacho, passando sobre uma ponte improvisada de madeira, e ir até o casebre, ver de perto o que estava acontecendo lá dentro da casa.
Nessa altura do campeonato, o medo dava lugar ao sentimento de curiosidade, afinal de contas, havíamos decidido esclarecer toda essa confusão de informações, que durante muito tempo vinha causando pavor a todos nós.
Fomos chegando devagarzinho, sempre bem juntos, e, esgueirando-nos sobre a janela pudemos ver algo que nos chamou a atenção: Sentada no chão de barro batido a senhora separava os materiais coletados durante o dia. Ficamos perplexos com o que estávamos presenciando. O humilde lar não tinha nada de mobília. Podia ver-se ao fundo pequena quartinha feita de barro, uma cadeira de madeira faltando algumas tábuas, uma rede amarelada pelo tempo, dependurada junto à parede sem reboco e muita sujeira espalhada pelo recinto. Era a miséria humana em pessoa. A situação econômica de nossas famílias também não era muito diferente, contudo, não chegava nem de longe, a se parecer com a visão triste que ora testemunhávamos.
Estávamos inebriados com a visão de tudo aquilo, e sequer notamos que fôramos percebidos pela dona da casa, que prontamente nos chamou para junto dela.
- Entrem meninos. Não tenham medo. Sou feia, mas não mordo. Ajudem-me a separar estes materiais, aposto que vocês irão gostar. - Disse ela.
Entre o medo e a coragem em atender ao pedido, falou mais alto o sentimento de solidariedade que se estabeleceu em nós naquele momento, e decidimos ajudar a pobre senhora em sua tarefa dignificante.
Nossas tardes, a partir daquele dia, não foram mais as mesmas. O medo desaparecera, e, nos dias subsequentes àquele episódio, aguardávamos a chegada da senhora e seu carrinho.
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