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PAI HERÓI
Eduardo Borsato


     

Quem diz que o diabo é feio?
Bonito ele não é.
Tem cara de homem,     
E cinturinha de mulher.
Roubaram meu carneirinho,   
cortaram os seus quatro pés.
Não quero saber de nada,
quero é meu carneiro em pé.

     Depois do jantar, o casal à mesa. Sobre a toalha, migalhas de pão, restos de risoto de frango. Da rua, o barulho dos carros. Na televisão, o Jornal Nacional. Volume baixo.
     –Quero matar o homem velho dentro de mim – diz Percival.
     E, solene:
     –Quero me submeter e renascer.
     Por submeter-se, entendia a mais completa dependência à Lígia. Por renascer, no entanto, ainda não entendia nada. Ou muito pouco, já que o passado era-lhe um livro aberto; o presente um livro que lia com certa facilidade, mas o futuro parecia-lhe algo horrivelmente temebundo. Tão temebundo quanto temebundas tinham sido as terras do Campo Grande para os primeiros que por aqui chegaram: os marujos encalicrados e estonteados com a visão do paraíso; os gabolas jesuítas a chacoalhar as bochechas do Senhor; os almirantes alvoroçados por secretos segredos de selvagens tesouros. E por sobre todos eles a mata, o colorido abafado das folhas alvoroçadas e pisoteadas, o frescor de açaí das entre coxas das apetitosas indiazinhas.
     Lígia torceu as mãos por baixo da mesa. Mirou um miolo de pão, entre a xicrinha de café e o paliteiro. Suspirou fundo. O que fazer?

AVELINO
     –Sei lá, minha filha! Sei lá!– e os cabelos brancos de Avelino quase se eriçaram.
     –É a terceira vez, pai. Só nesta semana.
     –Ora...
     –Eu estava pensando...
     Ele, enérgico:
     –Escutaqui. Afinal, o que...
     Calou-se. Olhou para ela, o coração apertado. A verdade é que se via dominado por enorme sentimento de culpa. Mais ainda: sentia-se tão canalha quanto Herodes, no momento em que lhe trouxeram o cabeção de João Batista numa bandeja de prata.
     Desviou o olhar e, em puro desespero:
     –Afinal, que que você quer que eu faça? Sacuda o Percival pelo pescoço e diga...
     Fez pequena pausa, quase sussurrou, a voz fraca, de passarinho na muda:
     –Bolas... que diabo vou dizer a ele?
     O sentimento de culpa aumentou a um ponto insuportável. Mas, afinal, estava sentindo culpa do quê? Desde que, a mãe morta, viu-se com a obrigação de criar a filha, era como se carregasse uma cruz. Sempre mais pesada. A cada dia. Mas encarava aquilo como uma função cármica. Imaginou libertar-se depois que ela se casou. Só que...
     –Olha, se você quer se separar, eu não posso...
     Ela foi veemente:
     –Não quero. Amo o Percival. É o homem da minha vida.
     –É? Mas então...
     –Pai, não seja hipócrita.
     –Estou sendo?!
     –Oh! Não me faz morrer de raiva!
     –Raiva, é?
     –E revolta.
     –Por que, meu Deus?
     –Olha...
     Encarou-o, numa fúria:
     –Deixa o Percival em paz, tá ouvindo? Em paz!
     Saiu. Ele a acompanhou com os olhos, um leve, satânico risinho nos lábios.
     
GLORINHA
     –Temebundas, seu Avelino?!– e as narinas dela fremiram, num espanto.
     –Pra você ver, minha filha.
     Ele, as mãos postas, os olhinhos arregalados, ergueu-os para o céu, fez um biquinho papal, estilo Bento XVI:
     –Foi a isso que chegamos! A isso!
     –Quem diria...
     –Pois é.
     E ficaram os dois, em silêncio, ele encoberto pelo manto edulcorado da vingança, ela bobinha como as mocinhas das antigas fitas em série.
     –Vingança, seu Avelino?
     –Hein?
     –Contra quem?
     
     “Diz a doutrina que alguns espíritos, depois de desencarnados, são compelidos a voltar ao plano material. Tal fato se deve a que suas faltas ainda não foram devidamente purgadas. Assim, eles podem reencarnar naqueles que lhes estão mais próximos. Por exemplo: os pais nos próprios filhos, independentemente da idade ou do sexo que tenham (a mãe nos filhos ou nas filhas, o pai idem). Não é regra geral, no entanto, já que o espírito desalojado muito padece, pois é mister encontrar para ele, com a maior brevidade, novo invólucro carnal. Na maioria dos casos, como já se disse, além de lento e doloroso, é processo que exige, por suas singularíssimas peculiaridades, enorme sacrifício e superação por parte dos espíritos apoiadores. Ainda assim, cabe a seguinte indagação: será um processo justo? Os filhos não estarão pagando por uma culpa alheia, que jamais lhes poderia ser imputada? De forma chã, sem lançarmos mão de quaisquer eufemismos, a pergunta pode ser reformulada para seu equivalente mais popular: afinal, o que tem o cu a ver com as calças?”
     
     Serelepe, top, top, lá se tinha ido o espírito dela.
     –De quem, seu Avelino?
     –Minha mulher.
     –Ahn...
     –Mas reencarnou.     
     –Certeza, seu Avelino?
     –Absoluta.
     A tarde era chuvosa, de raios ariscos, quando ele entrou em casa, vinha mais cedo do trabalho, queria                                                               fazer uma surpresa, trazia dois embrulhinhos com docinhos de abóbora com coco, e outro com balas puxa-puxa, só que ela estava toda largadona na cama com o vizinho, ai que raiva, bem que ele teve a vontade insana de esganar os dois, mas fingiu que nada viu, fingiu que a ela perdoou, só que uma praga mortal lhes rogou, no mês seguinte o vizinho se findou, dois meses depois foi ela que dessa para outra melhor passou, mas no próprio enterro uma alma lhe relevou que ela já tinha voltado, o corpo da filha era por ela agora habitado.
     –Bom, seu Avelino...
     –Bom...
     –O que quer que eu faça?
     –Hein?      
     –O senhor que me chamou. Se lembra?
     –Ahrã.
     Glorinha era pequenininha, lourinha, bonitinha. Igualzinha à mãe, a coitadinha da mulher do sujeito que...
     –Então foi o meu pai?!
     –Ahrã.
     –Meu Deus!
     –Reencarnou. No Percival.
     –Deus do céu!
     –Estão juntos de novo.
     –Deus meu!
     –Vamos deixar?

PERCIVAL
     Dormir com o próprio pai,     
     mesmo reencarnado,   
     era coisa que com ela mexia,
     como o pardal
     mexe com a cotovia.
     Só de pensar    
     ficava derreada,
     do mais puro prazer encharcada.
     Mas como fazer     
     para dele se acercar?   
     Como seu intento    
     conseguir,   
     se Lígia o vigiava,    
     como a cobra vigia   
     o faquir?
     De tudo ela tentou,    
     toda noite,   
     todo dia:   
     de mentalização   
     à telepatia.
     Já estava a ponto    
     de desistir   
     quando,   
     certa manhãzinha,   
     um ventinho muito estranho   
     em seu quartinho
     começou a zunir.
     Com o ventinho   
     veio uma luz        
     igualzinha àquela        
     que o anjo usou   
     para cegar Maria
     e em sua florzinha    
     plantar Jesus.
     Mas, diferente
            da mãe do Criador,   
            ela ficou com um baita medo    
     de sentir uma baita dor.
     Qual nada!   
     Sentiu foi tão forte gozo
     que não deu mais gritinho algum,   
     de tanto que estava gostoso.
     Ainda toda bamba,   
     mas muito, muito prosa,   
     ouviu uma voz forte, poderosa:   
     “Filhinha, sempre
     que sentir coceirinha,    
     é só chamar
     que eu lhe dou
     uma boa coçadinha”.

     Seis meses depois, mudaram-se para Saracuruna. Os três. Segundo Lígia,” pra evitar falatório. Sabe como essa gente é.”     
     Trabalham no restaurante “O Frango Bom”, montado por Percival. Ou melhor, trabalhavam. Gabriela, enorme, em adiantado estado de gestação, foi aconselhada pelos médicos a manter repouso absoluto.
     Ela ainda não resolveu se vai fazer cesariana. Lígia prefere que seja parto normal. Glorinha também não quer saber o sexo da criança. Prefere ver na hora. Acha mais emocionante.
     



Biografia:
Escritor não tem currículo nem biografia. Escritor tem talento, texto, amor, ódio e muita hipocrisia. contato@eduardo.borsato.nom.br
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Contos O reencarnado Eduardo Borsato

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