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SALADAMISTA
Rúbia Mendes Laurelli

Quando eu era menor eu adorava brincar de pega-pega e esconde-esconde. Dava um frio na barriga desesperador e delicioso. Eu era a menor do grupo então era me chamavam de café-com-leite. - Cuidado com ela porque ela é café-com-leite, se ela machucar vai chorar e chamar a mamãe’ - diziam. Para perder este posto, treinei muito. Esforço diário, luta semanal. Empenho máximo. Café-com-leite que nada, eu queria ser craque. Dava a hora, meio que depois da aula, juntava a turminha da rua, eu já estava lá atrás da porta esperando gritarem meu nome. Mentira. Esperava que eles chamassem pelo nome da minha irmã, que já tinha tamanho, e eu saía porque ela saía. Meu psicológico já estava preparado, meu físico nem tanto porque eu era fraca, magra e muito baixa. Comia mal, e comia pouco. Fiquei craque na queimada, ninguém me queimava, eu corria de um lado para o outro me achando, sem nem perceber que a brincadeira já tinha acabado, todos os mortos já tinham parado e sentado no meio fio, e quem jogava a bola era minha irmã e uma prima, por consideração. O que importa é que assim, aprendi a correr. No escode-esconde por ser baixa me escondia em lugares mínimos, e corria para bater o nome que é uma beleza. O problema do esconde-esconde era que isso em dava certa incontinência urinária, e eu tinha que fazer umas três ou quatro trocas de roupas devido a isso. No pega-pega, virava alvo. A única brincadeira em que eu era a primeira a ser vista, a única situação em que me davam total atenção, porque queriam que a bobinha corresse de um lado para o outro sem pegar ninguém, para a brincadeira ficar divertida. Mas foi demais quando peguei a manha. Quando estava em situação de risco, ou seja, quando alguém tentava me pegar, eu imaginava um leão correndo atrás de mim. Mais que isso, imaginava um leão de garras afiadas, com a boca aberta, correndo atrás de mim em alta velocidade, com a juba roxa, os olhos vermelhos sangrando, dentes afiadíssimos, cuspindo faísca. Um leão que puta merda, só Nossa Senhora dos Prepotentes poderia me salvar desse trem! Com o tempo, comecei a imaginar que vinham correndo atrás de mim três panteras pretas (interferência da televisão na minha vida, depois de um dia em que assisti um documentário sobre panteras e vi quão impactantes são) imaginei esse impacto todo correndo atrás de mim, todas elas sedentas, famintas, panteras babando, olhando fixamente para minhas perninhas de saracura, correndo muito. Eu imaginava três panteras para dar mais desespero, e dar mais resultado. Com o sucesso das experiências anteriores, ninguém conseguia me pegar no pega-pega. Demais. Invicta. Por fim, já estava apta a correr dos muleques de 15 anos, ou seja, estava ali páreo duro com a puberdade tão sonhada e esperada. Eu já não imaginava nem leões nem panteras. Já imaginava guepardos correndo atrás de mim a 110 quilômetros por hora e eu ali, inalcançável e incansável. Demais mesmo. Café-com-leite nada, eu não poderia jamais ser café-com-leite. Eu era craque, espertíssima. Me superei, fiz tudo que pude para não ser chamada disso! Foi assim, adulta e eficaz, que os pré-adolescentinhos da rua decidiram que eu poderia ficar depois das seis para brincar de saladamista (mais uma vez a interferência da televisão, dessa vez numa turminha de bairro, a turminha que adorava dar umas bitoquinhas enquanto os pais assitiam o que? televisão.) Eu não sabia definir aquele sentimento que me cercou. Era essa a graça toda? Não podia ser. Eu não poderia jamais brincar de saladamista! Não aceitei isso de jeito nenhum! Mentira. Depois de uns dias, a curiosidade estava pairando e eu entrei na brincadeira, me pediram saladamista. O mulequinho ia me dar uma bitoca (o pecado imperdoável, ‘ai se a catequista descobrisse uma coisa dessa, vou pro inferno na hora! ’ -pensei) então me abaixei rapidamente antes que aqueles lábios de pré-adoslecente tocassem os meus tão puros e inocentes, e eu não podia nem saber quem iria fazer isso, pois alguém tampava meus olhos (essa foi a brincadeira que a Xuxa- A RAINHA DOS BAIXINHOS ensinou na minha época, puro fetiche, alguém te beija e você não sabe quem, fica com os olhos vendados e depois tem que tentar advinhar quem). Então sai correndo, tropeçei em frente a casa da senhora que vendia marmitex, por conta de uma calçada esburacada que nós mesmos tínhamos estragado com nossos patins, caí de boca no chão, todos me insultaram, comecei a chorar com direito a soluços e berrei (gaguejando) que ia contar tudo para minha mãe, como uma.. uma… uma… café-com-leite! E foi foi isso que eu voltei a ser, porque tudo tem sua hora. Imaginei que quando eu largasse o posto de café-com-leite eu poderia ser a presidenta do amigo invisível de natal, pensei que a carta que estávamos todos escrevendo para a Angélica (tevê denovo) ia ficar na minha responsabilidade enquanto ainda não estivesse pronta (500 folhas, as árvores? enfim…), pensei que eu ia decidir a brincadeira do dia, mas não. Não foi nada disso. Prestemos bem atenção em quê estamos botando força e esforço. Recuso méritos imaginários.

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