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MATILDE_LA CAMBIADORA DE CUERPOS
fabio espirito santo

Resumo:
Jornalista tenta desvendar o caso de uma criminosa paraguaia que tem o misterioso poder de trocar de corpo através do beijo.

“MATILDE, LA CAMBIADORA DE CUERPOS”

Texto para teatro

Autor: Fabio Espírito Santo

Salvador. Bahia. Brasil - 2010


     
PERSONAGENS:
(por ordem de entrada em cena)


ADALBERTO MULHER – funcionário público, vítima de Matilde
CECÍLIA DE CAMPOS – jornalista
DELEGADO NOGUEIRA – delegado
GERALDÃO – amigo de trabalho de Adalberto
HOMEM/MATILDE – Matilde no corpo de um Homem
ROSA MARIA – âncora de telejornal
ANA JÚLIA – repórter de telejornal
APRESENTADOR – mediador do programa de debate
PADRE AUGUSTO DOURADO – padre de Salvador
JOÃO PEDREIRA – apresentador de programa mundo-cão
DONA FILOMENA – mulher pobre moradora do subúrbio de Salvador
REPÓRTERES – jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas de diversos veículos de comunicação
PREFEITO – prefeito de Salvador
JURANDIR – comentarista esportivo
CARLOS ROBERTO – comentarista esportivo
MULHER DO TEMPO – apresentadora da previsão do tempo na tevê
VELHO/MATILDE – Matilde no corpo de um velho
PORTEIRO – atendente do motel
MULHER/MATILDE – Matilde no corpo de uma universitária
BÁRBARA – mulher paraguaia, ex-namorada de Matilde
RODRIGUEZ/MATILDE – Matilde no corpo do namorado de Bárbara
LOCUTORA – locutora de comercial de produto de beleza
GLORINHA PAVÃO – apresentadora de programa de auditório
LOCUTOR – locutor do programa “Pavão show”
MULHER VÍTIMA – feliz vítima de Matilde
JORGE DE BRITTO – comentarista político
LARI – apresentadora de programa de entrevista
CARLENE KRYSTAL – cantora, estrela da axé-music
PRESIDENTE – Presidente da Associação Vítimas de Matilde
POLICIAL – investigador da polícia
CARLINHOS/MATILDE – Matilde no corpo do ex-namorado de Cecília
BEATRIZ CONSUELA – Matilde no corpo de uma mulher



Nota do autor:

Escrito originalmente para ser encenado por duas atrizes que interpretam todos os personagens, o texto sugere o uso de recurso audiovisual. Desse modo, o cenário poderá ter telas de projeção ou telas de leds ou televisores espalhados pelo palco, ambientando o espaço da cena ao exibir detalhes de lugares, imagens dos personagens, cores, frases escritas e outros recursos visuais necessários à narrativa do espetáculo. Vale apontar que a nossa protagonista possui uma grande falha trágica: a impossibilidade de mudar sua fala. Assim, mesmo mudando de corpo Matilde mantém seu sotaque castelhano. Só assim poderemos identificá-la.



CENA 1 - RUA

(escuro; grito de mulher)

Projeção de caracteres:
-“É madrugada em Salvador.”
-“Noite suja, céu tristonho.”

(luz revela Adalberto Mulher)

ADALBERTO MULHER
Me ajude, por favor! Acredite... Eu sou homem! Meu nome é Adalberto. Esse corpo não é meu, essa mulher não sou eu! Roubaram meu corpo! Me ajude, por favor, me ajude!



CENA 2 – PALCO

CECÍLIA DE CAMPOS
Foi assim que conheci a mulher que se chamava Adalberto. Quando nos encontramos, achei que fosse mais uma vítima de assalto em mais uma madrugada da cidade, sabe como é, a cidade anda muito violenta. Ela estava num bruto estado de choque e demorei de entender o que tava acontecendo ali na minha frente: uma mulher desnorteada querendo me convencer que era homem. Confesso que aquilo tudo me deixou meio zonza e quando entendi tudo o que se passava, fui eu que entrei em estado de choque. Não acreditava no que tava vendo: ele dentro dela, e isso não era nenhuma cena de filme pornô, não era. Ele, Adalberto, se dava conta da realidade daquele momento: aquele corpo feminino agora era seu, seu eu masculino em choque com seu eu feminino, o macho preso na couraça fêmea, a mulher exalando aos poros. Adalberto agora era uma mulher. Bem, isso era o que ele dizia e eu acreditava nele. Concluí que o que tinha ocorrido com Adalberto era mais que um roubo, se tratava de um misterioso crime, uma delinqüência refinada... Resolvi ir com ele até a delegacia mais próxima, dar queixa à polícia. E foi assim que tudo começou: na delegacia.



CENA 3 - DELEGACIA

Projeção de caracteres:
-“554ª DP.”
-“Delegado Nogueira. Espírita e especialista em churrasco”

DELEGADO NOGUEIRA
Notei que quando a vítima chegou, ela se encontrava muito nervosa, em um estado psíquico bastante alterado, mas em até certo ponto comum, natural em vítimas de violência, não é verdade? Vejo isso todo dia e sei do que estou falando. De imediato, levantei a suspeita de que a mesma pudesse estar sob efeito de algum alucinógeno, coisa pesada, uma droga nova talvez, sabe como é, o povo inventa é coisa pra ficar doidão, não é verdade?



CENA 4 - DELEGACIA

(interrogatório)

ADALBERTO MULHER
Foi como eu disse, delegado, conheci ela na “Terça da Benção”, era uma gringa, tinha sotaque castelhano, espanhol...

DELEGADO NOGUEIRA
Era Espanhola?

ADALBERTO MULHER
Eu sei lá, doutor, talvez argentina, peruana, cubana, sei lá, não perguntei, não deu tempo...

DELEGADO NOGUEIRA
Como não deu tempo? Como não perguntou? Vai trepar e não pergunta o nome, nem de onde vem? Tá difícil de acreditar, mocinha!

ADALBERTO MULHER
Assim não, aí já é demais! Mocinha, não! Eu sou homem, doutor... já falei, eu sou um homem, porra!

DELEGADO NOGUEIRA
Vamos maneirar o palavreado aí, mocinha, quer dizer, meu senhor! Vamos manter a calma! Posso te prender por desacato à autoridade, fique você sabendo. É necessário que diga tudo como realmente aconteceu para que eu entenda tudo como realmente aconteceu. Parece lógico, não é verdade? Acho que a situação é nova pra todo mundo aqui! Se nem você entende o que tá acontecendo, imagine eu! Devagar com o andor! (muda tom) Prossiga.

ADALBERTO MULHER
Ela não falou muito... “te quiero, te desejo...” ah, doutor, nessas horas nem precisa falar muito, né? O doutor sabe disso.

DELEGADO NOGUEIRA
Sei não. Conta tudo.

ADALBERTO MULHER
Ela era atraente. O doutor pode ver pelo material aqui, não é de se jogar fora, não é mesmo? Veio toda dengosa pra cima do negão e não contei conversa, delegado. Não era a primeira gringa gostosa que eu pegava, já tava acostumado! Levei a lôra prum pernoite num hotelzinho barato aqui da Barroquinha.

DELEGADO NOGUEIRA
E como foi que a tal mulher trocou de corpo com o senhor? Em que momento o senhor percebeu que o delito tinha ocorrido?

ADALBERTO MULHER
Foi depois de um beijo.

DELEGADO NOGUEIRA
Um beijo?

ADALBERTO MULHER
A gente tava naquela hora... sabe como é?

DELEGADO NOGUEIRA
Sei não. Quero detalhes.

ADALBERTO MULHER
Ela por cima, naquele chamego todo... aí quando ela me beijou e eu senti algo estranho... alguma coisa dentro de mim...

DELEGADO NOGUEIRA
Hum.

ADALBERTO MULHER
Quando me dei conta, eu me vi nela e ela em mim! Tá entendendo, doutor? Eu era ela e ela era eu. Eu estava me vendo fora do meu corpo. Aí entrei em pânico!

DELEGADO NOGUEIRA
Compreensível!

ADALBERTO MULHER
Ainda tentei pedir explicação, saber o que tava acontecendo, o que era aquilo que ela tinha feito comigo... mas ela, já usando meu corpo, me deu um murro que me jogou no chão. Aí desmaiei e não vi mais nada.

DELEGADO NOGUEIRA
Bateu numa mulher indefesa? Que escrotidão!

ADALBERTO MULHER
Foi tudo muito rápido, seu delegado, muito rápido.

DELEGADO NOGUEIRA
Será que o senhor se lembra bem da cara dela? Poderia fazer pra nós uma descrição da meliante, um retrato-falado?

ADALBERTO MULHER
Pera aí, como assim?! Retrato-falado, doutor?! Tá de piada pro meu lado? Só pode ser! Ó o retrato-falado aqui, ó! O senhor não tá entendendo? Eu sou Adalberto! Esses peitos não são meus! Essa bunda não é minha! Esse não é meu cabelo! Eu não tenho xoxota! Eu sou negão, porra! Ai, meu Deus! Ela roubou meu corpo e a polícia tem que ir atrás dela, quer dizer dele, atrás de mim... Olha, eu faço pro senhor um retrato-falado de mim mesmo, doutor, coloca na internet... Ela tem que devolver! Ela tem que devolver! Eu quero meu corpo de volta! Eu quero meu corpo de volta! (perde o controle)

DELEGADO NOGUEIRA
Calma, madame, é... meu senhor! Calma! Tome um gole d´água, tome... imagino a sua dor. Não é fácil trocar de sexo.
ADALBERTO MULHER
Vou contar tudo de novo, doutor!

DELEGADO NOGUEIRA
Conta, conta...

ADALBERTO MULHER
Eu sou Adalberto, trabalho na prefeitura, pode perguntar, lá, doutor! Todos me conhecem. Liga pro Setor de Despachos e fala com o Geraldão, o Geraldão sabe quem eu sou. Pergunta por mim, pergunta pelo Adalberto Sucuri do Setor de Despachos!



CENA 5 – PREFEITURA/SETOR DE DESPACHOS

GERALDÃO (ao telefone)
Setor de despachos! Sim. Conheço, sim. Sim. Sim. Não! O quê? Ah? Como é? O Adalberto? Meu Deus! O mundo está perdido! O Adalberto Sucuri? Quem diria! (para fora) Gente, vocês não sabem da maior: o Adalberto virou mulher! Foi operada!



CENA 6 - DELEGACIA

DELEGADO NOGUEIRA
Resolvi então acreditar na história da vítima e enfim, tratá-la como vítima. Além do mais, um caso diferente sempre é bom pra animar o pessoal, não é verdade? Dá pra colocar em prática tudo que a gente aprendeu vendo os seriados americanos na tevê. Comuniquei imediatamente ao meu superior que imediatamente também informou ao seu superior e assim sucessivamente, porque nessas horas todo mundo tem que aparecer, não é verdade? Quando perguntaram minha opinião, fui sincero: coisa assim só poderia acontecer mesmo com alguém que trabalha no setor de despacho. Era coisa feita! Encosto! Subjugação de espírito ruim. Dei uns passes! Mas não adiantou nada! É. Se fosse coisa feita tava muito bem feita! O pessoal da Polícia Federal veio tomar conta do caso! Era coisa importante! Como nos seriados americanos. Igualzinho.



CENA 7 – PALCO

CECÍLIA DE CAMPOS
Na época eu era recém formada e trabalhava num jornal daqui da cidade. Escrevia notinhas de fofoca sobre artistas de tevê, políticos e sobre a grã-finagem alienada da cidade e do país. Afinal, mediocridade alimenta mediocridade. Não era bem isso que eu esperava da profissão, mas o salário pagava o aluguel da quitinete no 2 de Julho, onde eu ficava gastando o resto do meu tempo pensando o que fazer da minha vida. Mas isso é uma outra história. Levaram o Adalberto para o HGE, onde ficou internado com sintoma de surto psicótico e fui pra casa dormir, mas dormir não consegui! Esparramei os olhos na madrugada pesquisando na internet, tentando achar coisa parecida. E pasmem! Vi muitos casos semelhantes, milhares de coincidências. Seria possível? Vi que agora tudo se encaixava. Foi então que naquela noite, eu descobri que Adalberto era mais uma infeliz vítima de Matilde, la cambiadora de cuerpos.
CENA 8 – PALCO

(Música envolvente; HOMEM caminha do fundo do palco até o proscênio; sobre ele e nas telas projeções de notícias publicadas na mídia sobre Matilde; um clipe de imagens e sons de noticiários)

HOMEM/MATILDE
Eu sou Matilde, a cambiadora de corpos! Tudo que falam de mim por aí é uma completa invenção, é a mais pura mentira!



CENA 9 - PALCO

CECÍLIA DE CAMPOS
Escrevi a matéria que foi capa do jornal. O Redator-chefe gostou do meu trabalho, disse que meu texto era bom, que eu tinha talento; elogiou meu cabelo, me agarrou pela cintura e me chamou prum jantar. Imagina se eu iria jantar com aquele velho idiota e corrupto! Se ele queria me comer, ficou na vontade. Depois da minha matéria a mídia caiu matando. Quando se acha o filão, aí é que começa a carnificina. Matilde virou febre nos meios de comunicação e eu voltei para as ridículas notinhas de assuntos medíocres... Mas eu só pensava em uma única coisa: em uma maneira de conhecer Matilde.



CENA 10 – ESTÚDIO DE TELEJORNAL

(trilha sonora de edição extraordinária; na bancada)

ROSA MARIA
Vamos agora para Salvador, ao vivo, falar com a repórter Ana Júlia, direto da Secretaria de Segurança Pública. Vamos saber as últimas informações sobre os misteriosos crimes que estão assustando os moradores da capital baiana. Não é isso, Ana Júlia?

(projeção de Ana Júlia na rua em frente à Secretaria de Segurança Pública)

ANA JÚLIA – Boa noite, Rosa Maria. Realmente a situação por aqui até o momento está um pouco confusa, são muitas informações desencontradas sobre estes estranhos crimes que estão deixando em pânico os moradores daqui de Salvador. Mas, agora a pouco, falei pessoalmente com o Secretário Demóstenes Albuquerque que me garantiu que não há motivo para alarde, mas se trata realmente da criminosa paraguaia conhecida//




CENA 11 – ESTÚDIO DE TV/PROGRAMA DE DEBATE

(na bancada)

MEDIADOR
...agradecer a presença dos nossos convidados, hoje aqui, o padre Augusto Dourado, da paróquia de São Salvador; o Pastor Wellington Silva, da Igreja Só Jesus Salva; a Iyalorixá mãe Dedé do Terreiro do Candombá, do médium Hildo Nascimento do centro espírita Lar da Alvorecer, além do parapsicólogo Hector Stroker. O tema do “Oxe, Bahia!” de hoje é o caso que está abalando a cidade: Matilde: subjugação, encosto, possessão, poder da mente? O que a igreja católica acha disso, padre Augusto Dourado? Trata-se de um caso para o exorcismo?

PADRE
Bem, antes de tudo eu quero dizer que a igreja é contra//



CENA 12 – ESTÚDIO DE TV/PROGRAMA MUNDO-CÃO

(efeitos sonoros; imagens captadas ao vivo)

JOÃO PEDREIRA (exaltado)
Cadê? Mas, cadê o poder público que deixa uma coisa dessas acontecer?! Cadê? Agora taí, mais uma mãe de família que teve seu filho vítima dessa discrepância, desse aborto da natureza. Não é isso, Dona Filomena?

DONA FILOMENA
É isso, sim, seu Pedreira!

JOÃO PEDREIRA
A senhora tá triste, dona Filomena?

DONA FILOMENA
Tô sim, senhor, seu Pedreira!

JOÃO PEDREIRA
Vejam só a dor de uma mãe! Isso é de cortar o coração de qualquer um. Tudo por causa do descaso das autoridades desse país! Total desprezo pela população! Mas cadê os políticos que não fazem nada? Vamos trabalhar, cambada de vagabundos! Agora, é uma mãe que sofre... agora, o filho desta senhora endoidou e ela ainda vai ter que viver com o corpo de um estranho em sua própria casa... agora, ela vai ter chamar urubu de meu louro! Mas não foi por falta de aviso, não foi! Eu quebro o pau e mostro a cobra! Não sei se vocês se lembram! Tem a imagem aí, Agostinho? Eu falei aqui! Há muito tempo que eu venho alertando! Agora, taí! Olha só o estrondo que deu. Se tivessem me escutado! Mostra a imagem aí, Agostinho? O quê, não achou? Mas tem. Tem sim que eu falei, falei e vou falar mais, porque eu falo mesmo, por que eu não sou homem de ficar calado! Eu não tenho medo de desgraça de Matilde nenhuma, não! Falo na cara dela! Na cara da desgraçada! (se aproxima da câmera) É isso mesmo! Quer saber de uma coisa? Eu não tenho medo de você, não Matilde. Se tem vergonha na cara, apareça aqui! (muda tom) Mas agora, se você vai construir ou reformar, o melhor preço e produtos de qualidade você só encontra nas casas Pedreira! Lá//
CENA 13 - RUA

(jornalistas correm atrás do Prefeito)

REPÓRTERES
Prefeito, Prefeito... / uma palavrinha... uma palavrinha prefeito... / ei, não empurra... / já podemos dizer que Salvador... / Ai, tira a mão daí... ai, meu pé... Prefeito...

PREFEITO
Não há com o que se preocupar, está tudo sob controle e a população pode ficar tranqüila. A polícia federal está investigando com colaboração da Policia Paraguaia, já que se trata de uma fugitiva daquele país.

(chuva de perguntas)

PREFEITO
Sim, realmente, se trata de uma criminosa de extrema periculosidade! Pelo que disse o delegado responsável pelo caso, ela se apodera do corpo da vítima através do ato de beijar. É, isso mesmo, pela boca... depois do beijo a pessoa passa a viver no corpo de outra pessoa.

(chuva de perguntas)

PREFEITO
Ainda não sabemos ao certo o motivo dela ter vindo para Salvador. Vocês da imprensa já criaram milhares de suposições sobre isso, não é mesmo? Quando for capturada vamos todos perguntar para ela e aí saberemos de toda verdade. Estamos trabalhando para isso. Mas acho natural, todos querem vir para a Bahia. Vai ver, leu algum romance do Jorge Amado!

(chuva de perguntas)

PREFEITO
Não, o Carnaval não corre o risco de ser adiado de forma alguma, não há motivo para isso, mas proibiremos o beijo durante os dias de folia, é uma medida de segurança pública para coibir a ação da criminosa e o aumento de vítimas.

(chuva de perguntas)

PREFEITO
Sim... sim... é verdade...o sotaque castelhano é uma forma de identificá-la. Por isso, a prefeitura está colocando em quarentena todos os hispânicos que moram em Salvador e proibindo por tempo indeterminado a entrada de estrangeiros de origem latina.

(chuva de perguntas)

PREFEITO – Como? Se isso é xenofobia?

(chuva de perguntas)



CENA 14 – ESTÚDIO TV/PROGRAMA ESPORTIVO

JURANDIR
Mas que loucura, hein, Carlos Roberto! O que você tem a dizer sobre aquela falta do Klerberton pra cima do Robercleyde no BAVI de ontem? Ripa na chulipa no meio da grama, rapaz!

CARLOS ROBERTO
O povo endoidou, Jurandir. Liberou geral! O pior não foi a falta propriamente dita, mas o que aconteceu depois. Ningu¬ém entendeu nada quando o zagueiro Klerberton abraçou e beijou na boca do atacante do time adversário que ainda estava caído no gramado! Vou dizer uma coisa: a casa caiu pro lado dos dois jogadores! Cartão colorido pra eles, Jurandir!

JURANDIR
E tooooooooooda a torcida que lotava a Fonte Nova viu ao vivo-vo! Até o juiz tava de olho no lance! Vamos ver aí no replay, passssssa aí de novo.

(projeção das imagens do jogo)

JURANDIR
Até aí tudo bem, falta normal. Coisa do jogo. Mas depois... veja só... olha lá... olho no lance-ce!

CARLOS ROBERTO
Parece até que o Robercley gostou, Jurandir. Olha lá, agora é ele que tenta agarrar o Klerberton por trás.

JURANDIR
Em nota, a diretoria do clube disse que o jogador foi vítima de Matilde, a criminosa paraguaia que está foragida em Salvador.

CARLOS ROBERTO
Pra cima de quem, Jurandir? O que estes cartolas querem? Tão querendo esconder alfinete em cabeça de careca? Isso aí é a mais pura boiolice no futebol brasileiro. Mas quer saber de uma coisa? O que é que tem isso demais? Pior é partir pra cima pra brigar, concorda comigo, Jurandir? Tem que botar o sentimento pra fora! Gorduchinha entrando no meio da rede é Gol, não é mesmo, Jurandir?

JURANDIR
Bem... isso é você quem tá dizendo!



CENA 15 – ESTÚDIO TV/PREVISÃO DO TEMPO

(projeção de gráficos e mapas)

MULHER DO TEMPO
Tempo nublado. Matilde saiu de Encarnación, no departamento de Itapúa, sul do Paraguay. Subiu num ônibus passando por Sant Ignácio, San Juan Bautista e Paraguarí chegando enfim a capital Asunción. Pancadas de chuva e trovoada. Cometeu alguns crimes e cruzou o país até a Ciudad del Este. Chegando lá, estudou a umidade relativa do ar e atravessou a fronteira para o Brasil num ônibus de sacoleiros até a cidade de Cascavel. Pegou carona com caminhoneiros até Londrina e de lá vôou para a Bahia. Fortes ventos ao nordeste com escalas em Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Conchichina do Arenoso, Várzea do Judas, Potilândia, Guarinópolis, Caixa-pregos e Ubitubiranga... chegando enfim na cidade de Salvador. A previsão é que a temperatura continue subindo e as vítimas também. Até agora, mínima de 21, máxima de 48 vítimas.



CENA 16 - PALCO

(Imagens de Cecília e rostos de anônimos)

CECÍLIA DE CAMPOS
Será teus atos criminosos, um ato de amor? Você pode ter mil faces, ser infinitas pessoas se quiser, você sabe disso, Matilde; mas no fundo você também sabe que é apenas uma mulher, única e sozinha. Ninguém gosta de ser sozinha, Matilde? Todo mundo precisa de amigos e eu sei que você também. Mas quem lhe dará um ombro amigo? Quem lhe dará um abraço? Eu posso ser sua amiga, Matilde, se você quiser, eu posso ser tua amiga. (muda tom) Escrevi esse texto na semana seguinte. Deu um certo trabalho publicá-lo, pois o tal velho e corrupto editor-chefe achou piegas demais. E era mesmo. Mas eu sabia o que tava fazendo. Tive que convencê-lo e joguei todo o charme que eu tinha. Tudo pelo objetivo jornalístico, não foi assim que me ensinaram na universidade? Queria que Matilde lesse meu texto. E ela leu.



CENA 17 – REDAÇÃO JORNAL

(toca o telefone)

Projeção de caracteres:
“Redação. A Província”
“Escrevendo certo por linhas porcas”

CECÍLIA
Alô!... Alô!

MATILDE
É a senhorita Cecília?

CECÍLIA
Sim, é ela.

MATILDE
Muito bonitas tuas palavras. Sempre escreve com o coração, senhorita?

CECÍLIA
Quem é? Quem tá falando?


MATILDE
Uma amiga.

CECILIA (aparte)
O coração veio à boca! Era Matilde. Não sabia o que falar e apenas disse sim, sim, sim. E tive medo! Senti-me potencialmente vítima naquele momento. Marcamos um encontro e fui.



CENA 18 – ESTAÇÃO DA LAPA

Projeção de caracteres:
“Estação da Lapa. Calor de rachar miolos.”
“Comendo pérolas aos poucos”

CECÍLIA
Cheguei na hora marcada depois de cumprir todas as exigências feitas por ela. Fiquei próxima à escada rolante e enquanto esperava eu pensava que a curiosidade era a perdição e a glória. Foi quando um frio cortou a espinha com a voz rouca de um velho invadindo o ouvido.

VELHO/MATILDE
A senhorita tá esperando alguém?

CECILIA (aparte)
Não falar seu nome era uma das exigências. Por isso contive o impulso.

VELHO/MATILDE
Sim, sou eu. Muito prazer em conhecê-la, senhorita, Cecília. Pode me chamar de... (pega um documento no bolso) Clóvis Ribeiro dos Santos.

CECÍLIA
...

VELHO/MATILDE
Não precisa ter medo de um velho.

CECÍLIA (aparte)
E eu estava realmente com medo.

VELHO/MATILDE
Ninguém desconfiaria de um velho, não é mesmo, querida? Gostei do que escreveu. Pela primeira vez leio algo sobre mim que não me acusa.

CECÍLIA (aparte)
Reclamou que a imprensa inventava mentiras a seu respeito e acusou a mídia de estar entupida de pessoas que estão se lixando para os outros. Não discordei.

VELHO/MATILDE
Eles gostam quando o homem morde o cachorro, e eu estou cansada de ser o homem, com perdão do trocadilho. Tô indo muito rápida?

CECÍLIA
...

VELHO/MATILDE
Estás tão calada! É a emoção do primeiro encontro, eu entendo! Escreveu dizendo que gostaria de ser minha amiga, pois então aqui estou. Seremos grande amigas, tenho certeza disso, não é mesmo? Não foi isso que escreveu? Será que já não se pode mais confiar na imprensa? (riso cínico)

CECÍLIA
(aparte) Riu como se fosse uma piada. Não achei graça. Era tudo muito confuso e rápido e duvidei de ter feito a coisa certa. Era muito risco pouco calculado e eu sabia, e ela logo percebeu que eu sabia que ela sabia da minha ingenuidade e foi atravessando sua mão em minha cintura.

VELHO/MATILDE
Minha amiga! Preciso que me faça um favor, um favorzinho de amiga, proponho que façamos uma troca!

CECÍLIA (aparte)
Gelei por alguns segundos e me despedi daquele corpo que ainda era meu até ali e que eu sabia que iria perdê-lo. Já estava convencida em assumir a pele do velho suado que sorria para mim. Estranho sorriso. Poderia correr. Esperei o beijo.

VELHO/MATILDE
Calma, muita calma com a imaginação, senhorita.

CECÍLIA (aparte)
Devagar, com aquela voz rouca de velho, Matilde foi me contando o seu plano e como eu faria parte dele. Tinha que ir. Colocou a mão no bolso e me estendeu um cartão. Motel Cubanacan, quarto 13, tava escrito.

VELHO/MATILDE
Amanhã, às oito da noite, te espero. Lá eu lhe contarei toda verdade.



CENA 19 – PORTARIA DO MOTEL

Projeção de caracteres:
“Noite caliente no Motel Cubanacan”
“Agora Inês é Marta”

CECÍLIA
Fui de táxi. Não tinha onde enfiar a cara quando falei quarto 13. O rapaz da portaria do Motel me lançou um olhar malicioso e cínico.

PORTEIRO DO MOTEL
Pois não, madame! Suíte transamérica! De luxo!! Pode ir direto, madame, é o quinto da esquerda, tem errada não!

CECÍLIA
Bati na porta antes de abrir. O som tava alto e uma mulher, jovem e sozinha dançava ao ritmo dolente da guarânia. Quando me viu, acenou me convidando pra dançar.



CENA 20 – SUÍTE DE MOTEL

MULHER/MATILDE
Vem dançar, Cecília! Gosta de dançar?

CECÍLIA
Quem não gosta?

MULHER/MATILDE
O que quer beber?

CECÍLIA
Uma água, refrigerante.

MULHER/MATILDE
Que nada! Não tenha medo de você mesma, minha amiga. Sei que veio aqui a trabalho, mas pelo menos uma tacinha de vinho vai aceitar. Faço questão.

CECÍLIA
Não tenho como negar.

MULHER/MATILDE
Pode ir ligando o equipamento. Gosta de vinho tinto?

CECÍLIA
Gosto muito.

(Cecília liga a câmera; imagens projetadas ao vivo; Matilde entrega uma taça para Cecília)

MULHER/MATILDE
Um brinde à amizade!

(brindam)

MULHER/MATILDE
Foi corajosa em aceitar minha proposta.

CECÍLIA
Só acho que devo confiar em você.

MULHER/MATILDE
Fico grata, por isso. Não costuma ser assim, mas promessa é dívida! Pode acreditar em mim. Não vou fazer nada com você. (ri)

(a câmera enquadra Mulher/Matilde)

CECÍLIA
De quem é este corpo?

MULHER/MATILDE
De uma universitária que queria diversão! Os jovens são bem impulsivos e isso torna o trabalho mais fácil.

CECÍLIA
Qual sua idade?

MULHER/MATILDE
Não se deve perguntar a idade a uma Mulher. Tá gravando?

CECÍLIA
(aperta o play da câmera) Agora, sim.

MULHER/MATILDE
Bem, por onde devo começar?

CECÍLIA
Fale o seu nome, se apresente. Quem é você, Matilde?

MULHER/MATILDE
É... muito bem... Isso é difícil, né? Falar assim pra câmera... Não estou acostumada.

CECÍLIA
Fique a vontade. Seja você mesma.

MULHER/MATILDE
Isso é um pouco difícil! (ri) Mas vamos lá. Então... Eu sou Matilde! Sou aquela que todos procuram, mas ninguém quer encontrá-la. Sim, sou eu mesma. Claro que este corpo não é o meu e é exatamente por isso que a polícia anda atrás de mim.

CECÍLIA
Por que resolveu falar só agora?

MULHER/MATILDE
Primeiro, quero encontrar uma pessoa! Segundo, porque quero que todos conheçam a outra parte da história. Estou cansada do que andam inventando ao meu respeito. Não sou o que dizem.

CECÍLIA
Mas a imprensa só divulga os fatos.

MULHER/MATILDE
Não seja ingênua, minha amiga, você já deveria saber que a imprensa interpreta os fatos ao seu modo, querida. Os reinventam. Tudo é negócio, é troca, interesse...

CECÍLIA
E as milhares de vítimas? Elas são obrigadas a viver nos corpos de outros? Muitas de suas vítimas ficaram loucas por não agüentar viver assim. O que você tem a dizer sobre isso?

MULHER/MATILDE
Peço desculpas por tudo. Minha culpa, máxima culpa! Assumo meu erro. Mas a verdade é que não sou uma criminosa como dizem, apesar de fazer o que faço. Eu não sou o que falam de mim.

CECÍLIA
Quem é você, Matilde?

MULHER/MATILDE
Eu era. Era uma mulher como qualquer outra, com mercado pra fazer, contas pra pagar, aluguel, plano de saúde e almoço de família aos domingos e feriados... Mas essa mulher ficou no passado, ela já não existe mais.

CECÍLIA
Como foi que tudo começou? Quando foi que você descobriu que podia trocar de corpo com outra pessoa?

(projeção de imagens antigas de Matilde com a Família)

MULHER/MATILDE
Desde pequena já fazia isso com meus irmãos, pai, mãe... ninguém mais, só eles. Isso era um segredo nosso e era bom que fosse assim. Ninguém entenderia se soubesse, como não entendem até hoje! Eu era a única da família com esse poder. Pegava emprestado os corpos de meus irmãos, mas no final do dia sempre devolvia. Essa era a nossa diversão! Eles gostavam disso e vivíamos felizes assim. Era bom do jeito que era. Mas as histórias felizes um dia também terminam, não é mesmo?

CECÍLIA
Sim. Mas o que foi que aconteceu então pra você começar a fazer isso, a trocar de corpo com outras pessoas?

MULHER/MATILDE
Me apaixonei.

CECÍLIA
Então foi o amor que fez você entrar para o mundo do crime?

MULHER/MATILDE
Mais ou menos isso. Quer mais vinho?




CENA 21 – SALA/CASA BÁRBARA

(flashback; música latina romântica. Matilde e Bárbara no tapete da sala; garrafa de vinho, taças, CDs e livros espalhados pelo chão; Bárbara segura um livro e termina de recitar uma poesia.)

BÁRBARA
“...Porém essa boca
Na dor se desgasta
De lugar em lugar
Procurando o local
Para a casa perfeita
A maldição é vasta:
Também se sabe
Condenada a busca.”

MATILDE (suspira)
Lindo! De quem é?

BÁRBARA
Se chama “Reconoce La Mascara”, de Esteban Cabañas.

MATILDE
Adoro os poetas que falam de amor.

BÁRBARA
Pra mim os poetas falam de tudo, inclusive do amor. Ah, o amor é belo, o amor move... Amar é bom demais! Por isso é preciso sempre que se cante o amor, para que o amor dance ao sabor dos ventos. Amor gera amor já dizia algum poeta. (ri)

MATILDE
E a gente Bárbara? E o nosso amor? O que os poetas diriam?

BÁRBARA
Nós? Nós somos somente boas amigas, Matilde! Já falamos sobre isso, esqueceu?

(se abraçam; Matilde tenta beijar Bárbara)

BÁRBARA
Olha, Matilde. Tenho um carinho todo especial por você, de verdade, você sabe disso, você continua em meu coração, mas de uma forma diferente, um amor de amiga. Você entende? O que houve entre nós duas foi lindo, mas acabou.




CENA 22 – SUÍTE DE MOTEL

(continuação)

MATILDE
Não engoli aquele fora! Estava realmente apaixonada por Bárbara. Ela foi o grande amor de minha vida! Então, não conformada, passei a vigiá-la e logo descobri que ela estava namorando um pianista de Assunciòn. Álvaro Rodriguez, o nome dele. Foi aí que o ciúme cortou o peito.



CENA 23 – RUA

(flashback; Bárbara espera; chega Álvaro Rodriguez)

BÁRBARA
Amor!! O que houve? Vamos chegar atrasados pro concerto.

RODRIGUEZ/MATILDE
Estás linda!

BÁRBARA
Me arrumei pra você. Gostou? Agora vamos.

RODRIGUEZ/MATILDE
Espera. Me dá um beijo antes da gente ir.

(Rodriguez beija Bárbara)

BÁRBARA
Ai, o que é isso? Assim eu fico sem fôlego!

RODRIGUEZ/MATILDE
Saudade de seus beijos, Bárbara.

BÁRBARA
Saudade? Ai, calma, meu bem. O que houve? Você nunca me beijou assim?

RODRIGUEZ/MATILDE
E você não gosta?

BÁRBARA
Gosto! Mas... espera...você tá estranho... tá parecendo até uma outra pessoa.




CENA 24 – SUÍTE DE MOTEL

(continuação)

MATILDE
Assumi o corpo do tal pianista. O rapaz era talentoso e se eu não tivesse aparecido na vida dele, iria longe! Mas assim quis a história. No corpo daquele músico, passei com Bárbara noites maravilhosas... Mas ela logo desconfiou que o tal Rodriguez estava estranho demais: faltava aos concertos, não tocava mais... e foi aí que cometi um erro fatal de iniciante. Contei pra ela todo o meu segredo, me revelei, falei abertamente do meu poder e declarei novamente o meu amor por ela. Mas Bárbara não entendeu. Recomposta do susto, ela me esnobou mais uma vez. A partir daí, mergulhei num caminho sem volta. Passei a raptar o corpo de todos que Bárbara namorava... homens, mulheres... e não eram poucos! Foi então que eu perdi o controle. Um dia ela me denunciou pra polícia e agora anda fugindo de mim. Penso nela todos os dias e todos os meus dias eu penso em encontrá-la. Soube que ela veio para Bahia atrás de um namorado que conheceu pela internet e é por isso que estou aqui.



CENA 25 – SUÍTE DE MOTEL

(toca o celular)

CECÍLIA DE CAMPOS
Novamente ressaca. A boca seca. A cabeça gigante. O quarto gelado. O celular gritou na bolsa aberta no chão e eu na cama redonda. Era o corrupto editor-chefe me cobrando a matéria da reinauguração do poste da esquina. Dou qualquer desculpa, mas ele não engole. Estava sozinha. Um bilhete no travesseiro.

Projeção de caracteres:
“Adorei a nossa noite, tenha um belo dia. Não se preocupe, eu encontro você. Beijos, sua amiga”

CECÍLIA DE CAMPOS
Deixou uma flor e levou a fita com a gravação. Estava sozinha. A Boca seca. A cabeça gigante. O quarto gelado. Tem dias que é melhor amnésia. Mas eu me lembrava de tudo. Lembrava que fizemos confissões. Lembrava que falei do Carlinhos, meu ex, que ele tinha me deixado... que rimos de nossas desgraças e que bebemos mais e nos beijamos. Me lembrava de ter trocado de corpo com ela. Olhei pro espelho no teto e fiquei feliz em ver que eu ainda estava ali. Deve ter acontecido mais coisas, mais isso eu não queria lembrar. Vesti minha roupa amassada e saí a pé do motel.



CENA 26 – COMERCIAL DE TV

(imagens de TV shopping; rostos de pessoas ficando mais jovens;)

LOCUTORA – Seja uma outra pessoa! Com o poder de Belezura3000, você fica jovem de novo! Basta usar Belezura3000 três vezes ao dia e em menos de 30 dias você verá a transformação! Você será uma nova pessoa! Acredite! Belezura3000. Esse produto até Matilde vai querer usar! Compre já! Ligue agora//



CENA 27 – PROGRAMA DE TV

(vinheta do programa Pavão Show; aplausos)

GLÓRINHA PAVÃO
Boa noite auditório, lindo! Boa noite família brasileira! Boa noite para você que tá aí em casa nos assistindo, minhas fofuras do Brasil inteiro! Bem vindos ao Pavão Show desta noite, comigo mesma, a única, Glorinha Pavão. O programa de hoje tá show, gente! Não sai daí, não! Não mude de canal! Veja só o que vem por aí, de só uma olhadinha, espia só! (tempo) Cadê? Coloca aí! Tivemos um peque//

LOCUTOR
No Pavão Show de hoje você vai ver: “Vítima agradece à criminosa!”

VÍTIMA
É eu fiquei feliz, sim. Eu era uma coroa de 60 e estou agora num corpinho de 20. Claro que eu tenho que agradecer! Valeu, Matilde!

LOCUTOR
Você verá também: “Câmara decide leiloar cueca de deputado!” //



CENA 28 – TELEJORNAL/COMENTÁRIO POLÍTICO

(na bancada)

JORGE DE BRITTO
Aí está mais uma prova da ausência do poder público! Enquanto o governo e a oposição brigam por cargos e privilégios, a população fica completamente desamparada. Claro que eu não estou pedindo para polícia ter bola de cristal, mas a captura da criminosa está demorando mais do que era esperado pelo governo. A oposição não fala, mas gosta do embaraço. Já tem até deputado reunindo assinaturas para criação da CPI da Matilde. Ao invés de legislar, os nossos deputados e senadores ficam querendo ser polícia investigativa pra servir à jogatina política. Na Bahia, tem partido tirando proveito da situação. Andam dizendo até que ao invés da Bahia, Matilde poderia ter ido para Brasília, direto pro Congresso Nacional. Iria se assustar com tanto troca-troca de partido que até fugiria do país. (muda tom; para o lado) É, mas gari ela não beija, depois o preconceituoso sou.



CENA 29 – PROGRAMA DE ENTREVISTA

LARI
...e como é isso pra você Carlene Kristal, conta pra gente, como é que fica agora a sua carreira de estrela da axé-music depois desta fatalidade, depois de Matilde ter transformado você neste belo senhor de idade? Conta pra gente.

CARLENE KRYSTAL
Bem, antes de tudo, Lari, eu gostaria de tranqüilizar nossos foliões e dizer que o bloco “Vai quem quer” está confirmado para os quatro dias de folia.

LARI
Que lindo! E como é isso?

CARLENE KRYSTAL
Temos agora um novo patrocinador que acreditou no nosso potencial e vamos fazer o lançamento de uma nova marca de aparelho de barbear unissex.

LARI
Que lindo! Gente, a Bahia é linda! E essa sua nova música aí, que está bombando no “Iotubo”. Como foi isso? Conta pra gente.

CARLENE KRYSTAL
Ah, Lari, isso surgiu de uma brincadeira do Cegonha, nosso rodie! Uma brincadeira, sabe como é, aí bombou!

LARI
É sucesso total! Já tá na boca do povo, minha empregada não pára de cantar! Mas como é mesmo o nome da música?

CARLENE KRYSTAL
A música se chama: “Sou eu, eu mesma”.

LARI
Ah, que lindo! Dá uma palhinha pra gente!

CARLENE KRYSTAL
Claro que sim, mas você vai me desculpar porque hoje eu tô um pouco rouca... vou cantar à capela.

LARI
À capela é lindo! Uma estrela é sempre uma estrela, querida! Fica à vontade.

CARLENE KRISTAL (canta)
Ê, lê, lê, lê, lê, lê, lê
Oi, oi, oi, oi , oi, oi, oi
Ê, lê, lê, lê, lê, lê, lê
Oi, oi, oi, oi , oi, oi, oi
Sou eu,
Sou eu mesma //
CENA 30 - TELEJORNAL

(trecho da matéria)

PRESIDENTE
Nós da “Associação Vítimas de Matilde” estamos organizados e vamos reivindicar nossos direitos! Vamos invadir//



CENA 31 - TELEJORNAL

APRESENTADORA DE TV
Logo mais você vai ver o emocionante reencontro das vítimas de Matilde com seus antigos corpos! A alegria e a dor de milhares //



CENA 32 - PALCO

CECÍLIA DE CAMPOS
Mesmo amassada, fui direto pro trabalho. Mas antes, parei na padaria próxima ao jornal. O atendimento de lá é péssimo e a higiene idem. Mesmo assim tentei um pão com manteiga e um café preto. Foi quando um homem sentou ao meu lado e disse que precisava falar comigo, a sós. Ou era uma cantada ou um sinal de Matilde. Nem uma coisa nem outra. O cara era da polícia.



CENA 33 - RUA

(numa esquina)

POLICIAL
Então, mocinha. Vai entregar o jogo?

CECÍLIA
Que jogo? Não tô entendendo o que o senhor quer?

POLICIAL
Vamos direto ao ponto que eu não tenho tempo pra perder. Cadê ela?

CECÍLIA
Ela?

POLICIAL
Você sabe muito bem. Matilde.

CECÍLIA
O senhor tá enganado.

POLICIAL
Ouvimos a gravação telefônica, mocinha.

CECÍLIA
Que gravação?

POLICIAL
No jornal. Marcando um encontro na Lapa. Quem era?

CECÍLIA
Era uma entrevistada pra uma matéria sobre a quarentena de latinos em Salvador, justamente por causa desse caso.

POLICIAL
Não há matéria nenhuma. Já falei com o editor do jornal.

CECÍLIA
É uma matéria freelance, vou vender pra uma revista de circulação nacional.

POLICIAL
Quem é essa pessoa?

CECÍLIA
Não posso revelar minhas fontes.

POLICIAL
Com quem você estava na noite de ontem?

CECÍLIA
Estão me seguindo?

POLICIAL
É melhor colaborar, mocinha! Conta logo o que sabe. Pode pegar pra você também.

CECÍLIA
O senhor tem mais alguma pergunta?



CENA 34 – QUITINETE DE CECÍLIA

CECÍLIA
Desisti de ir pro jornal e fui direto pra casa. Estranhei a porta aberta e o som da tevê ligada. O apartamento tinha sido revirado e não parecia roubo. A tevê estava jogada no chão da sala e exibia mais um programa desses em que as pessoas emitem suas opiniões sobre tudo. Falavam sobre Matilde. Puro lixo especulativo. Invadiram meu apartamento. Fechei portas, janelas, cortinas e pensava em tudo que tinha ocorrido, na entrevista, sobre tudo o que ela falou. Fiquei pensando sobre seu amor por Bárbara e no que ela foi capaz. Como alguém poderia amar tanto? Resignei-me. Minha fase amorosa não andava tão amorosa assim. Pra não pensar em mim fico zapeando a tevê que continua largada no chão. Paro num programa religioso, um pastor inflamado faz a sessão de descarrego em uma vítima de Matilde. Muito bizarro. Não quis esperar o resultado e fui jogar uma água fria no corpo.



CENA 35 – QUITINETE DE CECÍLIA
(batidas na porta)

CECÍLIA
Carlinhos!

(Carlinhos entra)

CECÍLIA
Que surpresa! O que tu tá fazendo aqui?

CARLINHOS/MATILDE
Saudade!

(Carlinhos abraça Cecília)

CECÍLIA
Olha, Carlinhos, não é bem assim... você não pode...

CARLINHOS/MATILDE
Eu te amo, Cecília!

(se beijam)

CECÍLIA
Carlinhos... você parece... É você, Matilde?

CARLINHOS/MATILDE
Surpresa!!

CECÍLIA
Matilde! E o Carlinhos? O que você fez...

CARLINHOS/MATILDE
Ele não valia nada mesmo! Foi atrás da primeira sirigaita que passou e acabou virando uma!

(riem)

CECÍLIA
Estamos correndo perigo. Fui interrogada por um policial e invadiram minha casa.

CARLINHOS/MATILDE
Vamos concluir logo a entrevista. Tenho ainda algumas coisas pra falar. Hoje será nosso último encontro. Depois daqui, você vende a matéria para uma grande emissora e eu sigo minha estrada.

CECÍLIA
E pra onde vai?

CARLINHOS/MATILDE
Voltar pra casa.

CECÍLIA
Desistiu de procurar por Bárbara?

CARLINHOS/MATILDE
Vi que a causa não era tão nobre assim. A galinha da Bárbara não merece tanto. Você me fez ver isso.

CECÍLIA
Fico feliz por você!

CARLINHOS/MATILDE
E nesta casa não tem nenhum vinho pra gente comemorar!?



CENA 36 - PALCO

CECÍLIA DE CAMPOS
A vida é bela, pero no mucho. Matilde lamentou por todas as vítimas, pediu desculpas e chorou, mas não muito. Ela mesma estava condenada a carregar a carcaça de outro, lembrou que seu verdadeiro corpo tinha ficado com seu primo que endoideceu e morreu. – Assim é a vida! Disse ela. Vendi a matéria inédita para uma grande emissora, o que me rendeu um bom trocado. Claro que larguei o jornaleco e me livrei das tais cantadas escrotas do sem-escrúpulos editor-chefe. Os ataques de Matilde cessaram e a cidade voltou à sua mediocridade. A mídia logo conseguiu outro homem que mordeu o cachorro e nunca mais o mundo ouviu falar de Matilde.



CENA 37 - PALCO

(música; projeção de imagens: rostos de diversas pessoas, homens, mulheres, crianças e palavras; fotos caseiras de Matilde e Cecília em Madrid; Matilde entra e encontra Cecília)

CECÍLIA
Hoje, Matilde se chama Beatriz Consuela e tem passaporte espanhol. Vive em Madrid, onde estuda física quântica e joga tarô.

MATILDE
Moramos juntas numa linda casa na Calle de Serrano onde Cecília tem um pequeno estúdio fotográfico. Estamos muito felizes.

CECÍLIA
Temos um poodle e pensamos até em adotar uma criança no futuro.

MATILDE
Mas como eu digo, a vida é bela, pero no mucho.

CECÍLIA
Enquanto isso, milhares de vítimas de Matilde estão espalhadas pela América do Sul e continuam vivendo com seus corpos trocados.


(se beijam; sobe música; projeção com a pergunta: “Fim?”)


FIM DE
“MATILDE, LA CAMBIADORA DE CUERPOS”

Autor:
Fábio Espírito Santo
fabioespiritosanto@gmail.com

Brasil - 2010





Biografia:
Fábio Espírito Santo é diretor, dramaturgo, roteirista e iluminador cênico. Formado em Comunicação Social – Cinema e Vídeo, tem especialização em Roteiros para Audiovisual. Como dramaturgo, é premiado pelo texto A Farsa da Usura, no Concurso Nacional de Dramaturgia Álvaro de Carvalho/SC.1998. É também de sua autoria a comédia Matilde, La Cambiadora de Cuerpos e o infantojuvenil Sem Pé Nem Cabeça, entre outras obras desenvolvidas em parceria. Assinou a direção artística do concerto/DVD “Yèyè Omó Ejá – Mãe das águas” (2010), e dirigiu os espetáculos Sobre Flores no Asfalto Quente (2009); o circense Histórias Contadas de Cima (2008); a comédia Divorciadas, Evangélicas e Vegetarianas (2005); o musical infantil Do Outro Lado do Mundo (1999); e o espetáculo de rua Quem Não Tem Cão Casa com Gato (1996). Na área da iluminação cênica, recebeu o troféu Braskem de Teatro/2008 pelo seu trabalho nos espetáculos: O Olhar Inventa o Mundo, Batata e Casa Número Nada. No campo do audiovisual, trabalhou como roteirista e diretor de filmes educativos e institucionais. Entre seus trabalhos de ficção, destacam-se o curta-metragem Cabidela (2006) e Onde está Lynch? (2002) vídeo premiado em festivais de Santa Maria (RS) e Rio de Janeiro (VídeVideo/RJ). Trabalhou na elaboração e coordenação de projetos culturais como Diretor do Teatro Vila Velha (2008/2009); como repórter do Correio da Bahia e diretor técnico de eventos e casas de espetáculos. Contato: fabioespiritosanto@gmail.com
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