Quanta morbidez na conversa destas duas comadres de uma cidadezinha interiorana. Apenas acabara de passar a procissão de “Maria” daquele treze de maio, Santina e sua comadre Geralda puseram-se a conversar. Falavam de uma espécie de enquete do tipo: "Gostaria de saber: se eu morresse hoje, como os outros reagiriam?"
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E a comadre Geralda pôs-se a lamentar o fato de que já não mais ocorriam óbitos naquela cidade. E que o seu marido Cireneu, dono da única funerária do lugar, vivia a cochilar escorado nos ataúdes funerários que fabricava e, como se não bastassem os enterros de pobres infelizes em redes, feito indigentes, a prefeitura mandara fazer um caixão para uso comum que se encontrava guardado no cemitério, à disposição de quem o necessitasse. A situação na sua casa estava preta uma vez pobre nenhum precisava mais tirar da goela para enterrar os seus mortos, era só usar o caixão "das almas". Os ricos não morriam, tinham dinheiro para se tratar. E, quando morriam, as famílias refugavam caixões de encomenda, mandavam buscar os ricos ataúdes de luxo na capital.
_Virgem santíssima, credo! _ Santina se benzeu _ Também, os meios de vida de vocês, comadre Geralda! ... O marido faz caixões de defunto, o irmão é coveiro de cemitério... Não me queira mal, minha comadre, mas é de arrepiar.
A outra teve que admitir que a sua família era mesmo de tamanho infortúnio que de nada adiantaria que ela se matasse para ajudá-los porque não lhes traria lucro algum. Corvino não iria cobrar do cunhado para enterrar a própria irmã, este por sua vez, não iria vender caixão para o sogro para enterrar a própria esposa.
Para não tornar ainda mais longa aquela história, Santina resolveu interferir, voltando ao assunto da enquete. Ela deixava bem clara a sua obsessão em saber como seria a reação dos outros com a notícia de sua morte, se reagiriam com indiferença ou tristeza. Para saber isso só tinha um jeito. E ela lançou o seu plano mirabolantemente funesto para Geralda: iria fingir-se de morta, com o perdão da Virgem no seu dia santo. Pagando para ver a confusão que tal astúcia iria causar, a outra logo se prontificou em ajudá-la, ela comunicaria a vizinhança, a morte brusca da comadre. Esta, agradecendo a ajuda da outra, foi tratando de abrir uma esteira no meio da sala de estar. Pegou um resto de uma vela em cima de uma mesa e pediu que a outra acendesse, e estirou-se sobre a esteira.
_ Pronto! Põe a vela aqui na cabeceira.
Concluído o início do plano maluco, Geralda correu até a janela aos berros:
_ Socorro! Socorro! A comadre Santina teve um troço e caiu mortinha!
Em pouquíssimo tempo os curiosos invadiram a casa e os comentários diversificavam-se: "Ela era gente tão boa", dizia uma mulher. "Uma santa mulher", afirmava outra a chorar. Mas havia os desencontros afetivos: "Isso lá prestava? Ficou me devendo um corte de cabelos". "Uma mão de porco. É o que ela era", sussurravam descaradamente. "Já não era sem tempo!", falava o coveiro com ar de vingança, por cima da janela, para a irmã. A outra olhou para a comadre lá quieta e até esperou que ela levantasse nesse momento mas, nada. Então bateu a janela na cara de Corvino:
_Te esconjuro, papa defuntos! Nem àquela a quem um dia disseste amar, tu poupas?_ A irmã desabafou em boa altura.
_Vai dizer que você não está interessada em vender o paletó-de-madeira feito pelo teu marido, minha querida irmanzinha!? – Ouviu-se a voz de Corvino em tom de desabafo maldoso.
Ele saiu no seu trajar pardacento de poeira, rumava para o cemitério, de semblante fechado, não se sabe se era de tristeza ou cansaço.
Talvez este sepultamento em especial tivesse um sabor de vingança para Corvino que não conseguia perdoar o fato de Santina ter preferido morrer solteira a casar-se com um homem como ele, somente porque exercia a profissão de coveiro. Mas... se a sorte não lhe trouxera pretendente melhor!?
Uma vizinha chegou com uma mortalha que guardava pronta em casa para quando chegasse a sua hora, mas que não fazia qualquer objeção em doá-la a quem precisasse primeiro. Geralda tomou a frente, pediu a evacuação da casa. Ela mesma vestiria Santina, e afirmava ser um desejo da falecida que ninguém mais a visse sem roupas. Logo que ficou só, correu até Santina e foi perguntando em voz baixa:
_ Então, comadre, não vai levantar?
_ Estou com vergonha, mulher. É tanta gente ai fora! Estou mortinha de vergonha.
_ Tem nada não, diz que foi só um passamento.
Por infelicidade, talvez, batidas estridentes à janela cortaram o cochicho das duas. Era o marido de Geralda que chegava com uma novidade:
_ Geralda! Sou eu, Cirineu. Já terminasse de vestir a defunta? Eu já trouxe o caixão, o Prefeito fez questão de doar um novinho, afinal trata-se da sua mais fiel cabo eleitoral. E tem mais, o homem escolheu o caixão mais caro e ainda pagou um pouco mais pela adaptação de um retângulo vermelho com a estrela do PT; o seu partido político, que me mandou emoldurar na tampa do caixão. A melhor!? Pagou na folha!
_ Credo, comadre Geralda! Por essa eu não esperava. _ Cochichou a pobre mulher que via na doação do Prefeito a verdadeira glória, tamanho era o seu fanatismo partidário. _ Que coração o prefeito tem, mas agora tenho que levantar-me.
_ Não! _ A outra depositou de toda a força nos dois braços sobre os ombros da suposta morta para mantê-la deitada. _ Você vai ter coragem de encarar toda esta gente ai fora?
_ Oxente! E eu vou me deixar enterrar viva, é? Digo que foi só um desmaio e que tornei...
_ E eu conto toda a verdade. Digo que você estava blefando... E quis por a todos de idiotas!
Diante da ameaça de Geralda, Santina sofreu um terrível choque, jamais esperaria da outra uma traição assim. Sentiu o sangue gelar-lhe, a língua esquentava ao mesmo tempo em que estrelinhas faiscavam à sua frente. Teve uma síncope. Quando Cirineu lhe pôs a mão, sentiu-lhe uma pulsação fraca.
_ Oxente, Geralda! A mulher ainda tá viva!?
_ Fala baixo, homem. Alguém poderá te ouvir. Vamos enterrá-la logo!
_ Mas... Isso é crime. _ Cirineu ponderou com a esposa.
_ Crime é a gente passar fome. Esta é a chance de ganharmos esse dinheiro _ ajuntou a mulher. _ Pois veja! A comadre é devota de Nossa Senhora e fez questão de ser sepultada ainda hoje, o dia da Santa. E como são quase cinco horas da tarde... Temos que apressar o enterro.
Diante das circunstâncias, o marido viu-se forçado a concordar com os planos da mulher. Quando o serviço funeral foi concluído, o crepúsculo de um ouro-gema e um azul-esmaecido cedia lugar à escuridão da noite.
Corvino, como um espectro, era o único ser vivo àquela hora junto à sepultura de sua amada Santina. Quem sabe por diligência da providência divina...
De repente, num ato de insanidade, pegou a pá e começou a retirar a areia que ele mesmo ajudara a colocar minutos antes sobre a sepultura. Mas, ao arranhar com a pá a tampa do ataúde, viera-lhe uma repentina indecisão: Valeria a pena violar aquela sepultura, o que seria um sacrilégio, somente para olhar pela última vez a sua amada, fria e branca como cera?
Ele estacou indeciso.
Natal/RN 1997
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