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A Falsa Morta
Paulo Sena

Resumo:
A partir de uma curiosidade entre duas comadres, surge a oportunidade para um delito. Um complô em família contribui para que Santina seja tida como morta e enterrada viva.

Quanta morbidez na conversa destas duas comadres de uma cidadezinha interiorana. Apenas acabara de passar a procissão de “Maria” daquele treze de maio, Santina e sua comadre Geralda puseram-se a conversar. Falavam de uma espécie de enquete do tipo: "Gostaria de saber: se eu morresse hoje, como os outros reagiriam?"
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E a comadre Geralda pôs-se a lamentar o fato de que já não mais ocorriam óbitos naquela cidade. E que o seu marido Cireneu, dono da única funerária do lugar, vivia a cochilar escorado nos ataúdes funerários que fabricava e, como se não bastassem os enterros de pobres infelizes em redes, feito indigentes, a prefeitura mandara fazer um caixão para uso comum que se encontrava guardado no cemitério, à disposição de quem o necessitasse. A situação na sua casa estava preta uma vez pobre nenhum precisava mais tirar da goela para enterrar os seus mortos, era só usar o caixão "das almas". Os ricos não morriam, tinham dinheiro para se tratar. E, quando morriam, as famílias refugavam caixões de encomenda, mandavam buscar os ricos ataúdes de luxo na capital.
_Virgem santíssima, credo! _ Santina se benzeu _ Também, os meios de vida de vocês, comadre Geralda! ... O marido faz caixões de defunto, o irmão é coveiro de cemitério... Não me queira mal, minha comadre, mas é de arrepiar.
A outra teve que admitir que a sua família era mesmo de tamanho infortúnio que de nada adiantaria que ela se matasse para ajudá-los porque não lhes traria lucro algum. Corvino não iria cobrar do cunhado para enterrar a própria irmã, este por sua vez, não iria vender caixão para o sogro para enterrar a própria esposa.
Para não tornar ainda mais longa aquela história, Santina resolveu interferir, voltando ao assunto da enquete. Ela deixava bem clara a sua obsessão em saber como seria a reação dos outros com a notícia de sua morte, se reagiriam com indiferença ou tristeza. Para saber isso só tinha um jeito. E ela lançou o seu plano mirabolantemente funesto para Geralda: iria fingir-se de morta, com o perdão da Virgem no seu dia santo. Pagando para ver a confusão que tal astúcia iria causar, a outra logo se prontificou em ajudá-la, ela comunicaria a vizinhança, a morte brusca da comadre. Esta, agradecendo a ajuda da outra, foi tratando de abrir uma esteira no meio da sala de estar. Pegou um resto de uma vela em cima de uma mesa e pediu que a outra acendesse, e estirou-se sobre a esteira.
_ Pronto! Põe a vela aqui na cabeceira.
Concluído o início do plano maluco, Geralda correu até a janela aos berros:
_ Socorro! Socorro! A comadre Santina teve um troço e caiu mortinha!
Em pouquíssimo tempo os curiosos invadiram a casa e os comentários diversificavam-se: "Ela era gente tão boa", dizia uma mulher. "Uma santa mulher", afirmava outra a chorar. Mas havia os desencontros afetivos: "Isso lá prestava? Ficou me devendo um corte de cabelos". "Uma mão de porco. É o que ela era", sussurravam descaradamente. "Já não era sem tempo!", falava o coveiro com ar de vingança, por cima da janela, para a irmã. A outra olhou para a comadre lá quieta e até esperou que ela levantasse nesse momento mas, nada. Então bateu a janela na cara de Corvino:
_Te esconjuro, papa defuntos! Nem àquela a quem um dia disseste amar, tu poupas?_ A irmã desabafou em boa altura.
_Vai dizer que você não está interessada em vender o paletó-de-madeira feito pelo teu marido, minha querida irmanzinha!? – Ouviu-se a voz de Corvino em tom de desabafo maldoso.
Ele saiu no seu trajar pardacento de poeira, rumava para o cemitério, de semblante fechado, não se sabe se era de tristeza ou cansaço.
Talvez este sepultamento em especial tivesse um sabor de vingança para Corvino que não conseguia perdoar o fato de Santina ter preferido morrer solteira a casar-se com um homem como ele, somente porque exercia a profissão de coveiro. Mas... se a sorte não lhe trouxera pretendente melhor!?
Uma vizinha chegou com uma mortalha que guardava pronta em casa para quando chegasse a sua hora, mas que não fazia qualquer objeção em doá-la a quem precisasse primeiro. Geralda tomou a frente, pediu a evacuação da casa. Ela mesma vestiria Santina, e afirmava ser um desejo da falecida que ninguém mais a visse sem roupas. Logo que ficou só, correu até Santina e foi perguntando em voz baixa:
_ Então, comadre, não vai levantar?
_ Estou com vergonha, mulher. É tanta gente ai fora! Estou mortinha de vergonha.
_ Tem nada não, diz que foi só um passamento.
Por infelicidade, talvez, batidas estridentes à janela cortaram o cochicho das duas. Era o marido de Geralda que chegava com uma novidade:
_ Geralda! Sou eu, Cirineu. Já terminasse de vestir a defunta? Eu já trouxe o caixão, o Prefeito fez questão de doar um novinho, afinal trata-se da sua mais fiel cabo eleitoral. E tem mais, o homem escolheu o caixão mais caro e ainda pagou um pouco mais pela adaptação de um retângulo vermelho com a estrela do PT; o seu partido político, que me mandou emoldurar na tampa do caixão. A melhor!? Pagou na folha!
_ Credo, comadre Geralda! Por essa eu não esperava. _ Cochichou a pobre mulher que via na doação do Prefeito a verdadeira glória, tamanho era o seu fanatismo partidário. _ Que coração o prefeito tem, mas agora tenho que levantar-me.
_ Não! _ A outra depositou de toda a força nos dois braços sobre os ombros da suposta morta para mantê-la deitada. _ Você vai ter coragem de encarar toda esta gente ai fora?
_ Oxente! E eu vou me deixar enterrar viva, é? Digo que foi só um desmaio e que tornei...
_ E eu conto toda a verdade. Digo que você estava blefando... E quis por a todos de idiotas!
   Diante da ameaça de Geralda, Santina sofreu um terrível choque, jamais esperaria da outra uma traição assim. Sentiu o sangue gelar-lhe, a língua esquentava ao mesmo tempo em que estrelinhas faiscavam à sua frente. Teve uma síncope. Quando Cirineu lhe pôs a mão, sentiu-lhe uma pulsação fraca.
_ Oxente, Geralda! A mulher ainda tá viva!?
_ Fala baixo, homem. Alguém poderá te ouvir. Vamos enterrá-la logo!
_ Mas... Isso é crime. _ Cirineu ponderou com a esposa.
_ Crime é a gente passar fome. Esta é a chance de ganharmos esse dinheiro _ ajuntou a mulher. _ Pois veja! A comadre é devota de Nossa Senhora e fez questão de ser sepultada ainda hoje, o dia da Santa. E como são quase cinco horas da tarde... Temos que apressar o enterro.
Diante das circunstâncias, o marido viu-se forçado a concordar com os planos da mulher. Quando o serviço funeral foi concluído, o crepúsculo de um ouro-gema e um azul-esmaecido cedia lugar à escuridão da noite.
Corvino, como um espectro, era o único ser vivo àquela hora junto à sepultura de sua amada Santina. Quem sabe por diligência da providência divina...
De repente, num ato de insanidade, pegou a pá e começou a retirar a areia que ele mesmo ajudara a colocar minutos antes sobre a sepultura. Mas, ao arranhar com a pá a tampa do ataúde, viera-lhe uma repentina indecisão: Valeria a pena violar aquela sepultura, o que seria um sacrilégio, somente para olhar pela última vez a sua amada, fria e branca como cera?
Ele estacou indeciso.
                                                    Natal/RN 1997


Biografia:
Paulo Reginaldo Sena, residente em Natal, RN,é graduado em Letras pela UFRN. Tem um conto publicado pela Komedi (O rapaz do Pau Queimado e a moça do Tanque Tapado), escolhido pelo concurso de conto Machado de Assis, promovido no momento das atividades do III Festival de Inverno de Educação de Itajubá Tecnópolis, MG, realizado em agosto de 2000.
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Outros títulos do mesmo autor

Contos A BOTIJA Paulo Sena
Contos A Falsa Morta Paulo Sena
Contos A Primeira Estrela Paulo Sena


Publicações de número 1 até 3 de um total de 3.


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