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Sim, pode apagar a luz
Tino Nenhures

Era uma vez...
          Era assim que começava a maioria das histórias que Papai contava para ele, levando-o à uma infinidade de lugares e metendo-o numa porção de aventuras, com personagens bravos e destemidos; e enquanto ali, olhando de dentro de um pijama para o teto de seu quarto pintado de um céu noturno com uma lua cheia sitiada de estrelas – o céu de Nárnia, como ele gostava de pensar e ao qual mais tarde pedira que Papai adicionasse o Náutilus do Capitão Nemo, que, levando em conta a incongruência, ficara fantástico – a escutar a voz pausada de Papai, Ben se sentia como um deles, o espírito inundado de valentia e certeza, certeza de ser invencível. No entanto quando Papai fechava o livro e o deixava, sozinho com seu único abajur – evoluíra de dois para um, e antes disso passara, talvez, pelo seu maior teste de coragem, até ali (pelo menos para Papai era assim): abdicara-se da lâmpada, sua fiel companheira fluorescente por tanto tempo –, isso se esvaía, e ele voltava a ser apenas Benjamin Borges, de 5 anos, puxando o cobertor até o queixo, apertando intensamente os olhos e ao mesmo tempo arregalando-os, esperando pela Coisa no teto.
          A Coisa no teto era o motivo de ele e Papai irem à cidade naquele dia, um sábado ensolarado mas frio o bastante para que Ben vestisse, animado, seu casaco do Sherlock Holmes (uma peça preta que descia-lhe até as panturrilhas e cuja gola, levantada, como ele gostava de usar, ocultava-lhe metade das orelhas), o qual ele tivera apenas duas oportunidades de usar desde que o ganhara de Mamãe, no inverno passado, que por sua vez foi mais tediosamente quente do que a princípio se imaginava, algo que vinha se tornando cada vez mais comum, como Papai mesmo dizia e por vezes completava, ao chegar em casa folgando agoniado o colarinho e correndo com o suor porejando na testa para o ar-condicionado, que não restava dúvida, aquele era mesmo o fim dos tempos.
          A loja se chamava Planeta dos Brinquedos – pintado à grandes letras coloridas na fachada, por entre as quais se espalhava um bocado de animais fofinhos, sentados, de pé, debruçados, deitados, fazendo cambalhotas, como se elas fossem um parque de diversões – e ficava defronte para a Barbearia Lô, onde Papai aproveitara a viagem para cortar o cabelo. Ben adorava ver Papai cortar o cabelo; ficava lá, sentado tomando um refrigerante (enquanto todo o resto tomava cerveja e café... ele odiava café... e conversava sobre assuntos banais), as pernas balançando num vai-e-vem equilibrado por sobre a borda do banco acolchoado, absorto na cena: o velho Lô manejando a tesoura e o pente com suas mãos dançantes e cheias daquelas manchinhas marrons que todo velho parecia ter (Vovô Saulo tinha um monte delas na cabeça, o que fazia seu cocuruto parecer o casco de uma tartaruga), que Mamãe lhe dissera se chamar "manchas sanis"; Papai sentado ereto diante do espelho, embrulhado no longo manto preto que lhe descia dos ombros até os tornozelos como o de um sinistro bruxo das trevas, o olhar sereno fitando o próprio reflexo, como se olhasse e enxergasse muito além dele – provavelmente pensando nalguma outra história, Ben imaginava.
          Aquela era a terceira vez que Ben ia à Planeta dos Brinquedos. Na primeira ele comprara um caixinha de "Presas Drácula", que continha três chapas com os afiados caninos do temível Conde, uma vermelha e duas brancas, com as quais ele, Mamãe e Papai brincavam de "Guerra Vampira"; ele (o-pequeno-primogênito-cujo-ego-cresceu-e-quer-ser-Senhor-antes-do-tempo) ficara com a vermelha e Mamãe (a-Condessa-que-trama-livrar-se-do-filho-e-de-seu-senhor-e-tornar-se-assim-Senhora-da-Noite) e Papai (o-Terrível-Conde-Drácula-que-jamais-perderá-seu-título-de-Senhor-das-Trevas) com as brancas, mas Mamãe logo desistira da brincadeira, porque as chapas, ela dizia, faziam-na babar feito um buldogue velho. E ainda àquela vez, ele comprara um kit especial Yu-Gi-Oh!, que vinha com um deck, uma plataforma para cartas e um disco de duelo, tudo exatamente como no anime (Yu-Gi-Oh! era um dos poucos desenhos que Papai deixava-o assistir, porque dizia que televisão deixava as pessoas burras e, portanto, ele, Benjamin Borges, podia apostar, não iria querer ser uma pessoa burra, de jeito nenhum). Na segunda, que era seu aniversário de 4 anos, ele topara com um incrível jogo de tabuleiro cujo plano era o mapa da terra de Nárnia, sobre o qual você avançava com qual dos personagens dos livros escolhesse, os irmãos Pevensie, o príncipe Caspian, Eustáquio, Digory, Bri e Shasta, Ripchip, o rato, todos entalhados em madeira, e o tomara para si, juntamente com aquilo que vinha doido para adquirir o ano inteiro: um uniforme de cowboy, igualzinho ao do bravo Tex, seu herói de todos os tempos dos quadrinhos – que levá-lo-ia a se tornar, especialmente e assim como Papai, um contador de histórias do fabuloso mundo Westerns –, com direto a revólveres – que, é claro, eram de água – e tudo.
          Mas desta vez Papai o levara até ali para expulsarem a Coisa no teto, e eles já tinham a solução pra isso.
          “Capa da invisibilidade?”, repetiu, visivelmente embaraçada, a atendente que viera até eles assim que a sineta tocou ao passarem pela porta. Ela tinha o rosto infestado de sardas e os cabelos ruivos, cor de cenoura, repartidos em maria-chiquinha, o que fazia-a parecer mais uma menininha da sua idade do que uma adulta, pensou Ben.
          “É”, ratificou Papai muito naturalmente. “Como a do Harry Potter.”
          A moça olhou de Papai para ele, depois dele para Papai novamente, a boca aberta de um modo como se fosse bocejar mas tivesse abruptamente desistido no caminho, e disse, por fim, como se de repente tudo lhe parecesse muito claro:
          “Ah, é claro! Venha, Ben, por aqui”. E pegou na sua mão para guiá-lo.
          Enquanto caminhava de mãos dadas com ela pela loja abarrotada, Ben sentiu-se como se estivesse mesmo com alguém da sua idade, alguém com quem caminhava para brincar. Papai os seguia logo atrás, com ar divertido.
          A atendente os levou até uma sala com decoração medieval, à qual se chegava por um arco largo e baixo, sob o qual Papai tivera de abaixar a cabeça para passar. Havia duas grandes arcas ali, entre duas armaduras em tamanho real, nas quais Papai caberia facilmente, julgou Ben. A moça abaixou-se sobre uma delas e escarafunchou ali por um momento, até se erguer e desdobrar num floreio, como se fizesse um truque de mágica, uma capa cinzenta, parecendo muito velha e usada, embora não o fosse.
          Ben a adorou imediatamente, é claro. Não esperava nada polido nem brilhante, e se a moça tivesse arrancado da arca algo assim, ele teria rapidamente contraído o rosto numa careta, decepcionado e naturalmente desconfiado. As histórias lhe ensinaram que as coisas aparentemente velhas, surradas, eram sempre as mais eficazes e prudentes, de um modo ou de outro.
          “Uau!”, fez ele uma vez fora da sala, defronte para o mesmo espelho onde, mais ou menos um ano atrás, ele se avaliara com seus revólveres, suas botas e seu chapéu de cowboy (‘Hey, forasteiro, pode ir batendo botas daqui... Quem sou eu? Hã hã, eu sou o xerife Borges, e esta é minha cidade.’)
          A moça e Papai se entreolharam e sorriram; Ben relanceou a cabeça na sua direção e disse, frustrado:
          “Mas, Papai, eu ainda consigo me ver.”
          Papai se ajoelhou ao seu lado e puxou o fundo capuz até sua cabeça, que eficazmente turvou seu rosto de sombras.
          “Agora feche os olhos”, ele disse para seu reflexo.
          “Ainda se vê?”
          “Não, mas...”
          “E como se sente agora, Ben? Sente-se seguro?”
          Ele levou um segundo para responder; então, sorrindo:
          “Hum... sim! É, me sinto seguro, Papai.”
          “Isso é o que o torna invisível, Ben, portanto.”
          Ele permaneceu de olhos fechados ainda um tempo, então jogou o capuz para trás e tornou a contemplar seu reflexo. Puxa!, estava mesmo parecido com Harry Potter. Apesar disso, Ben não queira se parecer com Harry Potter, tampouco fazia questão disso. Queria ser mesmo era como Pedrinho; Pedrinho não era bruxo, nem possuía qualquer tipo especial de poder, era apenas esperto e corajoso. Ele adorava suas aventuras, estava fascinado pelo Sítio do Pica-Pau Amarelo e não via a hora de Papai ler mais para ele (não que ele não soubesse ler, aproveitando para esclarecer – o filho de um escritor aprende a ler ainda no ventre da mãe, o próprio Ben diria eventualmente mais tarde em introduções de seus livros e em entrevistas –, é só que havia na voz de Papai algo mágico, que o fazia verdadeiramente viajar, sentir as palavras, estar dentro da história, e ele amava escutá-la).    
           Sim senhor, queria ser mesmo era como Pedrinho.
Isso fê-lo desviar-se do espelho para Papai.
          “Agora falta o bodoque, Papai”.
          Papai sorriu, um sorriso cheio de luz – um sorriso que Ben guardaria consigo por toda sua vida –, mas a moça parecia de novo embaraçada.

          Saíram da Planeta dos Brinquedos dez minutos depois, Ben metido na sua capa da invisibilidade, irradiante, altivo, o bodoque em volta do pescoço como um poderoso artefato mágico (um artefato que forças malignas tentavam a todo custo se apossar e que somente ele, O Escolhido, era digno de portar), Papai exibindo na cabeça, o rosto solene contra o sol terno, o chapéu do Robin Hood, verde com uma viçosa pluma colorida pulando por sobre sua borda, e trazendo, juntamente a uma aljava cheia de flechas (de mentirinha, naturalmente), um longo arco nas costas.
          E naquele noite, depois de Papai ler para ele mais um gostoso pedaço de Reinações de Narizinho e deixar o quarto (totalmente apagado – ‘Sim, papai, pode apagar a luz.’), Ben verificou mais uma vez se o bodoque continuava debaixo do travesseiro, empertigou-se dentro da sua capa da invisibilidade, fechou os olhos sob o capuz e esperou (o coração num batuque ligeiramente afoito que era uma soma estranha de ansiedade e empolgação) pela Coisa no teto.
          Mas, ou ela não viera àquela noite – desembrulhando-se lenta e ameaçadoramente como um lençol preto do teto pintado de estrelas, olhos pequeninos e vermelhos, uma boca larga pontilhada de dentes grandes e afiados a sorrir sem alegria, mãos de dedos desproporcionalmente grandes e brancos (onde, inacreditavelmente, não havia unhas) – ou viera e Ben não a enxergou. Porque, evidentemente, a Coisa no teto era só mais uma personificação do Bicho Papão, e todo mundo sabe, ou pelo menos deveria saber, que o Bicho Papão se alimenta do medo.


Biografia:
Tino Nenhures nasceu no Estado da Bahia e vive atualmente no Rio de Janeiro. Amante das letras, da natureza e do rock and roll, fica deprimido e às vezes espumando à sua falta.
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